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A petrealidade da harmonia e do equilíbrio entre os poderes e do federalismo centrífugo

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23/03/2014 às 11:12
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3 O FEDERALISMO 

A ideia central do federalismo reside na repartição de poder entre governos regionais, autônomos entre si, formando o Estado federal. Distingue-se do Estado unitário, que possui um centro de poder que controla todas as coletividades locais, território e população.

Corroborando, federalismo, em Direito Constitucional, significa uma forma de Estado, denominada federação ou Estado Federal, caracterizada, segundo Silva (2004, p. 99), “pela união de coletividades públicas dotadas de autonomia político-constitucional, autonomia federativa”.

O Estado Federal é o conjunto formado pela União e pelos Estados federados (coletividades regionais), caracterizando aquilo que se convencionou chamar de federalismo de dois níveis. O Estado Federal é o todo, dotado de personalidade jurídica de Direito Público internacional, detentor da soberania.

No Brasil, além da União e dos Estados federados ou Estados-membros, aparece o Município como coletividade local dotada de autonomia federativa, configurando, assim, um federalismo de três níveis, a despeito de doutas opiniões em contrário, negando ao Município a natureza de ente federativo. Isto porque, em seu artigo 1º, a Constituição de 1988 estabelece que a República Federativa do Brasil, ou seja, o Estado Federal brasileiro, é formada pela união indissolúvel de Estados e Municípios e do Distrito Federal.

Diferentemente do Estado Federal, a União é pessoa jurídica de Direito Público interno, formada pela reunião das partes componentes, autônoma em relação aos Estados-membros, representando externamente o Estado Federal. Os Estados-membros, por sua vez, são essas partes componentes, também pessoas jurídicas de Direito Público interno, detentoras de autonomia. Para Silva (2004, p. 100), os Estados-membros “são titulares tão-só de autonomia, compreendida como governo próprio dentro do círculo de competências traçadas pela Constituição Federal”.

Sobre esta autonomia, aduz Silva (2004, p. 100):

A autonomia federativa assenta-se em dois elementos básicos: (a) na existência de órgãos governamentais próprios, isto é, que não dependam dos órgãos federais quanto à forma de seleção e investidura; (b) na posse de competências exclusivas, um mínimo, ao menos, que não seja ridiculamente reduzido.

Segundo Bonavides (2006), dois princípios capitais são a chave de todo o sistema federativo: a lei da participação e a lei da autonomia. Sobre o assunto, ensina o autor (p. 195-196):

Mediante a lei de participação, tomam os Estados-membros parte no processo de elaboração da vontade política válida para toda a organização federal, intervêm com voz ativa nas deliberações de conjunto, contribuem para formar as peças do aparelho institucional da Federação [...]

Através da lei da autonomia manifesta-se com toda a clareza o caráter estatal das unidades federadas. Podem estas livremente estatuir uma ordem constitucional própria, estabelecer a competência dos três poderes que habitualmente integram o Estado (executivo, legislativo e judiciário) e exercer desembaraçadamente todos aqueles poderes que decorrem da natureza mesma do sistema federativo, desde que tudo se faça na estrita observância dos princípios básicos da Constituição federal.

A Constituição de 1988 estabelece uma conjuntura que permite a aplicação dos dois citados princípios. Isto porque, no que toca à lei da participação, os Estados-Membros fazem parte da elaboração da vontade política estatal, o que é evidenciado pela existência do Senado Federal, composto por representantes de cada Estado-membro em igualdade numérica, responsável pela elaboração das leis, projetos, programas governamentais e uma série de outras atribuições privativas e exclusivas importantes para o funcionamento da máquina pública como um todo. A Câmara dos Deputados pode ser citada também como órgão que permite a participação dos Estados-membros na formação da vontade nacional, pois, embora seja essencialmente voltada para a representação da população, os anseios desta não deixam de refletir os anseios do ente a que pertence.

Pela lei da autonomia, aos Estados-Membros é conferido um conjunto de competências próprias que lhes permite a capacidade de governar e administrar a si próprios. Estes entes federativos possuem serviços específicos e exclusivos, patrimônio e receitas próprios, poder de instituir e arrecadar tributos, decidir seus gastos, programas e prioridades. No que tange à sua competência legislativa, têm autonomia para elaborar suas Constituições estaduais e leis próprias, desde que observados todos os limites impostos pela Constituição Federal.

Os Municípios, por sua vez, como reflexo da lei da autonomia, possuem, de modo mais evidente, a competência legislativa, podendo elaborar suas Constituições, chamadas de Leis Orgânicas, e leis próprias, desde que observado aquilo que lhes é atribuído pela Constituição Federal e pelas normas estaduais. Além disso, podem organizar sua administração, serviços, instituir e arrecadar tributos, decidir suas despesas, além de possuírem patrimônio próprio. A lei da participação, a seu turno, é menos visível na situação dos Municípios, sendo poucas as oportunidades de participação na vontade política regional e federal.

3.1 A Crise do Federalismo 

Muitos estudiosos entendem que o federalismo sofre uma grave crise, resultado da crescente centralização do poder que tende a reduzir ou a anular a autonomia das coletividades políticas componentes da federação, tornando os Estados Federais cada vez mais próximos do conceito de Estado Unitário descentralizado.

Para melhor visualização do tema, importa dizer que, de acordo com Magalhães (2002), Estado Unitário descentralizado é aquele dotado de um poder central forte e com a quase totalidade de competências, que, para permitir maior agilidade e eficiência na administração territorial, fraciona o seu espaço em regiões, províncias ou municípios, dotando-lhes de personalidade jurídica própria e de atribuições meramente administrativas.

Bonavides (2006), no entanto, defende que não é tanto o federalismo enquanto fenômeno político associativo que está em crise, senão uma forma doutrinária do federalismo, que se prende desde as origens e gerou uma moldura jurídica aparentemente intocável. Corrobora o autor (p. 202):

A mudança dos tempos e as necessidades políticas e sociais obrigaram o sistema federativo a dar máximas provas de seu poder adaptativo, resultando em um federalismo novo, elástico, quase irreconhecível àqueles que ainda sustentam com entono as máximas do federalismo clássico.

 Para o mencionado autor, o federalismo passou por três épocas. Na primeira, correspondente à adoção do princípio, das duas leis que regem a Federação (autonomia e participação), a lei da autonomia era mais dominadora, com os Estados participantes entrincheirados em uma posição de força. A segunda, por sua vez, foi marcada pelo equilíbrio entre a União e os Estados-membros, entre autonomia e participação e entre forças centrífugas e centrípetas.

A terceira, contemporânea, evidencia o declínio da autonomia e aumento progressivo da participação. A expansão industrial do século XX, o considerável alargamento das vias de comércio entre os Estados, o imenso progresso tecnológico de caráter unificador, a propagação das ideologias que apagam e crestam as variações do particularismo político e o consequente incremento da legislação social se apresentam como principais fatores da transformação do federalismo. Tal transformação fez do intervencionismo estatal necessidade indeclinável à subsistência mesma do Estado federal, colocou os Estados-membros, em face da deficiência de seus recursos, debaixo da servidão financeira do poder federal.

Todos estes fatores contribuem para que os Estados contemporâneos, através de suas Constituições, tendam a concentrar o poder em um só órgão ou esfera, atribuindo-lhe maiores competências. Este fenômeno faz com que o poder central goze de maiores atribuições e privilégios, arrecadando mais recursos que os demais entes federativos, impondo a forma como estes devem realizar suas despesas, controlando o repasse de verbas e conduzindo a execução das políticas públicas, além de dispor de um número bastante superior de matérias submetidas à sua decisão mediante a elaboração de leis.

Dessa forma, tem sido minada a autonomia dos Estados-membros e, no caso do Brasil, dos Municípios, enquanto entes federativos, tornando-se cada vez mais dependentes e subjugados pela União, especialmente pela escassez de recursos financeiros próprios.

3.2 A Petrealidade do Federalismo Centrífugo

A fim de melhor compreender a característica centrífuga do federalismo brasileiro, torna-se necessária uma breve análise sobre o surgimento deste fenômeno no Brasil, precedido de sua origem norte-americana.

O federalismo surgiu nos Estados Unidos da América e influenciou vários modelos europeus e latino-americanos. Após a declaração da independência em 1776, todas as colônias norte-americanas se proclamaram soberanas, formando uma Confederação, na qual apenas havia um órgão de poder central, o Congresso Continental, uma espécie de senado, que não recebia nenhum poder dos Estados.

Temendo ataques externos e a retomada do poder pela Inglaterra, e visando fugir de uma eventual anarquia para garantir prosperidade político-econômica e o respeito aos direitos fundamentais, foi formada a Convenção da Filadélfia, que promulgou a Constituição em 1787, adotando o federalismo.

No Brasil, a primeira forma de Estado foi a unitária, outorgada juntamente com a Constituição Imperial de 1824, com todo o poder centralizado na pessoa do Imperador, personificando o Poder Moderador. Com o Ato Adicional de 1834, as forças descentralizadoras obtiveram avanço, a exemplo da criação de Assembleias Legislativas Provinciais, que retrocedeu com a Lei de Interpretação de 1841.

A Constituição de 1891 proclamou a República e, junto com ela, a Federação, transformando as províncias em Estados-membros, unidos indissoluvelmente, com repartição de bens e competências. A Constituição outorgada de 1937 desferiu um duro golpe contra o federalismo. Apesar de manter em vigor as Constituições e leis estaduais, dissolveu o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas estaduais e as Câmaras Municipais, ampliando as hipóteses de intervenção.

A Constituição de 1946, promulgada, devolveu a autonomia aos Estados-Membros, novamente retirada pela outorga da Constituição de 1964, vigorando um federalismo meramente nominal.

Por último, a Constituição de 1988 resgatou o pacto federativo, estruturando um sistema de repartição de bens e competências, visando ao equilíbrio entre os entes, apesar de entregar à União maior parte das atribuições, bens e recursos.

Feitas essas considerações, é possível visualizar neste breve apanhado histórico a existência de dois tipos de federalismo: o centrípeto e o centrífugo. O primeiro está presente no federalismo clássico norte-americano, que surgiu a partir da junção de Estados soberanos para formar o Estado Federal e a União, abdicando de suas soberanias.

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Como a própria denominação revela, o federalismo centrípeto converge-se para o centro, ou seja, parte-se de um cenário em que o poder é totalmente descentralizado para desaguar na centralização, conforme é possível verificar no modelo norte-americano, no qual Estados, que antes formavam uma Confederação, após a Constituição de 1787, construíram uma Federação.

Sendo assim, ao longo de mais de duzentos anos, a União norte-americana vai incorporando, paulatinamente, cada vez mais competências dos Estados-Membros, tendo em vista ser a força centrípeta deste modelo de federalismo um fluxo contínuo, sendo natural que cada vez mais o poder seja centralizado. No entanto, ao contrário do que possa parecer, o federalismo centrípeto “é o mais descentralizado, pois originou-se historicamente de Estados soberanos que se uniram e abdicaram de sua soberania, mantendo, entretanto, um grande número de competências administrativas e legislativas [...]” (MAGALHÃES, 2000, p. 16).

Isto é comprovado pela ampla autonomia que possuem os Estados Federados norte-americanos, cada um com competências legislativas e organizacionais quase que absolutas. Um exemplo é encontrado no direito penal, onde cada Estado é livre para dispor como queira, obedecendo unicamente à Constituição, algo impensável no ordenamento jurídico brasileiro.

O segundo tipo de federalismo aludido é o centrífugo. Este modelo surge a partir da fragmentação de um Estado Unitário, que detém todo o poder, passando este para o domínio de outras coletividades, dividindo-o. Aqui, ocorre uma fuga do centro, isto é, a saída de um panorama altamente centralizador, dispersando o poder entre entes regionais. E este é o modelo brasileiro de federalismo, partindo do Estado Unitário Imperial para o Estado Federal, com poderes divididos, exatamente o inverso do que ocorreu com os Estados Unidos da América.

Destarte, traçando um paralelo, a tendência do federalismo brasileiro é a incorporação gradual de competências pelos Estados-membros e Municípios, retirando poder da União, ou aumentando a autonomia dos demais entes. O fluxo, aqui, corre ou deveria correr permanentemente, como é natural e desejável, no sentido inverso, ou seja, descentralizando cada vez mais o poder. Também ao contrário do que pode parecer, o federalismo centrífugo é o mais centralizado, pois nasce da quebra de uma total concentração, e isto é demonstrado pelo domínio da União, que detém a maior fração das competências, funções, decisões, bens e recursos.

Observa-se que a tendência do Estado brasileiro, desde o seu nascedouro, sempre foi a descentralização do poder. Embora tenha sido sufocado em vários momentos históricos por minorias dominadoras, armadas e autoritárias, o federalismo centrífugo foi o alvo da sociedade democrática, o que pode ser constatado pelas conquistas trazidas pelo Ato Adicional de 1834, anteriormente relatadas.

Ademais, todas as Constituições promulgadas buscaram a descentralização, a fuga do centro, implementando importantes avanços, sempre refreados pelas Constituições outorgadas, visando atender ao interesse de poucos em detrimento da maioria. Em todos os períodos democráticos procurou-se abandonar a tradição centralizadora e autoritária para construir uma federação moderna e um Estado Democrático de Direito. O fluxo do federalismo brasileiro sempre tendeu para a dispersão, ainda que muitos tenham tentado contê-lo a todo custo.

Segundo Magalhães (2000), a Constituição de 1988 restaurou a federação e a democracia perdidas no período ditatorial, procurando avançar em um novo federalismo centrífugo. Entretanto, apesar das inovações, o número de competências da União em detrimento dos Estados-membros e Município é muito grande, fazendo com que se tenha um dos Estados federais mais centralizados do mundo.

Não obstante, a ampla concentração de poderes conferida pela Constituição à União não significa permitir que projetos de emendas constitucionais ou normas infraconstitucionais tendam a fortalecer ainda mais essa centralização. A Constituição protegeu com a intangibilidade a forma federativa de Estado, estabelecendo uma distribuição ideal de competências, bens e recursos, que não pode ser tocada senão para descentralizar aquilo que já está posto.

Nesse sentido, extraídas a origem, a história e a natureza do federalismo brasileiro, em sua característica centrífuga, as normas devem buscar sempre o fracionamento do poder entre os entes federativos, fugindo do centro, caminhando com o fluxo dispersante natural e desejável, ou a ampliação da autonomia dos Estados e Municípios.

Este é o entendimento de Magalhães (2000, p. 19-20):

A compreensão do nosso federalismo como centrífugo é de fundamental importância para sua leitura constitucionalmente correta, assim como para um correto controle de constitucionalidade, coibindo contratos, medidas provisórias, atos administrativos, emendas à Constituição absolutamente inconstitucionais, pois tendentes a abolir a nossa forma federal (centrífuga), limite material expresso ao poder de emenda à Constituição, e logo restrição a qualquer ação contrárias a forma federal centrífuga. Não é necessário lembrar que se uma emenda centralizadora, logo tendente a abolir a forma federal, é inconstitucional, inconstitucional também será qualquer outra medida nesse sentido.

Desse modo, a leitura adequada das limitações materiais previstas no artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição, no tocante à proibição de reforma tendente a abolir a forma federativa, deve permitir a conclusão de que a característica centrífuga do federalismo brasileiro deve ser preservada, ou seja, a petrealidade prevista na primeira alínea do dispositivo mencionado deve abranger, também, o federalismo centrífugo.

O artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição federal não veda a edição de emendas e normas infraconstitucionais sobre o federalismo. O que é proibido é a tentativa de abolir a forma federal. Assim, permite-se a edição de emendas e normas inferiores que sigam o fluxo da descentralização, aperfeiçoando o federalismo brasileiro. Exemplificando, são constitucionais emendas que retirem patrimônio, competências e atribuições da União para os Estados-membros e Municípios, que transfira daquela para estes a sua enorme capacidade tributária, ou que confira aos entes regionais e locais maior discricionariedade na decisão de suas despesas, na elaboração de seus programas governamentais e administrativos e na execução de seus serviços, ou que representem acréscimo à autonomia de Estados e Municípios.

Qualquer emenda ou norma inferior em sentido contrário, concentrando mais poder, funções, patrimônio e decisões nas mãos da União ou que diminua a autonomia das demais coletividades devem ser taxadas como inconstitucionais, pois tendem a extinguir a forma federativa centrífuga brasileira. Isto porque, “centralizar mais o nosso modelo significa transformá-lo de fato em um Estado unitário descentralizado” (MAGALHÃES, 2000, p. 20), desobedecendo a conceituação da República brasileira como federativa pelo artigo 1º da Constituição Federal.

Finaliza Magalhães (2000, p. 21):

Podemos concluir que toda e qualquer atuação do Legislativo e do Executivo da União que tenda a centralizar competências, centralizar recursos, centralizar poderes, uniformizar ou padronizar entendimento direcionados aos Estados-membros e/ou municípios é conduta inconstitucional e deve ser combatida, além de não ser de observância obrigatória para os Estados e Municípios, pois inconstitucional.

Apesar destas conclusões, algumas emendas constitucionais promulgadas e há muito vigentes podem ser citadas como exemplos de afronta à centrifugalidade do federalismo brasileiro.

A primeira delas é a Emenda Constitucional nº 15/1996, que alterou o parágrafo 4º do artigo 18 da Constituição Federal. A criação de Municípios, que antes deveria obedecer às condições de lei complementar estadual, passou a ser submetida aos requisitos de Lei Complementar Federal, evidenciando a concentração de poder nas mãos da União, retirando parte discricionariedade dos demais entes federativos.

 Exemplo de diminuição da autonomia dos Estados-membros é encontrado na Emenda Constitucional nº 1/1992, que limita a remuneração dos Deputados Estaduais, tomando por base a remuneração dos Deputados Federais, o que não era previsto na redação original. Apesar do seu caráter moralizador, é inegável a redução da discricionariedade dos Estados-membros em organizar suas despesas.

Também no campo da tributação e orçamento a centrifugalidade pode ser afetada, pois as decisões sobre como e quanto arrecadar e a forma de realização das despesas refletem o pacto federativo, a partir do modo como estes aspectos estão organizados na Constituição. Na redação original da Carta de 1988, o parágrafo 1º do artigo 149 estabelecia que Estados e Municípios pudessem instituir contribuição de seus servidores, conferindo-lhes uma faculdade. A Emenda Constitucional nº 41/2003 retirou a faculdade, passando a obrigar a cobrança, refletindo, assim, inegável redução de autonomia.

Prosseguindo, a Emenda Constitucional nº 3/1993 criou hipótese de condicionamento de repasse de verbas da União aos demais entes. Pela redação original, era vedada qualquer forma de condicionamento. Apesar disso, a EC 3/1993 ainda foi alterada pela Emenda Constitucional nº 29/2000, que ampliou os casos de permissão de condicionamento, ampliando o poder da União.

Esta mesma EC 29/2000, como último exemplo, estabeleceu percentuais mínimos de receita a serem aplicados obrigatoriamente nas políticas de saúde pública por Estados e Municípios, exceptuando ainda mais o princípio constitucional da vedação de vinculação de receitas tributárias. Este princípio já era relativizado pela própria redação original da Constituição, ao estabelecer um percentual mínimo de receita a ser aplicado obrigatoriamente na educação. Porém, esta previsão encontra-se dentro da forma ideal de federalismo proposta pelos constituintes, não cabendo aos legisladores constituídos retirar ainda mais a autonomia na decisão da realização das despesas por Estados e Municípios.

Percebe-se que tais emendas seguiram o fluxo inverso do natural e desejado ao ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. Ao invés de favorecerem a descentralização, foram criadas com caráter centrípeto, ao reduzir a autonomia dos Estados e/ou concentrar poder nas mãos da União.

Assim como foi dito quando da análise da petrealidade da harmonia e do equilíbrio entre os Poderes, não é objetivo do presente estudo taxar as emendas mencionadas como inconstitucionais, tendo em vista que foram submetidas à análise de constitucionalidade pelo próprio Congresso Nacional e não foram rechaçadas pelo Judiciário. Crê-se que esta quebra da organização ideal e da tendência natural à centrifugalidade do federalismo proposto pela Constituição tenha sido suportada por ser de pequena monta e/ou por possuir finalidades aceitas visando, por exemplo, à proteção de servidores públicos, à moralização e ao controle dos gastos públicos e maior organização do Estado.

Desse modo, pretende-se apenas permitir um novo olhar sobre a petrealidade da característica centrífuga do federalismo brasileiro, alertando para que futuras alterações venham a ser substancialmente gravosas ao formato federativo, entregando cada vez mais poder à União e reduzindo a autonomia já tão comprometida de Estados e Municípios.

Ao lado destas emendas centrípetas, há exemplos de louváveis propostas que favoreceram a centrifugalidade, seja por proporcionar mais fontes de receitas a Estados e Municípios, seja por lhes conferir maior capacidade legislativa.

A Emenda Constitucional nº 42/2003, ao prever a possibilidade de usufruto total pelos Municípios da receita gerada pelo Imposto Territorial Rural, e a Emenda Constitucional nº 55/2007, que criou mais uma forma de repasse obrigatório de verbas da União aos Municípios (entrega no mês de dezembro de 1% do produto de arrecadação de determinados impostos ao Fundo de Participação dos Municípios), proporcionou mais receita aos entes referidos, aumentando a sua autonomia e diminuindo a dependência financeira da União.

Exemplo de transferência de competência legislativa da União aos demais entes é dado pela Emenda Constitucional nº 41/2003, ao prever que o regime de previdência complementar será instituído por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, sendo que antes deveria ser instituído por lei complementar federal, o que reduziu a interferência da União em assuntos locais e regionais.

Um caso de limitação à capacidade legislativa da União, permitindo maior liberdade dos demais entes federativos em sua administração, é a vedação de medida provisória sobre a exploração pelos Estados dos serviços de gás canalizado (EC 5/1995).

Por último, a Emenda Constitucional nº 46/2005, ao excluir do rol de bens da União as ilhas que contenham a sede de Municípios, diminuiu a concentração federal de patrimônio, seguindo o fluxo da centrifugalidade.

Todos estes exemplos corroboram o que foi dito anteriormente. Assim, permite-se a edição de emendas e normas inferiores que sigam o fluxo da descentralização, aperfeiçoando o federalismo brasileiro, como as que retirem patrimônio, competências e atribuições da União para os Estados-membros e Municípios, que transfiram mais recursos e concedam mais liberdade na organização de despesas, programas e serviços. Como consequência, rechaça-se qualquer proposta que tenda a concentrar poderes na pessoa da União, de caráter centrípeto.

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Sobre o autor
Thiago Meneses Rios

Advogado. Pós-graduado em Direito Constitucional pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Graduado em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Experiência anterior como Assessor de Juiz em Vara Criminal. Experiência como estagiário da Defensoria Pública Estadual do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIOS, Thiago Meneses. A petrealidade da harmonia e do equilíbrio entre os poderes e do federalismo centrífugo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3917, 23 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27031. Acesso em: 23 abr. 2024.

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