4. A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE COMO JUSTIFICATIVA
Vozes podem vir a ser ouvidas em vários timbres contra a petrealidade dos conceitos de harmonia e equilíbrio da separação dos poderes e do federalismo centrífugo. Pode-se arguir, por exemplo, que: a) a forma de distribuição de competências entre os Poderes e entre os entes da Federação não é ideal ou adequada, devendo sofrer mudanças para adequar-se aos novos tempos e a eventuais necessidades, o que permite alterar o equilíbrio e a organização do pacto federativo formulados pela Constituição; b) atualmente, o Poder Judiciário se agigantou, em detrimento dos demais, sendo imprescindível uma reestruturação do sistema de freios e contrapesos para contê-lo, ou que é indispensável maior controle do Legislativo sobre o Executivo; c) o federalismo está em crise, autorizando, assim, que emendas tendam a concentrar cada vez mais o poder, por conta das necessidades contemporâneas; entre outros.
Enfrentando a plausibilidade destes argumentos, recorre-se à teoria do Poder Constituinte como justificativa para as teses apresentadas, sendo conveniente e oportuno analisar a atuação desta força originária, insubmissa e indomável, o valor, a duração e as conquistas de suas decisões e a sua capacidade de organizar a sociedade e de vincular as gerações vindouras às suas deliberações, preservando-as ao menos naquilo que possuem de fundamental.
Poder Constituinte é o poder de criar a Constituição de um Estado, legitimado diretamente pela soberania popular. Somente o povo, detentor da soberania e do Poder Constituinte, entendido como uma pluralidade de forças culturais, sociais e políticas, pode deliberar acerca da conformação de sua ordem jurídica, política e social.
Este Poder Constituinte ganha vida quando a sociedade, desconsiderando o Estado, toma novas decisões sobre o modo que deseja ser organizada, rompendo com o passado e inaugurando um novo Estado. Neste sentido, Britto (2003, p. 31):
Quando pronunciamos a locução “Poder Constituinte”, sem dúvida que estamos a falar de um poder genuinamente político. Mais até, estamos a falar de um poder exclusivamente político, porque originariamente imbricado em toda a pólis, naqueles raros instantes em que a pólis se sobrepõe ao Estado para dizer, por ela mesma, sob que tipo de Direito-Constituição quer viver. Ela passa a transitar pelo mundo do ser (não do dever-ser jurídico) e por isso pode assumir-se como o amálgama do povo inteiro com o território sobre o qual esse povo inteiro vai constituir o seu particular Estado.
Sendo, portanto, a mais genuína vontade do povo, o Poder Constituinte caracteriza-se por ser inicial (pois inaugura um novo ordenamento através da Constituição), autônomo (não está sujeito a limites do direito anterior) e incondicionado (não se submete a qualquer forma prefixada ou procedimento para expressar sua vontade).
O Poder Constituinte difere do Poder Reformador. Este é responsável pela elaboração das emendas à Constituição, enquanto aquele inaugura um novo ordenamento, criando uma Carta inteiramente nova em substituição à anterior. Para Britto (2003, p. 47-48), “[...] o Poder Constituinte é o poder de dispor sobre o todo da Constituição, e não menos; o Poder Reformador (que é um poder estatal e, portanto, constituído) é o poder de dispor sobre partes da Constituição, e não mais”.
A partir disto, aparando arestas, cumpre ressaltar a impropriedade da expressão Poder Constituinte Derivado para designar o Poder Reformador. Se este é constituído, não pode constituir; se é derivado, não é constituinte nem originário; se conhece limites, apenas podendo dispor de partes da Constituição, não é insubmisso como o Poder Constituinte.
No que toca aos seus limites, assevera-se que o Poder Reformador é condicionado, pois deve obedecer às formalidades previstas para a sua atuação, e restrito às matérias que não estão protegidas pela intangibilidade das cláusulas pétreas. Assim é que “[...] as emendas constitucionais podem tudo que a lei pode e vão além: podem tudo que a lei não pode, salvante recair sobre matérias clausuladas de petrealidade pela Constituição” (BRITTO, 2003, p. 118). Por tais motivos é que as normas que pretendem adentrar ou modificar o texto constitucional originário devem sofrer controle de constitucionalidade.
A principal residência do Poder Constituinte, enquanto vivo, é a Assembleia Constituinte, criada na quase totalidade das sociedades democráticas modernas e contemporâneas para discutir e criar o novo ordenamento a partir de um documento formal. É aqui que os mais diferentes setores da sociedade se encontram para debater, amplamente, e decidir o modelo de Estado a que desejam submeter-se, sendo expressão máxima do pluralismo.
Sobre este órgão, Britto (2003, p. 43) ensina:
A Assembléia Constituinte é órgão da sociedade, e não do Estado. É nela que a sociedade se “presenta”, para usarmos de vocábulo cunhado por PONTES DE MIRANDA, a propósito de outro assunto. E se presenta, por dispensar a representação do Estado. Por prescindir da intercalação do Estado entre ela (sociedade) e os respectivos componentes individuais e grupais.
Neste cenário, as discussões são conduzidas democraticamente, estudando-se o passado e o presente para averiguar os anseios sociais mais significativos para um povo enquanto nação. Busca-se estabelecer as bases do ordenamento jurídico, da sociedade, os objetivos da atuação estatal e a proteção dos indivíduos, assegurando para o futuro aquilo que a sociedade possui de mais fundamental, unânime e característico. Neste sentido, Britto (2003, p. 60):
[...] é próprio desse tipo de organismo ou ente coletivo a aptidão de ultrapassar as barreiras do tempo, de sorte a poder conciliar na sua (p. 61) obra legislativa estrutural (a Constituição) interesses que traduzam reverência à cultura e à memória nacional, o atendimento das prementes necessidades da população viva e ainda por cima a pavimentação da estrada pela qual transitarão, em presumível segurança, os pósteros. Este o sentido psicossocial, histórico e também racionalmente jurídico da eleição de uma Assembléia que só é nacional por ser constituinte e só é constituinte por ser nacional.
Isto porque quem se reúne em Assembleia Constituinte é a nação, daí a sua denominação Nacional. E por nação se entende um povo que comunga das mesmas características essenciais (costumes, tradições, anseios, objetivos, entre outros). Por esta razão, a nação possui “legitimidade política e senso histórico para dar forma jurídica ao próprio futuro” (BRITTO, 2003, p. 71), fazendo a ponte entre passado, presente e futuro, de maneira a “recolher o que há de axiologicamente comum a todas elas para tudo sintetizar num só documento normativo [...]” (p. 74).
Segundo o autor, a Constituição possui um valor-síntese, que é o próprio ser da Constituição, sua ratio essendi, consubstanciado na Democracia. Este princípio constitucional por excelência transluz em toda cláusula pétrea explícita no texto constitucional. Assim, todas as Constituições ocidentais promulgadas reverenciam a democracia, com o requinte de muitas vezes “clausular como pétreos aqueles valores mais próximos do centro – falemos assim – da circunferência democrática” (BRITTO, p. 186).
Finalizando, o autor aduz que todos os espécimes normativos devem permanecer para sempre submissos à vontade constituinte naquilo que diz respeito à razão de ser da Constituição.
Destarte, eventuais opiniões em contrário às teses aqui apresentadas não invalidam o batismo recebido pela harmonia e equilíbrio entre os Poderes e pelo federalismo centrífugo na pia da mais genuína vontade e da mais cristalina expressão da sociedade democrática brasileira reunida em Assembleia Nacional Constituinte.
A petrealidade da harmonia, do equilíbrio e da centrifugalidade do federalismo faz parte daquilo que a sociedade possui de mais fundamental, unânime e característico, integrando a estrada pavimentada pelas decisões tomadas pela Assembleia Constituinte, pela nação, com poder para vincular as gerações futuras e assegurar a sua manutenção, dizendo a forma como a sociedade pretende viver, organizar-se e progredir.
Afirmar que a distribuição dos freios e contrapesos entre Poderes e entes federativos não é ideal e precisa adequar-se à realidade, de modo a permitir emendas que concentrem poder nas mãos da União, contrariamente ao fluxo natural e desejado do federalismo centrífugo, ou que alterem o equilíbrio e a harmonia criados pela Constituição, é desprezar a força da Assembleia Nacional Constituinte, as decisões políticas fundamentais por ela tomadas, reflexo daquilo que é axiologicamente comum a todas as gerações da nação brasileira, e a sua capacidade de organizar e vincular o futuro.
Pretender substituir a vontade constituinte, naquilo que possui de essencial, e alterar o cerne da democracia e da Constituição, julgando-se com maior aptidão para decidir sobre o que é fundamental do que toda a sociedade presentada em Assembleia Constituinte e não meramente representada em Assembleia Constituída, é atitude, no mínimo, temerária, além de arriscadamente ambiciosa.
Taxar o Poder Judiciário de ativista para justificar a necessidade de controlá-lo através da PEC 33/2011 é alterar gravemente o equilíbrio ideal proposto pela Constituição com a simples razão residente na insatisfação de interesses pessoais e partidários. O crescimento da atuação jurisdicional é reflexo da detração e do descrédito da atuação do Legislativo, que descumpre o seu papel de planejar e garantir políticas públicas ou pretende utilizar a máquina legislativa para atender a finalidades espúrias. Na verdade, esta nova face do Judiciário nada mais representa que o cumprimento de suas atribuições constitucionais, interpretando normas, declarando inconstitucionalidades, editando súmulas, garantindo o respeito às suas decisões, o que não significa a alteração do equilíbrio e da harmonia entre os Poderes.
Para aqueles que acreditam que o federalismo está em crise e que, por consequência, as necessidades contemporâneas internas de um Estado e as próprias relações internacionais indicam uma crescente centralização e autorizam modificações neste sentido, argumenta-se que este momento do federalismo não passou despercebido pela Constituição de 1988, que, por isso mesmo, tomou a decisão de concentrar a maioria das competências na União. Porém, estas decisões fazem parte da distribuição ideal formulada pela Carta, não significando “carta branca” ao Poder Reformador para centralizar ainda mais o Estado, restando-lhe apenas seguir ao fluxo centrífugo.
As cláusulas pétreas não podem ser obedecidas pela metade. Se a federação e a separação dos Poderes estão petrificados, todos os seus elementos conceituais, históricos e finalísticos devem ser respeitados, especialmente porque são a tradução máxima da democracia, princípio por excelência e ratio essendi da Constituição. Preservar apenas parte de um princípio ou conceito é esvaí-lo, é reduzir o seu alcance e descaracterizá-lo por completo.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A finalidade do presente estudo foi verificar, especificamente, de que modo a intangibilidade da separação dos Poderes e da forma federativa de Estado, enquanto cláusulas pétreas, pode se manifestar, ou seja, a extensão de sua imodificabilidade.
Com esteio na Teoria do Poder Constituinte, pode-se concluir que as faces da harmonia e do equilíbrio, consubstanciadas no esquema de freios e contrapesos elaborado pela Constituição, e a característica centrífuga do federalismo fazem parte dos conceitos do princípio da separação dos Poderes e da forma federativa de Estado, respectivamente, merecendo total proteção pela intangibilidade.
Isto porque as cláusulas pétreas são as matérias mais próximas do núcleo central da Democracia, razão de ser da Constituição, evidenciando decisões tomadas pela mais genuína vontade da população reunida em Assembleia Nacional Constituinte, estabelecendo os mais relevantes valores da nação, que ligam passado e presente, revelando a sua identidade e tendo força para organizar e vincular o futuro. Destarte, não se pode permitir que uma Assembleia meramente constituída e representante do povo desconheça as disposições de uma Assembleia que presenta a população.
Conclui-se, então, que qualquer proposta de emenda, como a PEC 33/2011, que vise alterar gravemente o sistema de freios e contrapesos, modificando a harmonia e o equilíbrio idealizado pela Constituição ao estabelecer maior controle de um Poder sobre o outro, deve ser tida como materialmente inconstitucional. Do mesmo modo deve ocorrer com as propostas que pretendam concentrar mais poderes na pessoa da União, retirando autonomia dos Estados-membros e Municípios, apenas sendo permitidas aquelas que sigam o fluxo centrífugo descentralizador do federalismo brasileiro.
Reconhece-se, porém, que vigem emendas que, ainda que timidamente, alteraram o equilíbrio entre os Poderes e que andaram pelo caminho inverso da centrifugalidade. Crê-se que tais mudanças foram aceitas por serem de pequena monta e por ter intuito moralizador. Assim, não é objetivo deste trabalho declarar a sua inconstitucionalidade, mas permitir um novo olhar sobre o tema e alertar para futuras ambições.
Não obstante, permitir alterações graves e significativas na forma ideal estabelecida pela Constituição é ir de encontro à sua razão de ser. Obedecer a uma cláusula pétrea pela metade é desconhecer o seu sentido como um todo, esvaziando o teor e a natureza dos princípios, bem como as decisões fundamentais da nação. Reconhecer como intangível apenas parte de uma matéria petrificada é esgotar o seu conteúdo e a sua capacidade vinculativa, além de proporcionar o risco de ser, pouco a pouco, totalmente desconsiderada, minando a tão festejada e propagada força normativa da Constituição.
REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 13. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
__________. Curso de Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
MAGALHÃES, José Luís Quadros de. O território do Estado no Direito Comparado: novas reflexões. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3156>. Acesso em 10 de outubro de 2013.
___________. Pacto Federativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.
TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.