1. Introdução
A classificação dos direitos fundamentais em gerações é muito estudada no Brasil de modo a melhor compreendê-los. Já a teoria dos status, de Georg Jellinek, não tem sido muito divulgada, mas é bastante aproveitável quando da discussão judicial acerca dos direitos fundamentais.
A tentativa do presente estudo é fazer uma tênue ligação entre essas teorias dos direitos fundamentais e a forma como eles são demandados em juízo, focando o aspecto processual do litígio. Como será visto, o conhecimento dessas teorias, notadamente a dos status, ajuda bastante nas técnicas de formulação (petição inicial) e decisão (sentenças), quando em jogo uma discussão acerca da efetivação dos direitos fundamentais.
2. A classificação dos direitos fundamentais: teoria geracional e teoria dos status
É comum na doutrina brasileira a classificação dos direitos fundamentais em gerações (Bonavides, 2009:560-578), muito embora seja criticada por alguns, como Dimoulis e Martins (2008:34). Estes últimos, não obstante impliquem com a expressão gerações, defendem a pertinência da divisão e reconhecem a aceitação da classificação pela doutrina.
Embora não invocada com a mesma frequência da teoria geracional, a doutrina brasileira também tem se utilizado da teoria dos status formulada por Georg Jellinek para classificar, de acordo com sua natureza, os direitos fundamentais atualmente reconhecidos.
Robert Alexy (2008:254) explica sua importância:
O paradigma de uma teoria de posições globais abstratas é a teoria do status, de Jellinek. Sua análise aqui não se justifica somente por sua importância histórica como exemplo de uma grande construção jurídica, conceitual e teórica. Ela ainda tem grande relevância como fundamento de classificações dos direitos fundamentais.
A teoria de Jellinek afigura-se aqui importante justamente por revelar uma teoria de posições – “posições jurídicas abstratas”, no dizer de Alexy – que o Estado ocupa em relação ao indivíduo, o que permite melhor entender a forma como devem ser efetivados e exigidos os direitos fundamentais. A relação (posição) do Estado para com o indivíduo em cada caso é distinta.
Ambas as classificações – a geracional e a dos status – auxiliam, como já dito, o processo de discussão sobre a efetivação dos direitos fundamentais, notadamente nas contendas levadas ao Judiciário.
Por exemplo, para se identificar qual a real atitude que se espera do Estado na realização do direito de igualdade (isonomia), é importante saber quais providências estatais a doutrina entende como devidas para a concretização dessa espécie de direito. A doutrina dos status ajuda a identificar, de forma abstrata, as providências (comissivas ou omissivas) do Estado em relação ao indivíduo, classificando os direitos fundamentais de acordo com a relação ideal entre o Estado e o indivíduo em cada situação. A partir daí, será possível elaborar de maneira mais certa e determinada o pedido (objeto) a ser formulado na petição inicial, com vistas à concretização do direito fundamental vindicado.
De outra banda, a teoria das gerações conta com plena aceitação na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (cf. reconhece Dimoulis e Martins, 2008:34), servindo, pois, de orientação aos demais órgãos do Poder Judiciário. Ou seja, o seu reconhecimento jurisprudencial no Direito brasileiro revela, por si só, a sua importância no estudo prático ora desenvolvido.
Começando pela classificação que propõe a divisão em gerações, constata-se que ela parte de uma visão segundo a qual os direitos fundamentais hoje reconhecidos foram sendo incorporados aos ordenamentos jurídico-constitucionais em três gerações sucessivas, por meio de um processo cumulativo e equitativo (Bonavides, 2009:563). A Revolução Francesa conseguiu exprimir
em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais, profetizando até mesmo a sequência histórica de sua gradativa institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade (Bonavides, 2009: 562).
Assim, temos como a primeira geração a dos direitos da liberdade, que impõem ao Estado uma atitude de abstenção, vedando-se condutas que tencionem limitar ou anular a liberdade do indivíduo. Trata-se de uma primeira concepção de Estado Liberal. Por exemplo, em eventual litígio, o pedido inicial e a sentença devem tratar, como regra, de uma obrigação de não fazer, pois o Estado tem uma obrigação de abstenção que, uma vez violada, implica ato ilícito.
Em seguida ganham evidência1 os direitos da igualdade, chamados de segunda geração justamente por passarem a compor o ordenamento jurídico depois dos referidos acima. Exigem do Estado uma atuação interveniente, positiva, a fim de equiparar condições humanas tidas como desiguais, em outros termos, compensar desigualdades. Os diversos postulados considerados como direitos fundamentais de segunda geração “nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-lo da razão de ser que os ampara e estimula” (Bonavides, 2009: 564).
Por fim, nos direitos de terceira geração, também chamados de fraternidade ou solidariedade, destacam-se questões atinentes não só a indivíduos ou coletividades, mas a todas as sociedades de forma mútua. São exemplos o desenvolvimento, a paz, o meio ambiente saudável etc.
Não obstante o reconhecimento de outras gerações, o que interessa ao presente estudo restou bem consignado por Bonavides, em transcrição mais acima, a qual adverte que conceber direitos de segunda geração sem ter em mente o princípio da igualdade equivale a fulminá-los na origem.
Por isso, na sua efetivação, não pode o administrador, o juiz ou quem quer que seja deferir direito a “A” de modo que referida atitude suprima direito de “B”, que se encontra em igual condição de precariedade e necessidade. Referida pretensão implicaria não só desigualá-los entre si, mas aumentar a desequiparação natural de um deles – o que teve o direito suprimido – em relação aos demais cidadãos, que não precisam – ou não precisam tanto – daquela prestação estatal:
5. Aqui se chega ao ponto crucial do debate. Alguém poderia supor, a um primeiro lance de vista, que se está diante de uma colisão de valores ou de interesses que contrapõe, de um lado, o direito à vida e à saúde e, de outro, a separação de Poderes, os princípios orçamentários e a reserva do possível. A realidade, contudo, é mais dramática. O que está em jogo, na complexa ponderação aqui analisada, e o direito à vida e à saúde de uns versus o direito à vida e à saúde de outros. Não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nessa questão. (Barroso, 2010)
Essa é a lição mais proveitosa que a classificação geracional oferece: a noção de que as atuações positivas do Estado devem estar voltadas para realização do princípio da igualdade, assim como as atuações negativas devem ter por escopo resguardar a liberdade do indivíduo. Em suma, os direitos fundamentais têm finalidades (liberdade, igualdade, solidariedade/fraternidade etc.) à luz das quais devem ser realizados; a realização do direito fundamental “A”, “B” ou “C” tem por finalidade, ao fim e ao cabo, garantir a liberdade, a igualdade etc.
Já em relação à teoria de Jellinek, para melhor esclarecer sua importância, tomamos emprestada a lição de Dimoulis e Martins, que identificam na garantia dos direitos fundamentais justamente o “critério jurídico que disciplina a relação do indivíduo com as autoridades ou órgãos estatais” (2008: 20, sem grifos no original). Os autores explicam de forma bastante didática o contexto no qual se deve inserir a teoria de Jellinek:
Se denominarmos a esfera do Estado com a letra E a esfera de cada indivíduo (titular do direito) com a letra I, podemos distinguir três categorias ou espécies de direitos fundamentais conforme o tipo de relacionamento entre E e I. Esta tipologia permite estabelecer uma distinção conceitual entre os direitos negativos (de resistência), os direitos sociais e os direitos políticos, conforme definições dadas por Jellinek nos finais do século XIX e utilizadas pela doutrina contemporânea (Dimoulis e Martins, 2008:64).
De acordo com a lição acima, pode-se dizer que o tema do presente estudo é identificar, em cada caso, qual a obrigação que E (Estado) tem para com I (Indivíduo). Mas de que forma e em qual medida o tal direito lhe é garantido? Seriam somente aqueles expressamente consagrados de forma exaustiva e clara ou também os dedutíveis do sistema jurídico? Alexy reforça a importância do tema, asseverando que
A mais importante contribuição analítica da discussão sobre direitos subjetivos consiste na análise e na classificação daquelas posições jurídicas que, leiga ou tecnicamente, são chamadas de “direitos”. Nesse âmbito, são possíveis distinções [...]; ou a distinção proposta por Jellinek entre direitos de status negativo, positivo e ativo; [...]. (2008:190-191)
Conclui com uma advertência:
A diversidade daquilo que é designado como “direito (subjetivo)” cria um problema terminológico. Deve a expressão “direito (subjetivo)”, de plurivocidade e vagueza quase insuperáveis, ser reservada apenas para algumas posições, ou deve ser ela utilizada em um sentido o mais amplo possível? A primeira alternativa traz consigo o perigo de polêmicas estéreis sobre o que pode ser designado corretamente como “direito (subjetivo)”. Mais importante que essa questão é conhecer a estrutura das diferentes posições. Por isso, é recomendável que a expressão “direito (subjetivo)” seja utilizada, seguindo seu uso corrente, como um supraconceito para posições em si bastante distintas, para que, a partir daí, sejam feitas as diferenciações e classificações terminológicas (Alexy, 2008:192-193, sem grifos no original).
Partindo das possíveis posições jurídicas decorrentes da relação entre E e I, Jellinek identifica quatro posições distintas entre eles, o que denomina de
status passivus ou status subiectionis,
status negativus ou status libertatis,
status positivus ou status civitatis e
status activus ou status da cidadania ativa.
No status passivus ou status subiectionis, I estaria em posição de obediência às ordens impostas por E, como na obrigação genericamente estabelecida de pagar tributos2.
Em contrapartida, nessa relação bilateral e sinalagmática, existiria o status negativus ou status libertatis, em razão do qual I poderia resistir às imposições ou intervenções indevidas de E. Para manter o exemplo dado acima, quanto ao status subiectionis, pode-se identificar o status negativus ou libertatis no caso das limitações ao poder de tributar previstas na Constituição Federal, art. 150. Embora se sujeite ao poder do Estado de tributar (status subiectionis), o Indivíduo pode opor-se a determinadas intervenções indevidas, pois nesses casos o Estado não poderá impor-se, devendo abster-se. Subsistem em face do dever de abstenção (status negativus) direitos de defesa (status libertatis) oponíveis pelos contribuintes ao Estado3.
Esses dois status integram as obrigações de E e I que constituem abstenções, quais sejam, “a proibição de intervenção estatal no caso dos direitos de resistência e a proibição de resistência do indivíduo ao exercício do poder estatal quando ele não tiver o direito fundamental [...]” (Dimoulis e Martins, 2008: 69).
Já no status positivus restaria uma obrigação de fazer de E para com I, a fim de que este exerça plenamente suas potencialidades enquanto indivíduo. Na classificação geracional acima citada, trata-se dos direitos sociais ou direitos da igualdade, pois, com a necessária intervenção estatal, almeja-se “fornecer condições de acesso de forma equilibrada para que as pessoas possam exercer suas escolhas” (Frischeisen, 2007).
Observe-se aqui que, quando se trata de um direito social, o Estado deve uma ação em relação ao indivíduo. Por isso, os pedidos formulados em juízo e os comandos porventura procedentes devem encerrar, como regra, uma obrigação de fazer (facere). Nesses casos, é larga a discussão, por exemplo, sobre quando – e se – poderia o Estado negar sua atuação positiva (facere), justificando-se na sua capacidade econômico-financeira, ou na falta dela.
Por fim, compete explicar o status ativo ou status da cidadania ativa, em razão do qual I tem a obrigação de compor a vontade do E, atuando na formação do governo e das políticas aos indivíduos direcionadas. Trata-se, por assim dizer, da capacidade política, passiva e ativa, do sufrágio, enfim, dos direitos políticos genericamente considerados.
Embora não abordados de forma específica na teoria ora citada, pode-se dizer que os direitos ditos de terceira geração, como os ambientais, exigem ora abstenções ora ações do Estado, a depender do tipo de atividade em questão. Por exemplo, no exercício de alguma atividade econômica em sentido amplo ou estrito4, pode o Estado infringir normas ambientais. Nesses casos, em vez de ações positivas (exercer o poder de polícia, fiscalizar etc.), são-lhe exigíveis abstenções, precauções, de modo a não violar normas ambientais. Nessas situações, o Estado equipara-se ao particular, sujeitando-se às mesmas condições e imposições em relação ao meio ambiente e se vinculando aos princípios do Direito ambiental, tais como o do poluidor-pagador, da precaução etc.
De outra banda, nas responsabilidades decorrentes do art. 225 e §1º da Constituição Federal (CF), o Estado tem um dever de agir. A conduta ilícita, portanto, consistirá na omissão ou desídia. Para melhor entender, cita-se o exemplo da eventual necessidade de criação de unidade de conservação como único modo a frear os avanços da iniciativa privada sobre determinada área de necessária preservação, não havendo aí discricionariedade.
Constata-se, assim, que os direitos de terceira geração ou de solidariedade, comportam obrigações de agir ou de se abster, a depender do caso concreto.
3. Reflexos da doutrina dos direitos fundamentais na discussão judicial sobre sua efetivação
Os direitos fundamentais, quando discutidos em juízo, submetem-se às regras inerentes ao processo judicial. Por essa razão, existem limites formais dentro dos quais as complexas discussões acerca desses direitos devem ser amoldadas. Cabe aqui destacar os limites e a vinculação entre os dois extremos de um processo de conhecimento, quais sejam, a petição inicial e a sentença. Entre esses dois termos (inicial e final) há um elo de ligação, como um rio que liga a nascente à foz, mas que deve correr entre margens.
Em termos metafóricos, o tipo de água que desemboca na foz de um rio condiciona-se ao tipo de água que jorra da nascente. Do mesmo modo, o conteúdo de uma sentença muito se condiciona pela natureza do pedido. Voltando à acepção técnico-jurídica do tema, pode-se dizer que essa dinâmica entre o início e o fim do processo judicial funciona com base
[...] em “três regras do nosso processo civil, três regras que estão muito ligadas entre si, que formam um conjunto a cujo respeito é difícil falar separando os elementos.
A primeira é a regra de que o pedido tem de ser certo e determinado: está no art. 286, caput, do CPC (LGL/1973/5). [...].
Uma segunda regra que a peça nos traz à mente é a da interpretação restritiva do pedido. Ela consta também do nosso Código, art. 293. [...]
Terceiro princípio [...] é o da correlação [...] entre a sentença e o pedido.
(Moreira, 1996)
O princípio da correlação, também chamado de princípio da congruência ou da adstrição, consta do art. 460 do Código de Processo Civil (CPC) e contém uma proibição ao juiz, impedindo que ele profira sentença “a favor do autor, de natureza diversa da pedida” ou “condene o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado”.
Note-se que se trata de uma garantia dúplice: o autor não terá benefício além do que foi pedido ao tempo em o réu não será condenado em prestação diversa ou superior da que lhe é imputada. Alguns relacionam ao princípio dispositivo (Moreira, 1996), à inércia da jurisdição e ao contraditório, pois ao tempo em que o juiz somente atuaria mediante e nos termos da provocação das partes, ao réu deveriam ser dados todos os elementos necessários à defesa (Neves, 2010: 480-481).
Como bem coloca Elias (2008), trata-se de método que privilegia a segurança, conferindo “aos sujeitos certo grau de previsibilidade quanto ao conteúdo da decisão nele proferida, compõem um foco de tensão no processo civil brasileiro atual”.
De que forma, então, seria possível delimitar no âmbito de uma petição inicial e de uma sentença a forma de atuação ou abstenção do Estado ou de particulares para que fosse assim cumprido um direito fundamental? Como garantir o direito a saúde e educação? Como garantir o direito à privacidade quando ameaçado? Como pleitear judicialmente medidas para evitar a poluição de um rio?
Essas dificuldades práticas justificam as exceções ao princípio da congruência que a legislação e a doutrina preveem, casos em que sua estrita observação poderia obstar a efetividade do provimento judicial.
Uma das exceções trata justamente das sentenças em obrigação de fazer ou não fazer, bastante comuns no âmbito dos direitos fundamentais, que se realizam por meio de ações e abstenções. As disposições legais de exceção ao princípio surgiram primeiro com o art. 84. do Código de Defesa do Consumidor (CDC), no âmbito dos processos coletivos. Mais tarde, foram incorporados ao CPC, com a alteração do art. 461. Em ambos os casos, a legislação “liberou” o juiz das amarras do pedido, outorgando-lhe o direito de conceder tutela específica da obrigação ou determinar as providências que assegurem o resultado prático da medida.
Elias (2008) resume a mudança de paradigma na legislação, no sentido de mitigar o princípio da correlação:
A Lei 8.952/1994, que procedeu à alteração do art. 461. CPC (LGL/1973/5), eliminou a necessidade de processo específico de execução da sentença de procedência em feito que tenha por objeto obrigação de fazer ou não fazer. O mesmo ocorreu para processos que tratem de obrigação de dar, consoante redação do art. 461-A do CPC (LGL/1973/5), conferida pela Lei 10.444/2002. Mais que isso, alterações no diploma processual, também promovidas pela Lei 11.232/2005, romperam a tipicidade da execução dessas sentenças: a execução - como método processual - foi reservada como satisfação de dever oriundo de obrigação de pagar constante em título executivo ou sentença; para os deveres oriundos de obrigação de dar, fazer ou não fazer, o método processual é o cumprimento, atípico. É a sistemática expressamente imposta pelo art. 475-I do CPC (LGL/1973/5).
A atipicidade referida salta dos próprios termos do art. 461, § 5.º, do CPC (LGL/1973/5) (ao qual o art. 461-A, § 3.º, do CPC (LGL/1973/5) faz referência e remissão), cuja previsão das "medidas necessárias" para o cumprimento - "imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva" - são apenas exemplificativas, conforme denota a expressão "tais como". O próprio sistema do cumprimento de sentença permite, portanto, que o julgador opere à escolha do mecanismo mais adequado, diante das circunstâncias do caso concreto.
Como se viu no tópico anterior, o estudo dos direitos fundamentais com base na teoria dos status implica reconhecer diversas obrigações de fazer e não-fazer na relação Estado-Indivíduo. Nada mais natural, portanto, do que reconhecer que a discussão judicial em torno dos direitos fundamentais, dar-se-á, necessariamente, em relação a uma ação ou abstenção estatal.
A petição inicial, portanto, deverá conter um pedido de um obrigação de fazer ou não-fazer bem formulada, de modo que o réu possa se defender tendo alguma noção de previsibilidade. No entanto, quando da prolação da sentença, o juiz terá certa liberdade para determinar o fazer ou não-fazer dentro ou fora do que foi pedido, orientando-se, contudo, pela decisão que melhor assegure o resultado prático da medida.
Marinoni (2004) faz exatamente a vinculação que aqui se propõe. Depois de relatar a forma como os direitos fundamentais foram sendo descortinados, tal qual se faz na teoria geracional, assevera que a melhor forma de tutelá-los seria por meio de alguma tutela inibitória. Apesar do nome, seria aplicável não só nos casos de obrigação de não-fazer, inibindo um comportamento eventualmente causador de dano, mas também nas obrigações de fazer. Neste último caso, tratar-se-ia de um tutela inibitória positiva:
Dessa forma, torna-se fácil compreender que a ação inibitória não visa somente impor uma abstenção, contentando-se, assim, com um não-fazer. O seu objetivo é evitar o ilícito, seja ele comissivo ou omissivo, razão pela qual pode exigir um não-fazer ou um fazer, conforme o caso.
O direito brasileiro possui normas processuais (arts. 84, CDC, e 461, CPC) que autorizam ao juiz não apenas impor um fazer ou um não-fazer, como também impor um fazer quando houver sido pedido um não-fazer, desde que o fazer seja mais adequado à proteção do direito no caso concreto.
De modo que, se o direito material exige um não fazer, nada impede que o juiz ordene um fazer para que o direito seja efetivamente tutelado. Assim, por exemplo, se alguém está proibido de perturbar a vizinhança, nada impede que o juiz, ao invés de ordenar a paralisação da atividade, ordene a instalação de determinado equipamento. Nesse caso, partindo-se da premissa de que não há regra de direito material que obrigue a instalação do equipamento, a imposição do fazer decorre do poder conferido ao juiz, pela legislação processual (arts. 84, CDC, e 461, CPC), de se valer – evidentemente mediante fundamentação – da medida executiva mais adequada ao caso concreto.
Porém, quando é o próprio direito material, com o objetivo de assegurar a prevenção, que estabelece um dever de fazer, a violação da norma já configura violação de dever positivo. Assim, a diferença é que, na hipótese do parágrafo anterior, estabelece-se dever negativo e, nesta última, dever positivo. Entretanto, se o dever negativo pode levar a uma ordem de fazer (em razão da legislação processual), e nesse caso há prestação de tutela inibitória positiva, é pouco mais do que óbvio que a ordem judicial de fazer, que objetiva impor a observância do dever positivo, constitui tutela inibitória positiva.
A expressão (ação inibitória), assim, não deve condicionar ou limitar o pedido a um não-fazer. Como observa o mesmo autor:
Imaginar que a tutela inibitória somente pode impor um não-fazer é esquecer que o próprio direito processual (arts. 461, CPC e 84, CDC ) dá ao juiz o poder de impor um fazer quando foi pedido um não fazer com o objetivo de viabilizar uma tutela jurisdicional mais efetiva, e, mais do que isso, que existem normas de direito de material que, com o objetivo de prevenção, impõem condutas positivas. Ora, se a norma de direito material impõe uma conduta positiva com o fim de proteger um direito, é evidente que a ordem judicial de fazer, no caso em que o dever positivo foi violado, presta tutela jurisdicional inibitória.
Isso não significa dizer que o juiz esteja completamente livre para decidir. Moreira (1996) adverte que “o juiz deve ter a virtude da auto-contenção”, por isso “deve julgar todo o pedido e só o pedido, e não deve dizer absolutamente nada sobre o que não esteja contido nesse círculo”. Esse limite de auto-contenção revela-se um tanto subjetivo, personalíssimo e menos dogmático, mas não pode deixar de ser considerado.
Elias (2008) coloca como interessante limite o interesse do autor, perguntando-se:
na busca da solução cabal para o conflito, o juiz poderia ir além dos interesses do autor? Ao que nos parece, a resposta é negativa. Embora não mais haja perfeita correlação entre pedido e sentença de procedência - ao menos no que tange à previsão do método de cumprimento - é visível que o equilíbrio no cumprimento de tal sentença se dá pelo respeito ao patrimônio e personalidade do réu em face do maior proveito pretendido pelo autor. Pode o juiz conceder o pedido pelo método mais adequado, mas os atos para o cumprimento da decisão, na maioria das vezes dependentes do próprio autor (pelo pagamento de custas e despesas para a contratação de terceiros), não podem ser realizados sem a integral concordância deste. Mesmo que o juiz apreenda quantia em dinheiro no patrimônio do réu, para o custeio da obrigação de fazer ou dar a ser realizada por terceiro e que o autor nada tenha que desembolsar, parece-nos que é este, autor, o sujeito a prestar a anuência à determinação, sob pena de ser forçado a contratar, ainda que contra a sua vontade.
De modo mais sistematizado, Marinoni (2004) informa que a atuação do juiz estaria limitada pelo princípio da proporcionalidade, a ser avaliado segundo os critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito das medidas executivas a serem adotadas na decisão;
Com isso, o poder do juiz deixou de ser controlado, ou melhor, limitado pela lei. Porém, não é porque isso se mostrou necessário, que o poder do juiz poderá restar sem controle. A diferença é que, agora, tal controle não é mais feito pela lei, em abstrato, mas sim diante do caso concreto, por meio da regra hermenêutica da proporcionalidade.
[...]
Resumindo: quando se raciocina em relação aos limites do fazer ou do não-fazer – por exemplo, cessação da atividade ou instalação de equipamento antipoluente -, e não sobre a medida executiva para a implementação da ação material – por exemplo, ordem sob pena de multa para a cessação ou interdição da fábrica -, o juiz deve justificar a adequação, a necessidade e a prevalência do direito do autor sobre a restrição que pode ser causada ao direito do réu. Assim, por exemplo, se o Ministério Público, alegando que o réu está poluindo o meio ambiente, pede a cessação de suas atividades, e a prova pericial demonstra que basta, para conter a poluição, apenas a instalação de um equipamento antipoluente, não há racionalidade em desconsiderar a demonstração de que a atividade do réu está causando poluição ambiental. Como o juiz, no caso, está autorizado a conceder a tutela específica ou um resultado prático equivalente, ele tem o poder de fugir do pedido e, sempre considerando a sua fundamentação, impor a ação que se mostrou, em razão do desenvolvimento do contraditório, eficaz à proteção do direito do autor e, ao mesmo tempo, geradora da menor restrição possível ao réu (a instalação do equipamento antipoluente). Se a situação for inversa, tendo o Ministério Público pedido a instalação de equipamento antipoluente, e o contraditório demonstrado a necessidade de cessação das atividades, o juiz deverá demonstrar que o acolhimento do pedido do autor não será capaz de proporcionar o fim que deriva da fundamentação da petição inicial. Dessa forma, poderá determinar a cessação das atividades do réu, ainda que o pedido tenha sido de instalação de equipamento antipoluente.
Para exemplificar, suponha-se que, por conta da atuação ilícita de alguns policiais (prisões arbitrárias, tortura, desaparecimentos etc.) lotados em determinada unidade policial fosse ajuizada ação pelo Ministério Público solicitando sua desativação para, assim, fazer cessar a violação de direitos fundamentais pelo Estado.
O exemplo relatado traz clara violação de direitos fundamentais de primeira geração (vida, liberdade, incolumidade física, devido processo legal etc.). A obrigação exigível do Estado no caso seria uma abstenção (status negativus), configurado o ilícito na atuação quando se exigiria uma abstenção ou, no mínimo, uma atuação em desconformidade com a lei.
No caso, o objeto da ação (pedido) consiste em uma obrigação de fazer (desativação da unidade policial). A causa de pedir é a garantia de direitos fundamentais de primeira geração. De acordo com o que foi estudado até então acerca do princípio da correlação e suas exceções, em se tratando de obrigações de fazer ou não-fazer, o Poder Judiciário pode, julgando procedente o pedido, entender que a medida mais adequada não seja a extinção da unidade policial, mas a implementação de certos mecanismos de controle da atividade.
Assim, à luz do princípio da proporcionalidade, poderia o Judiciário entender que a desativação da unidade não atenderia a dois dos requisitos do referido princípio: não seria medida adequada, pois não garantiria o fim das violações, nem seria proporcional em sentido estrito, sendo possível atitudes menos drásticas para fazer cessar a indevida atuação do Estado onde lícito seria um abstenção.
O pedido seria deferido não exatamente como foi formulado, mas de forma a melhor adequar-se aos parâmetros de proporcionalidade, tendo em conta a natureza do direito pleiteado e o interesse do autor. No exemplo de decisão ora citado, pelo critério aventado por Elias, a sentença não poderia contrariar os interesses do autor. Por esse entendimento, uma sentença não poderia, por exemplo, impor ao próprio Ministério Público, responsável constitucional pelo controle externo da atividade policial (art. 129, VII, CF), eventuais obrigações para o resguardo do direito fundamental violado, pois implicaria numa condenação de quem figura no processo como autor, contra os seus interesses.