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O direito fundamental à moradia e o dilema da programaticidade dos direitos fundamentais de segunda dimensão

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26/03/2014 às 11:24
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O direito à moradia encontra-se em uma zona de interdependência. Privilegia-se tanto a liberdade - como direito subjetivo que detém o cidadão para proteção contra o Estado e terceiros -, quanto a igualdade, como direito de buscar prestação estatal para suprir suas necessidades básicas.

Resumo: O presente artigo tem por finalidade apontar o direito à moradia como pressuposto necessário para o estabelecimento de uma ordem justa e igualitária, informando a sua íntima relação com o princípio da dignidade da pessoa humana e a discussão doutrinária acerca da normatividade de tal direito, tendo em vista se tratar de prerrogativa abrangida pelos direitos de segunda dimensão, que demandam uma atuação estatal, sendo estes considerados por muitos meramente normas programáticas, desprovidas de obrigatoriedade.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais; Moradia; Eficácia das Normas Constitucionais.


1. O direito fundamental à moradia e sua repercussão (pressuposição) no estabelecimento de uma ordem justa e igualitária

Uma das preocupações precípuas do direito enquanto instrumento de justiça e equidade é o estabelecimento de uma ordem jurídica justa em que se expressam os valores de um povo, que são extraídos, dentre outros tantos, de arcabouços culturais, filosóficos, políticos, econômicos comungados pelos integrantes de tal grupo.

Nesse contexto, inserem-se os chamados direitos fundamentais, que são verdadeiros valores essenciais a qualquer sociedade que pretenda ser consensualmente justa. Na realidade, são limitações, ou ainda, abstenções, como também prestações positivas impostas ao Estado para a garantia de direitos basilares, aptos a proporcionarem condições adequadas ao desenvolvimento dos indivíduos nesse contexto inseridos, e estão profundamente relacionados com a contemporânea noção de Constituição[1] adotada nos mais diversos ordenamentos jurídicos. Eles expressam os axiomas cruciais de um povo, sendo a vida, a igualdade, a liberdade, a participação política alguns dos mais comumente encontrados nas Constituições afora.

Para, André Ramos Tavares, os direitos fundamentais são caracterizados:

(...) como as prerrogativas que a norma positivada atribui à pessoa quanto a sua vida, liberdade, igualdade, participação no contexto político, social, público ou as prerrogativas que se reportem a qualquer outro aspecto que afete seu desenvolvimento integral como pessoa, ou que digam respeito às condições de dignidade humana, inclusive quanto aos direitos difusos, e que constituem, todas elas, numa imposição de respeito exigível relativamente aos demais integrantes da comunidade, bem como, e principalmente, ao Poder Público, assegurada ainda a possibilidade de se acionar instrumentos eficazes na conservação ou reparação desses direitos em caso de sua ameaça ou infração efetiva.[2]

Dessarte, alguns diferenciam os direitos fundamentais dos chamados direitos humanos, conceituando-se aqueles como “manifestações positivas do Direito, com aptidão para a produção de efeitos no plano jurídico, dos chamados direitos humanos”[3] e estes como “pautas ético-políticas, situados em uma dimensão supra-positiva, deonticamente diversa daquela em que se situam as normas jurídicas – especialmente aquelas de Direito interno”[4]. Utilizaremos, pois, a terminologia direito fundamental, tendo em vista que o direito à moradia já se encontra positivado em nossa ordem interna – malgrado ser também, sem dúvida, reconhecido como direito humano, porquanto reconhecido internacionalmente em Pactos e Tratados Internacionais.

Reconhece-se, no entanto, que diversa é a situação em Estados não democráticos, totalitaristas, desrespeitadores dos direitos e garantias fundamentais, onde o direito nada mais é do que uma verdadeira arma contra o povo, não passando a Constituição de tais países de meras expressões semânticas, desprovidas do conteúdo materialmente constitucional imprescindível da limitação do poder estatal, concretizado através da garantia de direitos fundamentais historicamente conquistados.

Assim, deduz-se ser impossível coexistir, de um lado, Estado totalitarista, e, de outro viés, uma ordem jurídica justa e igualitária asseguradora de direitos e garantias fundamentais, porquanto esta forma de Estado não encontra legitimação na vontade do povo que bem se expressa, vale dizer, através de instrumentos próprios de um Estado Democrático de Direito. Nesses Estados os valores e princípios perseguidos se baseiam no entendimento tirânico de um dado ditador, ou de determinado grupo social; e não nos valores consagrados pelo povo, verdadeiro titular do poder soberano. Nessa toada é o pensamento de Jorge Miranda, para quem:

Não há direitos fundamentais sem reconhecimento de uma esfera própria das pessoas, mais ou menos ampla, frente ao poder político; não há direitos fundamentais em Estado totalitário ou pelo menos, em totalitarismo integral. Em contrapartida, não há verdadeiros direitos fundamentais sem que as pessoas estejam em relação imediata com o poder, beneficiando-se de um estatuto comum e não separadas em razão de grupos ou das condições a que pertençam; não há direitos fundamentais sem Estado ou, pelo menos, sem comunidade política integrada.[5]

Desse modo, tem-se que o pressuposto panorâmico ideal de uma ordem jurídica justa e igualitária é o preconizado por Abraham Lincoln em um de seus notáveis discursos, onde o eminente ex-presidente dos Estados Unidos expressa que “government of the people, by the people, for the people shall not perish from the Earth”, ou seja, o governo do povo, pelo povo, para o povo não desaparecerá da Terra, demonstrando, destarte, a necessidade de um governo democrático em que o povo é principal e último destinatário de suas ações, descartando-se, em prol da coletividade, os interesses amesquinhados de um dado grupo social.

Assim, extraindo-se, pois, a validade de tal ordem jurídica de uma norma hipotética fundamental, como nos lecionou Kelsen; de um postulado moral autoevidente como pensavam os jusnaturalistas, representados por Santo Tomás de Aquino, Grócio e Radbruch, dentre outros; de um contrato social, como afirmavam Hobbes, Locke e Rousseau; ou de um agir comunicativo, no entender de Habermas, onde o consenso é producente, percebe-se - independentemente da fonte de validade adotada - a premente necessidade de se alcançar - através da Constituição e de sua concretização - valores como igualdade, liberdade e justiça, em qualquer ordem jurídica que pretenda se legitimar perante o povo, o titular primeiro da soberania estatal, porquanto são valores universalmente perseguidos.

Outrossim, a liberdade aparece como axioma precursor da igualdade, tendo em vista ser impossível se falar em igualdade promovida e prestada pelo Estado, sem antes haver a garantia de abstenções elementares do Estado em face do cidadão. E esse é o percurso que a história tem demonstrado mais lógico, qual seja, primeiro se garante uma série de limitações ao poder Estatal, para que, ulteriormente, a igualdade seja promovida através dos mais diversificados meios. A conclusão não seria outra, diante do surgimento dos direitos humanos de segunda dimensão – utilizando-se a terminologia mais apropriada -, a saber, os direitos sociais, econômicos e culturais, que somente vieram à tona após a estabilização de um sistema protetor das conhecidas liberdades públicas - melhor dizendo - dos direitos fundamentais de primeira dimensão.

Nesse sentido, após a proteção e estabilização concretas dispensadas às liberdades públicas, faz-se necessária a promoção da igualdade material, que somente é alcançada com ações afirmativas e corretivas do estado, de sorte que, em determinadas situações, “a balança penda para o lado dos desfavorecidos”, a fim de se assegurar equidade nas situações em que o tratamento igualitário gere desigualdade. Somente assim há isonomia, visto que não há como tratar igualmente pessoas que se encontram em posições de desigualdade.

Portanto, a promoção da igualdade, em sua acepção material, surge como estágio seguinte de desenvolvimento dos direitos fundamentais, buscando reparar as desigualdades perpetradas pelo poder econômico avultado sobremaneira com o liberalismo. E foi como ocorreu com o advento dos direitos sociais, inaugurados pela Constituição mexicana de 1917 e pela, não menos relevante, Constituição de Weimar de 1919, que dispunham de dispositivos que tratavam da função social da propriedade, reforma agrária, proteção ao trabalho, previdência social, etc., todos estes intimamente relacionados com o axioma da igualdade.

Nesse diapasão, demonstrando a finalidade primordial dos direitos sociais como compensatórios das desigualdades fáticas, Ingo Sarlet bem esclarece:

(...)os direitos fundamentais sociais em geral, notadamente na sua condição de direitos a prestações, objetivam, em primeira linha, uma compensação das desigualdades fáticas de modo a assegurar a proteção da pessoa ( de qualquer pessoa) contra as necessidades de ordem material, garantindo uma existência com dignidade.[6]

Ao seu tempo, a Constituição Federal de 1988 vem garantindo esse valor fundamental, vale dizer, o da isonomia material, através de prestações materiais que promovem o Welfare State, ou melhor, o bem-estar social, onde as desigualdades são corrigidas através de leis e políticas públicas de cunho notadamente social, como podemos ver nos benefícios assistenciais assegurados pelo Estado, nas hipóteses previstas em lei; nos benefícios previdenciários, e na situação privilegiada de que dispõem os hipossuficientes em determinadas situações, como por exemplo, na defesa de seus direitos trabalhistas.

Entretanto, há quem diga que os direitos sociais não se reduzem à promoção da igualdade, mas se revelam como uma verdadeira face da liberdade, a saber, aquela em que o estado propicia as condições favoráveis e necessárias para que os indivíduos sejam livres de tal maneira que possam ter os bens considerados minimamente necessários a uma existência digna. Enquanto os direitos de primeira dimensão expressam ‘liberdades de’ – associação, crença religiosa, expressão, etc. -, os direitos de segunda dimensão eclodem ‘liberdades para’ – trabalhar, morar, envelhecer, dignamente -. Esse é o ensinamento de David Kelley, muito bem colacionado pela professora Flávia Piovesan:

Os direitos clássicos são direitos à liberdade de ação, enquanto os direitos ao bem-estar são direitos para obter bens. Essa distinção tem frequentemente sido descrita como a diferença entre ‘liberdade de’ e ‘liberdade para’. Os direitos clássicos garantem a liberdade da interferência de outros [...],  enquanto os direitos ao bem-estar garantem a liberdade para ter coisas variadas que são vistas como necessárias. Isso significa, em essência, que os direitos clássicos de liberdade (liberty rights) estão preocupados com processos, enquanto os direitos ao bem-estar estão preocupados com resultados.[7]

Por essa razão, a promoção da moradia como direito fundamental tem papel ímpar na correção da desigualdade há muito fomentada pelos ideais liberalistas, despreocupados com as questões sociais - que estão hoje bastante agravadas, em grande parte, por esse descaso perpetrado ao longo de vários anos.

Mas é oportuno notar, como se verá adiante, que o direito fundamental à moradia encontra-se em uma zona de interdependência, muitas vezes se imiscuindo os valores por ele garantidos, privilegiando-se tanto a liberdade, em sua concepção negativa, como direito subjetivo do qual detém o cidadão como proteção necessária em face do Estado e de terceiros, quanto a igualdade, em sua concepção positiva, em que se busca a prestação estatal de um serviço que supra as necessidades básicas de seus “súditos”.

Dessa forma, a busca pela equidade, como pressuposto fundamental-ético do direito, e a inserção dos excluídos - enquanto legitimação desse pressuposto - são sobremaneira alcançados quando se é garantido, além de outros direitos sociais, o direito à moradia.


2.  O direito à moradia e o princípio da dignidade humana

Trata-se, pois, de um direito cujo conceito deve estar intimamente atrelado ao princípio da dignidade da pessoa humana, esculpido no art. 1º, III de nossa Constituição Cidadã. O direito de morar não se apega unicamente ao fato de se habitar nalgum lugar, mas de que esse lugar seja minimamente adequado e proporcione básicas condições físico-sanitárias ao indivíduo que nela habita. Não há como se falar em efetivo direito à moradia diante barracos por onde passam esgotos a céu aberto, por exemplo.

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Mas o que é o princípio da dignidade da pessoa humana? Como evitar que sua vulgarização o torne algo redundante, vago e amplo demais, servindo como base para a defesa de qualquer pretensão? Qual seria a sua extensão e os seus limites?

Tais respostas têm sido encontradas na aplicação de três “conceitos doutrinários”, quais sejam, a fórmula do objeto, a expressão de desprezo e o mínimo existencial.

O primeiro deles, resultante das considerações filosóficas de Kant, informa-nos que o ser humano deve ser tratado sempre como um fim em si mesmo, de tal forma que, a sua utilização como mero objeto/instrumento para se atingir determinada finalidade, deve ser rechaçada, sob pena de incorrer-se em violação da dignidade humana. Destarte:

(...)o que caracteriza a pessoa como pessoa é o seu espírito, que lhe permite fazer escolhas próprias, advindas de sua própria consciência, além de definir a si mesmo e construir o mundo ao seu redor. Assim, a dignidade é qualidade inerente a todas as pessoas, que pode ser considerada atingida toda vez que  pessoa concreta for rebaixada à condição de objeto, tratada como um mero instrumento, como uma coisa.[8]

O segundo deles, desenvolvido pela corte Constitucional Alemã, acreditando ser insuficiente a utilização, única e exclusiva, da fórmula do objeto de Kant para delimitar quando ocorreu de fato violação à dignidade da pessoa humana, preconiza que esta é abalada quando o tratamento dado ao ser humano – como objeto – é fruto de uma expressão de desprezo em razão de uma peculiaridade que lhe é inerente, como ocorreu à época da Alemanha nazista, em que os judeus, ciganos, testemunhas de Jeová, homossexuais eram tratados como seres humanos inferiores, sendo “usados como objetos” nas mais absurdas pesquisas. Ambos conceitos são classificados como aspectos negativos da dignidade da pessoa humana.

O último deles reflete a dimensão positiva deste ímpar princípio, porquanto é necessária a atuação estatal para a garantia, ao cidadão, do mínimo existencial, aquilo que lhe é vital, que abrange: “o conjunto de prestações materiais que asseguram a cada indivíduo uma vida com dignidade, que necessariamente só poderá ser uma vida saudável, que corresponda a padrões qualitativos mínimos” [9].

Assim, é certo que a moradia se situa como condição sine qua non para que o indivíduo seja respeitado – sem ser desprezado - como ser humano – e não como mero objeto – e lhe seja garantido o mínimo existencial – visto que é vital ao ser humano habitar em um lugar minimamente digno que lhe proporcione, ao menos, segurança contra as intempéries, intimidade e saúde (o local em que se habita deve ser sanitariamente adequado). Destarte, resta evidente a relação interdependente entre dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à moradia.

Não é outra a conclusão de Ingo Wolfgang Sarlet quando aduz que

(...)sempre haveria como reconhecer um direito fundamental à  moradia como decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal), já que este reclama, na sua dimensão positiva, a satisfação das necessidades existenciais básicas para uma vida com dignidade, podendo servir até mesmo como fundamento direto e autônomo para o reconhecimento de direitos fundamentais não expressamente positivados, mas inequivocamente destinados à  proteção da dignidade e do assim chamado mínimo existencial(...).[10]

Superado este ponto, o que há de ser considerado como mínimo existencial, isto é, quais os elementos básicos para que a moradia atenda, de fato, à dignidade humana? Interessante resposta a esse questionamento encontra-se no parágrafo 8º do comentário-Geral nº 4 editado pela Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, que bem reflete os padrões internacionais para a garantia de uma moradia digna:

a) Segurança jurídica para a posse, independentemente de sua natureza e origem, incluindo um conjunto de garantias legais e judiciais contra despejos forçados;

b) Disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia da saúde, segurança, conforto e nutrição dos titulares do direito (acesso à água potável, energia para o preparo da alimentação, iluminação, saneamento básico, etc.).

c) As despesas com a manutenção da moradia não podem comprometer a satisfação de outras necessidades básicas.

d) A moradia deve oferecer condições efetivas de habitação, notadamente assegurando a segurança física aos seus ocupantes.

e) Acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente para os portadores de deficiência.

f) Localização que permita o acesso ao emprego, serviços de saúde, educação e outras serviços sociais essenciais.

g) A moradia e o modo de sua construção devem respeitar e expressar a identidade e diversidade cultural da população.[11]

Desse modo, não basta que o Estado ou o terceiro se abstenha de prejudicar, através de uma intervenção tirânica, absolutista e descabida, a moradia alheia – senão nas hipóteses previstas constitucional e legalmente, desde que o interesse público seja o seu objetivo -, mas ele deve proporcionar aos cidadãos os meios adequados para que todos tenham acesso a um “teto digno”.

Isso se dá não só pela observância da função social da propriedade (art. 5º, XXIII, e artigos 170, inciso III e 182, parágrafo 2º), do usucapião especial urbano, previsto no texto constitucional em seu art. 183 da Constituição Federal, mas também através do crédito habitacional facilitado. Nesse sentido é que Luiz Carlos Forghieri Guimarães assevera que o direito à moradia “constitui um direito substancial do ser humana que se concretiza no crédito habitacional como um dos instrumentos de acesso à habitação.”[12]

Por oportuno, vale lembrar que o direito fundamental à moradia, como expressão do princípio da dignidade humana, por meio do qual se garante uma existência digna a todo e qualquer ser humano, vem sendo reconhecido como direito humano não de agora pouco, mas de longa data, a exemplo do que preceitua o art. XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), documento basilar de uma ordem internacional preocupada com a defesa dos direitos humanos, assim preconizando:

(...) todos têm direito ao repouso e ao lazer, bem como a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos, e serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. (grifo nosso)

Desse modo, pode-se inferir que o mínimo existencial, necessário à existência digna de qualquer pessoa humana, alcança tonalidade notadamente indissociável do direito à moradia, porquanto diversos outros direitos da pessoa humana são garantidos pela moradia digna, como, verbi gratia, o direito à intimidade, à honra, à vida privada, ao sigilo de correspondência, dentre tantos outros.

A esse respeito bem elucida o preclaro Sergio Iglesias de Souza:

Não se pode olvidar, ainda, que o direito à moradia, por se constituir em direito essencial do ser humano, está protegido como decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana positivado no texto constitucional, como verdadeira consequência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Resolução 217 A, III da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10.12.1948. De fato, há que se conceber o direito à moradia como elemento primacial do reconhecimento de sua dignidade enquanto pessoa, já que a questão da dignidade, não obstante tratar-se de um valor espiritual e moral, também é instituto de proteção jurídica, daí o direito à moradia estar  intimamente relacionado a outros direitos, já que pelo fato de morar sob um teto, em um local determinado, tem-se também direito a outros direitos, como o direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, ao sigilo de correspondência da sua residência, ao segredo doméstico, ao sossego, à educação, pois não há como admitir o exercício de um direito sem outro, porquanto são tão essenciais que se unem em um só indivíduo, de forma que não se pode separá-los integralmente ou definitivamente. Não há como obter vida digna dentro de situação subumana, como aquelas em que falta, por exemplo, saneamento básico.[13]

Assim, nos dizeres de Tereza Cristina Ferreira “o direito de habitação foi reconhecido de forma taxativa como um dos elementos capazes de assegurar um padrão de vida de acordo com a própria dignidade de existência do ser humano, motivo pelo qual foi elevado ao patamar de direito humano”[14]

A moradia, nesse viés, é condição de realização pessoal do indivíduo, mas também é abrigo contra o frio, contra o calor, contra chuva, contra o vento; é proteção, e, de igual modo, é expressão da vida privada, onde acontecerão, ou não, os enlaces afetivo-familiares entre marido e mulher, pais e filhos, representando um autêntico núcleo de desenvolvimento social do indivíduo, porquanto é a “primeira escola”, “a primeira congregação”, “o primeiro clube”, “o primeiro plenário” onde adquire experiências e tira suas próprias conclusões acerca da vida e dos relacionamentos intersubjetivos que o cercam. É também segurança e riqueza, pois em um cenário de instabilidades econômicas, a casa própria se apresenta como um alento, um refúgio, um bem de valor inestimável (apesar de ser economicamente calculável, não o é em seu aspecto psicológico-espiritual).

Dessa forma, o direito à moradia não se limita, pura e simplesmente, à garantia de ocupação de um espaço físico disponível ao homem. É muito mais abrangente do que isso. Do contrário, estar-se-ia afirmando que moradores de rua - que dispõem de locais precaríssimos para habitarem, vale dizer, debaixo de pontes, viadutos, nas calçadas debaixo de marquises - ou de favelas sem as mínimas condições de saneamento básico exercem, de fato, este direito, o que seria um despautério sem medida.

Nesse aspecto é que se vê que:

Existe uma ligação entre direito à moradia e o direito à vida, à dignidade da pessoa humana, à integridade física, à educação, à assistência, à inviolabilidade do domicílio, à função social da propriedade, etc., demonstrando que é um direito interdependente, não isolado, portanto, conjugado a outros direitos também fundamentais.[15]

Outrossim, possui dimensão ambivalente evidenciada quando se percebe que a mesma proteção guardada ao direito de propriedade deve ser garantida ao dever do Estado de promover o bem-estar social.

Contudo, a consolidação desse direito se constrói não apenas por intermédio do Direito enquanto fator de aplicação de justiça, mas por um conjunto integrado de forças como vontade política, estabilidade econômica, paz social, etc.. A efetividade desse direito não é trazida isoladamente, ainda que o Estado concentre esforços na implantação de políticas públicas com a finalidade de reduzir, senão acabar, com o déficit habitacional herdado de décadas de crescimento urbano sem planejamento. O Governo, então, acaba intervindo direta e indiretamente na economia, através de seus subsídios e das condições que cria para o desenvolvimento desse direito.

Num país de dimensões colossais como o Brasil, o rápido crescimento urbano, a estrutura de distribuição espacial e funcional da riqueza e da renda, as crises financeiras pelas quais o Estado passa, o deficiente funcionamento do judiciário, a desigualdade de participação política da população interferem diretamente no aumento desse déficit habitacional.

É por esse motivo que a problemática habitacional deve ser enfrentada sob uma ótica interdisciplinar, envolvendo prismas políticos, econômicos, jurídicos e sociais. Entretanto, a história do Brasil tem mostrado que o desenvolvimento de apenas um desses prismas é, muitas vezes, ineficaz. Veja-se, verbi gratia, o “Período do milagre” vivenciado durante o regime da ditadura militar em que os índices do PIB cresciam surpreendentemente enquanto a questão habitacional era deixada de lado. Ressalve-se, então, que apesar de ser necessária uma economia saudável para o enfrentamento dessa problemática, essa condição não é suficiente para acabar com o déficit habitacional. De igual modo, um cenário político propício para o desenvolvimento de políticas públicas envolvendo habitação, em que a liberdade é respeitada e o autoritarismo combatido, não garante por si só o sucesso dessa empreitada. É necessário, sim, racionalidade e disciplina na enunciação de objetivos e na definição de instrumentos viáveis para alcançá-los.

É nesse contexto que o conceito da função social da propriedade deve ser desenvolvido, como um eficaz instrumento para o alcance desse objetivo – desde que corretamente operacionalizado. Isso porque não há nada mais justo do que o Estado, que por meio de obras públicas promove a valorização dos imóveis, exija do particular uma contrapartida social, cobrando-se deste um uso socialmente sustentável do espaço físico/propriedade de que dispõe, desestimulando-se, com isso, a especulação imobiliária e o aumento do déficit habitacional.

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Sobre o autor
Pedro Henrique Luthold

Analista do Ministério Público Federal, bacharel em direito pela UFMS, pós-graduando em direito penal e processo penal pela faculdade Damásio de Jesus.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUTHOLD, Pedro Henrique. O direito fundamental à moradia e o dilema da programaticidade dos direitos fundamentais de segunda dimensão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3920, 26 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27173. Acesso em: 19 abr. 2024.

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