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O direito fundamental à moradia e o dilema da programaticidade dos direitos fundamentais de segunda dimensão

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26/03/2014 às 11:24
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3. Mitigações necessárias à efetivação do direito fundamental à moradia e a concretização dos direitos sociais como expressão da força normativa e supremacia da Constituição

Para alcançar a finalidade de promover a igualdade e inserir os excluídos, através da viabilização do direito à moradia, propiciando dignidade humana à popoulação, faz-se necessário que certos direitos individuais sagrados pela revolução liberal-burguesa, em meados do século XVIII, sejam, de certo modo, mitigados, relativizados, dando lugar a direitos que expressam justiça social, em que os desfavorecidos obtêm “favor” do Estado, que atua na promoção do bem-estar, visando à isonomia material e ao equilíbrio social. Desse conceito derivam as ideias de função social da propriedade, reforma agrária, distribuição de renda, dentre outros tantos. Essa mitigação/relativização deverá ocorrer tanto no momento da produção legislativa, funcionando a Constituição como instituidora de princípios informadores que dão orientação ao legislador a respeito da vontade do Constituinte, como também por meio da hermenêutica, quando da aplicação da lei pelos órgãos julgadores.

Assim, diante da colisão de direitos fundamentais – v. g. direito de moradia x direito de propriedade -, deve-se ter sempre como norte, para solução do caso concreto, os princípios: da unidade da Constituição, cujo conteúdo expressa que “a Constituição deve ser sempre interpretada em sua globalidade como um todo e, assim, as aparentes antinomias deverão ser afastadas”[16]; da concordância prática (harmonização), que preceitua que “os bens protegidos jurídico-constitucionalmente devem, na resolução do problema ser coordenados um ao outro de tal modo que cada um deles ganhe realidade”[17], sem descurar da máxima efetivação dos direitos fundamentais e do menor sacrifício alcançado na solução do problema. A ponderação dos valores em questão, ainda, deverá levar em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, bem como os seus corolários lógicos, vale dizer, a proibição do excesso e a proibição da proteção insuficiente. Somente assim, através de uma escorreita e integrada interpretação de nossa Carta Maior é que a essência da Constituição - que nada mais contém do que os valores sacralizados pelo povo ao longo de sua história - não será conspurcada por interpretações equivocadas e destoadas da finalidade à qual deva ela servir.

Ademais, deve-se buscar a máxima eficácia dos preceitos dispostos na Constituição. E é nesse sentido que a programaticidade de algumas normas - dentre as quais alguns autores incluem o direito à moradia, decorrentes das Constituições dirigentes apontadas por Canotilho – deve ser alijada como escusa da incapacidade estatal de desempenhar adequadamente seu mister. Alguns autores, ainda assim, divergem quanto à eficácia dos direitos sociais, dos quais está o direito à moradia, alegando que estes, por dependerem de prestações positivas do Estado e de condições político-econômicas favoráveis, devem ser vistos como meros objetivos, alvos a serem atingidos, através das políticas públicas. Flávia Piovesan bem nos alerta acerca dessa conclusão precipitada e reducionista, demonstrando que o fato dos direitos sociais dependerem de prestações materiais do estado não é argumento suficientemente forte para esvair-lhe seus efeitos, pois:

(...) tanto os direitos sociais como os civis e políticos demandam do Estado prestações positivas e negativas, sendo equivocada e simplista a visão de que os direitos sociais só demandariam prestações positivas, enquanto os civis e políticos demandariam prestações negativas, ou a mera abstenção estatal. A título de exemplo, cabe indagar qual o custo do aparato de segurança, mediante o qual se assegura direitos civis clássicos, como o direito à liberdade e o direito à propriedade, ou ainda qual o custo do aparato eleitoral, que viabiliza os direitos políticos, ou do aparato de justiça, que garante o direito ao acesso ao judiciário. Isto é, os direitos civis e políticos não se restringem a demandar a mera omissão estatal, já que sua implementação requer políticas públicas direcionadas, que contemplam também um custo.[18]

Portanto, inexiste razão para se distinguir direitos de primeira dimensão dos de segunda dimensão através do critério de prestação material, tendo em vista que ambos demandam prestações materiais do estado.

 No plano internacional, a resistência em face da normatividade de tais direitos é ainda maior, resultando que o próprio Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais confira essa característica programática aos direitos fundamentais de segunda dimensão, preconizando que os estados devem apresentar suas realizações progressivamente, até o máximo de seus recursos disponíveis, através dos reports, que são relatórios periódicos demonstrativos das medidas adotadas em cada Estado-parte. Diferentemente do que ocorre com os direitos previstos no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, onde a fiscalização e as obrigações de observância de tais direitos são cobradas de forma mais rigorosa, através de instrumentos como comunicações interestatais, comunicações individuais e a própria atuação fiscalizatória do Comitê de Direitos Humanos.

Nesse cenário comunitário global, em que tal direito é admitido como verdadeiro Direito Humano, a despeito do tratamento a ele dispensado, conforme supra mencionado, deve-se levar em consideração a posição doutrinária que proclama a indivisibilidade dos direitos humanos, não se reconhecendo qualquer diferenciação de ordem prática entre os Direitos Civis e Políticos e os Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, porquanto tais direitos têm por característica a unicidade, a indivisibilidade.

Assim, à indivisibilidade, ou à unidade essencial, dos direitos humanos, averbada internacionalmente pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da Resolução de 4 dezembro de 1986 (A/RES/41/128) deve-se dar especial atenção ao se prescrever que:

(...) todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes, devendo-se, a fim de promover o desenvolvimento, dar igual atenção e considerar como urgente a implementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

Refutados, destarte, os argumentos que explicitam a necessidade de diferenciação entre os direitos fundamentais de primeira e segunda dimensão, seja pelo critério da prestação estatal, quanto pela distinção de sua natureza jurídica, passemos à análise do pátrio cenário.

No plano interno, alguns tribunais têm esvaziado o conteúdo do direito à moradia, asseverando que “a mera inclusão da moradia entre os chamados direitos sociais não tem o efeito de convertê-los em direito individual”[19]. Entendemos, contudo, que tal interpretação está equivocada, porquanto os direitos sociais contêm, além de conteúdo informativo – e programático, diga-se-, apto a direcionar as três esferas de poder de nossa República Federativa, direitos subjetivos imediatamente aplicáveis, nos termos do art. 5º, §1º da CF/1988.

Assim, podem-se extrair duas dimensões dos direitos sociais talhados em nossa Magna Carta, uma negativa, que é imediatamente aplicável, onde se tem uma proteção em face de qualquer abuso cometido pelo Estado ou terceiro, e outra positiva, da qual se extrai o dever jurídico do Estado de oferecer prestações materiais condizentes com o direito informado[20].

Do mesmo modo ocorre com o direito à moradia. Nesse sentido, José Afonso da Silva nos leciona que o direito à moradia:

(...) é daqueles direitos que têm duas faces: uma negativa e uma positiva. A primeira significa que o cidadão não pode ser privado de uma moradia nem impedido de conseguir uma, no que importa a abstenção do Estado e de terceiros. A segunda, que é a nota principal do direito à moradia, como dos demais direitos sociais, consiste no direito de obter uma moradia digna e adequada, revelando-se como um direito positivo de caráter prestacional, porque legitima a pretensão do seu titular à realização do direito por via de ação positiva do Estado. É nessa ação positiva que se encontra a condição de eficácia do direito à moradia. E ela está prevista em vários dispositivos de nossa Constituição, entre os quais se destaca o art. 3º, que define como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade justa e solidária, erradicar a marginalização – e não há marginalização maior do que não se ter um teto para si e para a família – e promover o bem de todos, o que pressupõe, no mínimo, ter onde morar dignamente.[21]

Ingo Sarlet ratifica esse pensamento, demonstrando-nos que:

(...) na sua condição de direito (subjetivo) de defesa o direito à moradia tem por objeto em primeira linha a sua não-afetação por parte do Estado, ao passo que na sua condição de direito a prestações, o direito à moradia terá por objeto a criação e estruturação de órgãos, a edição de normas que estabeleçam procedimentos de tutela e promoção dos direitos, o fornecimento de bens e serviços ou outras ações comissivas.[22]

Dessa forma, entendemos que, caso se compreenda a dimensão positiva do direito à moradia como norma programática, dependente de uma conjuntura político-econômica para ser implementado (posição de que ousamos discordar), ao menos em sua dimensão negativa deve-se corroborar sua eficácia e aplicabilidade imediata. Nesse sentido, novamente, Ingo Sarlet nos instrui:

(...) a atribuição de caráter meramente programático ao direito à moradia, refutando até mesmo uma eficácia negativa da norma constitucional, representa um flagrante retrocesso em relação ao entendimento atualmente majoritário de que qualquer norma constitucional (mesmo de cunho programático) é apta a gerar efeitos diretamente aplicáveis, dentre os quais o efeito negativo de impedir atos que lhe sejam manifestamente contrários.[23]


4.Considerações finais

Deveras, tal direito não deve prevalecer como norma programática a ser perseguida pelo Estado e alcançada sabe-se lá quando, mas como verdadeiro direito, plenamente eficaz, visto que, à luz do §1º do art. 5º da CF, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

A discussão, entretanto, acerca da fundamentalidade dos direitos sociais, apesar de ainda haver uma certa celeuma doutrinária, resta majoritariamente ultrapassada, visto que a cláusula de abertura contida no art. 5º, § 2º da CF/1988 prevê a possibilidade de que outros direitos não mencionados no rol dos incisos do art. 5º da Constituição Federal se incorporem aos direitos tidos como fundamentais.

Observa-se, ademais, adotando-se uma ótica neoconstitucionalista em que, segundo a visão de Walber de Moura Agra, o caráter ideológico preponderante das constituições deve ser o de concretização dos direitos fundamentais[24] - e não mais a limitação do poder estatal pura e simplesmente - o direito fundamental à moradia se apresenta não como um valor a ser alcançado, mas como direito cuja efetividade deve ser evidenciada, tendo em vista a própria supremacia da Constituição e a decorrente força normativa que lhe é atribuída.

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Assim, ante a crescente preocupação com a verdade, como valor a ser perseguido pelo constitucionalismo do “por vir”, segundo o qual “a constituição não pode mais gerar falsas expectativas”[25], ao contrário, “o constituinte só poderá “prometer” o que for viável cumprir, devendo ser transparente e ético”[26], é preciso garantir eficácia plena ao direito à moradia, sob pena de vivenciarmos aquilo que o professor Marcelo Neves chama de Constitucionalização Simbólica, cuja característica marcante é a discrepância entre a função hipertroficamente simbólica da constituição e a ineficiente concretização jurídica de diplomas constitucionais[27].

Destarte, a pretensão de termos uma constituição normativa, segundo a classificação adotada por Karl Lowenstein, em que a constituição além de possuir conteúdos materialmente constitucionais, quais sejam, a limitação do poder estatal, a promoção do desenvolvimento estatal, a organização político-administrativa do país, etc., deve concretizar os direitos por ela garantidos, sob pena de ser enfraquecida sua força normativa e a supremacia de sua constituição, deslocando-a para a categoria das constituições nominais, caso em que tal diploma maior prevê direitos cuja concretização é pífia/ineficaz, ou até mesmo, semânticas, nos casos em que a constituição não passa de uma folha de papel, pois que não assegura direitos e garantias mínimas, tampouco tem o condão de limitar a atuação estatal.

Assim, qualquer ordem que se pretenda minimamente justa e igualitária, garantidora da dignidade humana e asseguradora da supremacia de sua constituição deve afastar o discurso programático das normas que demandam eficaz atuação estatal, sob pena de se esvaziar a normaticidade e supremacia de sua Carta Maior.


REFERÊNCIAS

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DROMI, José Roberto apud LENZA, Pedro Direito Constitucional esquematizado, 13. Ed. Ver. Atual. E ampl. São Paulo: Saraiva, 2009

FERREIRA, Tereza Cristina, A Função Social do Contrato e a Polêmica Acerca da Capitalização de Juros no Sistema Financeiro da Habitação, Monografia, UNAES, Campo Grande, 2005

GUERRA FILHO, Willis Santiago. A dimensão processual dos direitos fundamentais e a Constituição.  in Revista de Informação Legislativa. Brasília, Senado Federal n. 137 jan/mar 1988

LENZA, Pedro Direito Constitucional esquematizado, 13. Ed. Ver. Atual. E ampl. São Paulo: Saraiva, 2009

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. IV, Coimbra Editora, Coimbra, 2000 – 3ª Ed.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica, 3. Ed., São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007 (coleção justiça e direito)

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 7. Ed. rev., ampl. E atual., São Paulo: Saraiva, 2006

SANTANA, Nathália Macedo de. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO PENAL, artigo,  p. 6disponível em <www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/1387>, acesso em 10.12.2012

SARLET, Ingo Wolfgang. A EFICÁCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA JURÍDICA: DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DIREITOS FUNDAMENTAIS E PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL NO DIREITO  CONSTITUCIONAL BRASILEIRO, artigo, disponível em: < www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto856.rtf>, acesso em 11.12.2012, p. 29

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia aos vinte anos da  constituição federal de 1988: notas a respeito da evolução  em matéria jurisprudencial, com destaque para a atuação do supremo tribunal federal, Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de Estudos Constitucionais - RBEC, Ano 2, n. 8,  outubro/dezembro de 2008, p. 55-92. disponível em < http://www.anima opet.com.br/primeira_edicao/artigo_Ingo_Wolfgang_Sarlet_o_direito.pdf>, acesso em 01.12.2012.

SILVA, José Afonso da.  Curso de Direito Constitucinal Positivo.  34' edição, rev. e atual. (até a Emenda Constitucional n. 67, de 22.12.2010). São Paulo: Editora Malheiros, 2011.

SOUZA, Sergio Iglesias Nunes de, Direito à Moradia e de Habitação, Editora Revista dos Tribunais, 2004.

SUGAI, José Jiemon, O Direito Constitucional à Moradia e os Instrumentos Jurídicos para sua Efetividade, Dissertação, Pontífica Universidade Católica, São Paulo, 2003.

TAVARES, André Ramos. Liberdades Públicas In NASCIMENTO, Carlos Valder e ALVES, Geraldo Magela. Enciclopédia do Direito Brasileiro. V. Rio de Janeiro: Forense. 2001.

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Sobre o autor
Pedro Henrique Luthold

Analista do Ministério Público Federal, bacharel em direito pela UFMS, pós-graduando em direito penal e processo penal pela faculdade Damásio de Jesus.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUTHOLD, Pedro Henrique. O direito fundamental à moradia e o dilema da programaticidade dos direitos fundamentais de segunda dimensão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3920, 26 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27173. Acesso em: 22 dez. 2024.

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