Em um sistema processual sabidamente pródigo em recursos, e que privilegia a defesa técnica daqueles que a ela possuem amplo e irrestrito acesso, uma sentença condenatória, ainda que fundada em provas robustas, pode demorar mais de uma década para ser finalmente materializada, por meio da execução.
Imposta, após ampla defesa, trilhada pelos caminhos do processo legal, uma pena privativa de liberdade, afastadas, portanto, as hipóteses em que a sanção corporal pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos, e, finalmente operado o trânsito em julgado, deve ter início o cumprimento da pena fixada, extraindo-se, para tanto, uma carta de sentença endereçada ao juízo das execuções, que, por sua vez, determina a imediata expedição de mandado de prisão e guia de recolhimento à direção do estabelecimento adequado a receber aquele sentenciado, de acordo com o regime prisional a ser inicialmente observado.
Para o juízo das execuções, competente para definir o estabelecimento adequado ao recolhimento do condenado, importam, sobretudo nesta etapa derradeira, o quantum apenatório fixado e o regime inicial de cumprimento, a fim de que a terceira fase de individualização da pena, realizada em sede administrativa e judicial, possa ser minimamente observada.
Cumpridas as premissas objetivas de classificação inicial e alocação, e, recolhidos ao estabelecimento formalmente adequado ao regime, todos os presos passam a ser igualmente considerados, mesclados em um mesmo bloco, na mesma ala, e, por vezes, na mesma cela, à espera do adimplemento dos requisitos temporais legalmente fixados, internos que cometeram os mesmos crimes, sem espaço para distinção entre aqueles que tiveram a melhor ou a pior defesa técnica ao longo do processo de conhecimento.
Em suma, a execução penal é a planície onde todos aqueles que infringiram a norma penal finalmente se igualam, privados do bem maior da liberdade, por um tempo certo - que somente se altera excepcionalmente (indulto, remição ou revisão criminal) - e sem muitas chances para a atuação de defensores competentes e combativos.
É o momento em que se irmanarão, a madrugar na mesma fila de visitantes, a família do preso mais simples e pobre, condenado à revelia, e a esposa do interno abastado e juridicamente assistido, que teve a sua pena exaustivamente reexaminada por todas as instâncias jurisdicionais.
É a fase em que todos vestirão roupas iguais, de modo a abstrair a origem social e a condição financeira de cada um, partilharão a mesma refeição e terão, rigorosamente, o mesmo tempo, nas datas e horários previamente estabelecidos, para o contato semanal com familiares e amigos.
Em um país que, há muito, se ressente de políticas eficientes para o tratamento da questão penitenciária, mostram-se a transparência e a isonomia no tratamento de todos os internos, para além de um imperativo inafastável de qualquer administração penitenciária, um dos valores mais caros ao sentenciado, funcionando como um alento, inibidor de revoltas ou eventos de grave indisciplina, a garantia de que, mesmo mantido em condições precárias e longe do ideal traçado pelo legislador, terá o seu direito reconhecido no tempo certo e será tratado no cárcere, assim como a sua família, nos dias de visita, exatamente da mesma forma com que são tratados todos os condenados que se acham naquela idêntica situação.
No âmbito da execução, em que se acha, ainda que de forma legítima, transitoriamente suprimido direito essencial do indivíduo, avulta, em seu âmbito máximo de eficácia, a garantia inarredável da igualdade, preconizada pela Carta da República (art. 5o, caput, da CRFB), pelas Regras Mínimas das Nações Unidas para o tratamento do preso[i] (n. 6.1) e asseverada - para alguns doutrinadores de forma redundante[ii] - pela lei de regência da execução (art. 3o , parágrafo único, da LEP).
Importa observar que o imperativo de igualdade de tratamento, endereçado a todas as autoridades responsáveis pela execução, mas, principalmente, àquelas que lidam diretamente com o indivíduo preso, apresenta duplo viés. Em sua vertente mais ululante, se presta a vedar qualquer tratamento discriminatório que possa vir a prejudicar o sentenciado, preterido por seus caracteres raciais, sociais, religiosos ou políticos. Noutro vértice, como a outra face de uma mesma moeda axiológica, proibe-se a discriminação positiva, ou seja, aquela exercida por meio de atos, concessões ou qualquer tipo de tratamento diferenciado, que culmine por privilegiar, à míngua de fundamento legal ou embasamento jurídico, apenas com motivação arvorada em aspectos pessoais, sociais, raciais, religiosos ou políticos, uma pequena parte dos sentenciados, em detrimento de uma massa carcerária em idêntica situação jurídica.
Observe-se, nessa mesma quadra, que o artigo 3o da LEP, em seu parágrafo único, sequer estaria a falar em “discriminação”, optando o legislador por vedar qualquer tipo de diferenciação no tratamento conferido aos presos, ao asseverar que, na condução da execução das penas, “não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política”.
Não se devem confundir, todavia, os privilégios desprovidos de qualquer alicerce de legalidade, que, sob a forma de benesses injustificadas, desafiam o mandamento da impessoalidade e atraem a responsabilização do administrador que as outorga, com a figura jurídica da regalia, espécie de recompensa, prevista na legislação de regência (art. 56, II, da LEP), e que, descrita em regulamento próprio, se destina a reconhecer o esforço e a premiar, dentro de um sistema de sanções e recompensas, voltado à ressocialização, o preso que apresenta comportamento exemplar, reconhecida dedicação ao trabalho e colaboração para a manutenção da disciplina no âmbito do estabelecimento prisional (art. 55 da LEP).
Admite-se, com isso, que lei local, ou, como é mais comum, o regulamento interno do estabelecimento, devidamente submetido ao crivo do juízo das execuções, venha a prever, como forma de recompensa, para todos aqueles que, de forma meritória e justificada, venham a cumprir as metas estabelecidas pela direção, a concessão de “vantagens[iii]” voltadas, preponderantemente, a estimular a ressocialização, tais como a doação de livros, a concessão de horário especial e ampliado para a utilização da biblioteca e das oficinas, a inserção em atividades ou espetáculos recreativos, além do uso de rádio ou televisão[iv].
No que toca à necessidade de estrita observância da legalidade, por parte do administrador do estabelecimento prisional, para a concessão de regalias, assevera NUCCI que “não se deve permitir que a administração invente regalias, critérios e demais formas para privilegiar determinados presos em detrimento de outros[v]”.
Com efeito, tal como ocorre com as sanções, que reclamam prévia tipificação legal, a previsão expressa e antecipada, em regulamento próprio, dos tipos de regalias que podem ser concedidos - como ato de justiça, e não um favor pessoal[vi] - a todos os internos, representa um imperativo de transparência e segurança jurídica, a permitir o controle judicial e impedir que a atuação administrativa venha a enveredar pelos sinuosos caminhos da arbitrariedade e do casuísmo, minando, de forma perigosa, a confiança do interno no Estado, gerando revolta no seio da massa e descrédito para as autoridades, a par de colocar, pela conjunção de tais fatores, em risco a segurança de um sistema já estrangulado e extremamente fragilizado pela ausência de investimentos mínimos por parte do ente estatal.
A injustiça e a ausência de uma política transparente de tratamento igualitário, por parte do Estado, abrem espaço para a atuação oportunista do crime organizado, que “acolhe” os desfavorecidos pelo sistema, prometendo-lhes a proteção e as benesses que, reservadas a poucos, foram negadas, pela administração penitenciária, à imensa maioria da população encarcerada.
Não é demais referir que o crime organizado, uma vez instalado no seio do sistema penitenciário, espraia seus efeitos maléficos para além das muralhas dos presídios, por meio das atividades criminosas que se destinam a financiar o funcionamento das organizações e a manutenção de seus membros, afetando a segurança e a tranquilidade de toda a sociedade, que, na imensa maiorias das vezes, sequer tem consciência de que o aumento da criminalidade nas ruas tem origem intramuros.
A isonomia no trato de todos os sentenciados, manifestada por meio de um comportamento revestido de absoluta transparência e isenção por parte das autoridades que controlam a execução, mais do que um imperativo constitucional e legal, revela-se, dessa forma, instrumento essencial à manutenção da ordem e do equilíbrio do sistema prisional, fazendo com que o controle e a autoridade permaneçam nas mãos do Estado, aspecto que se mostra de crucial relevância, não apenas para que sejam evitadas rebeliões, mas, sobretudo, para que se possa revelar exitosa qualquer política de estado minimamente séria e comprometida com a segurança pública.
[i] Disponível em:< https://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-reform/projects/UN_Standards_and_Norms_CPCJ_-_Portuguese1.pdf>. Acesso em: 04 mar. 2014.
[ii] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 439.
[iii] JORGE, Estevão Luís Lemos. Execução Penal. Campinas: Millenium, 2007, p. 73.
[iv] MARANHÃO, Douglas Bonaldi. Disciplina: artigos 44 a 60 da LEP. In: PRADO, Luiz Regis (Coord.). Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 58.
[v] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 487.
[vi] MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal: comentários à Lei n. 7.210, de 11.07.1984. 11.ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 157.