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Análise da jurisdição militar em relação aos civis no Brasil:

prós e contras sob a ótica constitucional

06/04/2014 às 16:22
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Versa o presente trabalho sobre uma singela análise da incidência da Jurisdição Militar no julgamento de civis no Estado Brasileiro, quando da prática de crime militar.

Justiça Militar da União e Justiça Militar dos Estados

A Carta Magna de 88, ao organizar politicamente a sociedade brasileira, no que tange à forma de governo e estado, resolveu por constituir uma república federativa. Foram criadas, como pessoas jurídicas de direito político interno, a União, os Estados Federados, o Distrito Federal e os Municípios[1].

Atenta ao princípio federativo eleito, organizou como ramo especial da jurisdição a Justiça Militar da União e a Justiça Militar dos Estados, quando da estruturação do Poder Judiciário[2]. E traçando suas linhas mestras, definiu suas competências nos artigos 124 e 125, §§ 3º, 4º e 5º.

Pelo teor de seu artigo 124, “à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”. Já o artigo 125, § 4º, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, preceitua que:

Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.

Tem, portanto, a Justiça Militar da União como jurisdicionados os militares das forças armadas e civis. Ao passo que a Justiça Militar dos Estados julga apenas os militares estaduais. É o que nos ensina Mendes, Coelho e Branco (2009, p. 618) ao mencionar que “enquanto à Justiça Militar Federal é atribuída a competência para julgar militares ou civis (art. 124, caput, da CF/88), a Justiça Militar Estadual somente poderá julgar militares dos Estados (art. 125, § 49)[3]”.

As forças armadas compreendem a Marinha, o Exército e a Aeronáutica, e são instituições nacionais voltadas para a defesa do país, garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem, gozando dos atributos da permanência e regularidade (FERNANDES, 2012, p. 19). Os militares estaduais são os policiais militares e bombeiros militares, componentes das forças auxiliares.

No que se refere à definição dos crimes militares, elemento determinante para a fixação da competência penal da Justiça Militar, tanto nacional quanto regional, atendendo aos ditames do constituinte originário, o Código Penal Militar[4] foi recepcionado como a lei tipificadora de tais delitos. A Constituição havia deixado, como dito, à lei ordinária a tarefa de definir o crime militar, em seu artigo 124. Encontramos, portanto, tais previsões nas normas constantes do Código Penal Militar, que foi instituído pelo Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969. E a enumeração do que vêm a ser os crimes militares em tempo de paz vem explicitado em seu artigo 9º; já no artigo 10, os crimes militares em tempo de guerra.


O Crime Militar

Divergem as jurisprudências e os estudiosos da matéria quanto ao conceito de crime militar. A questão levanta grandes debates tanto no meio jurisdicional quanto acadêmico. Figueiredo (2009 apud FERNANDES, 2012) explica que a controvérsia quanto ao conceito de crime militar e seus elementos constitutivos ocorrem há mais de dois séculos e que não há qualquer entendimento sedimentado a respeito.

O Professor Jorge César de Assis, por sua vez, enfatiza que “o conceito de crime militar ainda é o da doutrina, sendo certo que tal definição é difícil e não raras vezes a jurisprudência aponta decisões conflitantes sobre quando e como ocorre esta figura delitiva”[5].

Para lançar luzes sobre a escuridão estabelecida, Assis, após análise do direito comparado, citando o Professor Ivo d’Aquino[6], aponta os critérios eleitos pelo Código Penal Militar para a caracterização do crime militar, uma vez que não o definiu.

“para conceituar o crime militar em si, o legislador adotou o critério ratione legis, isto é, crime militar é o que a lei considera como tal. Não define: Enumera. Não quer isto dizer que não haja cogitado dos critérios doutrinários  ratione personae, ratione loci, ou  ratione numeris. Apenas não estão expressos. Mas o estudo do art. 9º do Código revela que, na realidade, estão todos ali contidos[7]”.

Explica que o critério ratione materiae exige verificação quanto à dupla qualidade militar, no ato e no agente. Os delitos militares ratione personae, por sua vez, são os que atendem exclusivamente à qualidade militar do agente. Já os delitos baseados no critério ratione loci levam em conta o lugar do crime, sendo que a ação deve ocorrer em lugar sob administração militar. São delitos militares ratione temporis os praticados em determinada época, como por exemplo, os que ocorrem em tempo de guerra ou durante o período de manobras ou exercícios. Finaliza dizendo que “a classificação do crime em militar se faz pelo critério ratione legis, ou seja, é crime militar aquele que o Código Penal Militar diz que é, ou melhor, enumera em seu art.9º[8]”.


A PROBLEMÁTICA DO CIVIL COMO JURISDICIONADO DA JUSTIÇA MILITAR

Tecidas brevíssimas considerações sobre a competência penal da Justiça Militar e os critérios para definição do crime militar, passa-se a uma singela abordagem sobre a questão da submissão do civil a esse ramo especializado do Judiciário brasileiro, quando sujeito ativo de delitos contra as instituições militares.

Inicialmente, insta dizer que, nos dias atuais, existe uma tendência global de afastamento da Jurisdição Militar e até mesmo sua supressão em tempos de paz. A Organização das Nações Unidas (ONU) vem se preocupando com o exercício da justiça por jurisdições militares há algum tempo, ainda que escassos os tratados sobre a matéria (FERNANDEZ, 2012, p. 47).

Outra não é a constatação de Luciano Moreira Gorrilhas, ao analisar o referido cenário mundial.

[verifica-se a tendência] em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, quarta revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal nº 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g[9].

Também discorrendo sobre o tema, o Professor Assis, em novo artigo, tece comentários a respeito da carta de princípios da ONU pregando orientações aos países unificados quanto às restrições em relação à Jurisdição Militar.

A análise do Projeto da ONU, que se constitui de 20 princípios, permite identificar que o de nº 5 prega exatamente a incompetência da Justiça Militar para o julgamento de civis, princípio este parcialmente atendido no Brasil em relação à Justiça Militar Estadual. Partindo deste princípio, submissão de civis à Justiça Militar em tempo de paz seria, então um fato excepcional[10].

Ocorre que, entretanto, especificamente no caso brasileiro, o problema da submissão do civil à Justiça Militar, em decorrência dos princípios constitucionais estabelecidos, passa por uma abordagem mais criteriosa. Pela Constituição de 88, o jurisdicionado tem direito a um tribunal competente, independente e imparcial, previamente estabelecido por lei[11]. Tal direito inclusive também é previsto em tratados internacionais de direitos humanos, a exemplo do Pacto das Nações Unidas relativo aos Direitos Civis e Políticos (PIDCP)[12] (FERNANDES, 2012, p. 48).

A exigência de um tribunal competente, investido das garantias constitucionais para proferirem julgamentos imparciais, é atendida pela Justiça Militar brasileira, tanto a nacional quanto a regional. No Brasil, em ambas as Justiças Militares, os operadores do Direito representantes do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública são civis (ainda que na Justiça Militar da União haja um modelo de escabinato). Relativamente à Justiça Militar da União, ressalte-se, há concurso público, com a necessária participação de representante da Ordem dos Advogados do Brasil, de provas e títulos, específico para o ingresso nas carreiras da magistratura e do Ministério Público Militar, respectivamente, para os cargos de Juiz-Auditor e Promotor de Justiça Militar[13].

O mesmo não acontece no direito comparado, onde, em regra, a Justiça Militar não faz parte do Judiciário e os juízes são, na maioria dos casos, exclusivamente militares.

É de se ressaltar, portanto, que no caso brasileiro, a Justiça Militar foi construída sobre bases completamente diversas daquelas encontradas no cenário jurídico internacional, uma vez que, ainda com os ensinamentos de Gorrilha, “desde a CF 1937 até a presente (CF 1988), encontra-se inserida entre os órgãos judiciários do ordenamento pátrio”[14].

Desta feita, as experiências jurídicas alienígenas, inclusive respaldadas por carta principiológica editada pela ONU, não podem ser aplicadas no Judiciário brasileiro sem as devidas ponderações críticas. O civil, ao menos no Brasil, ao ser julgado na Justiça Militar, encontra todas as suas garantias constitucionais asseguradas – lembrando que a aventada possibilidade, por determinação expressa da Constituição, só se dá perante a Justiça Militar da União e nunca na estadual.

Resta temerária a importação para o Brasil de modelos construídos sem a análise das vicissitudes nacionais.

Infelizmente, esse entendimento, que nos parece o melhor, amparado na doutrina especializada, não é o que vem sendo adotado pelo e. Supremo Tribunal Federal, a exemplo do julgamento proferido no Habeas Corpus 109.544, em que o relator, Min. Celso de Mello, (sem analisar o problema do bem jurídico atingido quando da falsificação de carteiras aquaviárias, por não ser tema do presente artigo) simplesmente, acompanha a tendência internacional de afastamento da Justiça Militar, desconsiderando as peculiaridades nacionais.

Cabe à comunidade jurídica como um todo promover um maior debate do assunto, com a consequente ampliação de sua divulgação, e admoestar os Excelentíssimos Supremos Ministros por uma atenção maior para com a dogmática militar nacional.


CONCLUSÃO

A Justiça Militar brasileira encontra-se submetida às garantias constitucionais estabelecidas em prol do cidadão comum, para que tenha um julgamento imparcial e reto. Obviamente, precisa estar em constante aperfeiçoamento para atender ao valor maior da justiça.

Não é cabível a importação de experiências jurídicas estrangeiras sem maiores análises quanto a sua adequação ao Poder Judiciário Brasileiro.

O civil, no Brasil, tem condições de receber um julgamento justo pela Justiça Militar. Inclusive, cabendo uma reforma constitucional tendo por fim a ampliação da competência da Justiça Militar Estadual para seu julgamento nos casos de crimes militares praticados contra as instituições militares, a exemplo do que ocorre na Justiça Militar da União, em atenção ao caráter nacional da jurisdição.

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REFERÊNCIAS

ASSIS, Jorge César de. Crime Militar e Crime Comum. Conceitos e Diferenças. Jusmilitaris. Disponível em: <http://www.jusmilitaris.com.br/uploads/docs/crimemilitarecomum.pdf>, acesso em: 14 nov. 2012.

ASSIS, Jorge César de. O STF e a Restrição aos Crimes Militares Cometidos por Civis. In: Pós-Graduação em Direito Aplicado ao Ministério Público – ESMPU. 2012, Brasília. Anais Eletrônicos. Disponível em: <http://moodle.esmpu.gov.br/mod/forum/discuss.php?d=8036>, acesso em: 15 nov. 2012.

BAHIA. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 109.544. Everaldo Paulo do Nascimento versus Defensoria Pública da União. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, Acórdão de 9 de ago. 2001.

BRASIL. Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar. DOFC de 21 out. 1969, P. 8940, Brasília, DF, 21 de out. 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1001Compilado.htm>, acesso em: 14 nov. 2012.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 5 de out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>, acesso em: 14 nov. 2012.

D’AQUINO, IVO. Revista de Informação Legislativa, Brasília, julho / setembro de 1970, p.100.

FERNANDES, Amanda Regina. Crimes Militares: O Civil Sob a Jurisdição Militar. 2012. 138 f. Monografia (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2012.

FIGUEIREDO, Telma Angelica, Excludentes de Ilicitude e Obediência Hierárquica no Direito Penal Militar. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2009.

GORRILHAS, Luciano Moreira. O Civil Deve Ser Excluído da Jurisdição Militar. Jusnavigandi. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21014/o-civil-deve-ser-excluido-da-jurisdicao-militar>, acesso em: 15 nov. 2012.

MENDES, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4º Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

PACTO Internacional dos Direitos Civis e Políticos = INTERNATIONAL Covenant of Civil Rights and Political. 1966. Disponível em: http://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20Direitos%20Civis%20e%20Pol%C3%ADticos.pdf>, acesso em: 15 nov. 2012.


Notas

[1] Art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

[2] Art. 122, I e II, e art. 125, § 3º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4º Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

[4] BRASIL. Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar. DOFC de 21 out. 1969, P. 8940, Brasília, DF, 21 de out. 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1001Compilado.htm>, acesso em: 14 nov. 2012.

[5] ASSIS, Jorge César de. Crime Militar e Crime Comum. Conceitos e Diferenças. Jusmilitaris. Disponível em: < http://www.jusmilitaris.com.br/uploads/docs/crimemilitarecomum.pdf>, acesso em: 14 nov. 2012.

[6] D’AQUINO, IVO. Revista de Informação Legislativa, Brasília, julho / setembro de 1970, p.100.

[7] ASSIS, op. cit.

[8] ASSIS, ibidem.

[9] GORRILHAS, Luciano Moreira. O Civil Deve Ser Excluído da Jurisdição Militar. Jusnavigandi. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21014/o-civil-deve-ser-excluido-da-jurisdicao-militar>, acesso em: 15 nov. 2012.

[10] ASSIS, Jorge César de. O STF e a Restrição aos Crimes Militares Cometidos por Civis. In: Pós-Graduação em Direito Aplicado ao Ministério Público – ESMPU. 2012, Brasiília. Anais Eletrônicos. Disponível em: <http://moodle.esmpu.gov.br/mod/forum/discuss.php?d=8036>, acesso em: 15 nov. 2012.

[11] Art. 5º, LII e LIII da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

[12] PACTO Internacional dos Direitos Civis e Políticos = INTERNATIONAL Covenant of Civil Rights and Political. 1966. Disponível em:http://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20Direitos%20Civis%20e%20Pol%C3%ADticos.pdf>, acesso em: 15 nov. 2012.

[13] GORRILHAS, op. cit.

[14] GORRILHAS, ibidem.

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Sobre o autor
Eduardo Xavier de Souza

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro;<br>Pós-Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Cândido Mendes;<br>Pós-Graduando em Direito Aplicado ao Ministério Público pela Escola Superior do Ministério Público da União - ESMPU;<br>Analista Processual do Ministério Público da União;<br>Tutor Presencial das Disciplinas Jurídicas do Curso de Administração do Consórcio CEDERJ - Polo de Itaperuna;<br>Ex-servidor do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro.<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Eduardo Xavier. Análise da jurisdição militar em relação aos civis no Brasil:: prós e contras sob a ótica constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3931, 6 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27263. Acesso em: 22 dez. 2024.

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