Este artigo tem por escopo analisar se os efeitos da Lei Complementar nº 105, de 10/01/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras, são retroativos ou não, haja vista ter a aludida Lei Complementar revogado o artigo 38 da Lei nº 4.595, de 31/12/1964, a qual prescrevia que a quebra do sigilo bancário, em regra, somente seria possível através de determinação do Poder Judiciário.
Dispõe o art. 6º da Lei Complementar nº 105:
Art. 6º - As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Parágrafo único - O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se referem este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.
Por sua vez, o art. 6º da Lei Complementar nº 105 é regulamentado pelo Decreto nº 3.724, de 10/01/2001, o qual regula a requisição, acesso e uso, pela Secretaria da Receita Federal, de informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras e das entidades a elas equiparadas.
A Constituição Federal de 1988 resguardou, em seu art. 5º, inciso XII, o sigilo bancário que é espécie do sigilo de dados. Por isso, o sigilo bancário é um direito fundamental individual que foi garantido pela Carta Magna.
Impende frisar que os direitos elencados no art. 5º e respectivos incisos da Constituição Federal, intitulados "DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS" possuem o status jurídico de cláusulas pétreas, o cerne fixo da Constituição, matérias que não podem sequer ser tema de discussão no Congresso Nacional, de acordo com o disposto no art. 60, § 4º, inciso IV, desta. Ora, o direito fundamental à intimidade e à vida privada, previsto no inciso X do art. 5º, indubitavelmente está inserido nesse contexto. Destarte, entendemos que a supressão da ordem judicial na quebra do sigilo bancário não poderia ter sido feita por lei complementar, como o foi, muito menos por emenda constitucional diante do peso de ser uma cláusula pétrea. Em outras palavras, a Lei Complementar nº 105 não pode dispor contra a Constituição Federal na parte em que consagra direitos fundamentais insuscetíveis até mesmo de emendas constitucionais.
Oportuno destacar, com alicerce na lição do mestre SACHA CALMON NAVARRO COELHO, que "todos os países que não possuem os sigilos bancários e de dados, que os eliminaram ou que foram inábeis ao estruturar os sistemas de quebra dos mesmos, sofreram dramáticas fugas de capital, geraram tensões existenciais e regrediram politicamente".
Ao nosso sentir, é inadmissível o fato de que uma lei de natureza complementar venha a conferir competência às autoridades fiscais integrantes da estrutura de cargos e funções da Secretaria da Receita Federal, lhes assegurando poderes de verificação de informações e dados sigilosos, que, até então, só poderiam ser quebrados mediante a intervenção e o crivo do Poder Judiciário, em total desrespeito ao Princípio da Inviolabilidade do Sigilo de Dados, consubstanciado no inciso XII, do artigo 5º da Lei Maior.
A par da sua manifesta e irretorquível inconstitucionalidade, no que pertine à irretroatividade ou não dos efeitos da Lei Complementar nº 105, o Código Civil Brasileiro prescreve com clareza:
Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
O escólio da mais nobre linhagem doutrinária sobre a matéria é providencial:
"A lei é expedida para disciplinar fatos futuros. O passado escapa ao seu império. Sua vigência estende-se, como já se acentuou, desde o início de sua obrigatoriedade até o início da obrigatoriedade de outra lei que a derrogue. Sua eficácia, em regra, restringe-se exclusivamente aos atos verificados durante o período de sua existência. É o sistema ideal, que melhor resguarda a segurança dos negócios jurídicos.
Walker, citado por Barbalho, afirmava que leis retroativas só tiramos as fazem e só escravos se lhes submetem. A retroatividade, proclamou-o Benjamin Constant, arrebata à lei seu caráter; lei que retroage não é lei.
Efetivamente, sem o princípio da irretroatividade, inexistiria qualquer segurança nas transações, a liberdade civil seria um mito, a estabilidade patrimonial desapareceria e a solidez dos negócios estaria sacrificada, para dar lugar a ambiente de apreensões e incertezas, impregnado de intranqüilidade e altamente nocivo aos superiores interesses do indivíduo e da sociedade".[1]
"Tratava-se, portanto, de norma vinculando o juízo, permitindo a retroatividade da lei, se houvesse disposição expressa".[2]
"A irretroatividade das leis tornou-se barreira protetora do direito adquirido, assegurando a permanência e a incompatibilidade entre o direito antigo e o novo direito legislativo.
Muito tem complicado também o exato deslinde do tema a constante referência ao caráter retroativo ou não da lei. É evidente que o princípio da não-retroatividade, embora não esculpido no nosso direito, é um princípio geral que compõe quase o que poderíamos chamar um mínimo civilizatório do mundo contemporâneo.
Daí porque praticamente problema nenhum colocam aqueles atos que foram produzidos e geraram todos os seus efeitos debaixo da lei velha. Com relação a estes, seria um verdadeiro fenômeno de truculência jurídica a lei nova querer com eles imiscuir-se".[3]
Com efeito, uma norma deve ser considerada retroativa, desde que com sua hipótese, com seu preceito, ou ainda com ambos, passe a atingir juridicamente o período que antecedeu a sua respectiva entrada em vigor; ou seja, existirá retroatividade sempre que o legislador mandar expressamente aplicar a lei a casos pretéritos. Exemplificando: imaginemos uma nova lei que viesse a estabelecer que, em todos os compromissos de compra e venda de imóveis realizados no período de dois meses que antecedem a sua entrada em vigor, os compromissários compradores passassem a ter o dever de pagar aos vendedores, a título de compensação da inflação verificada no período, dez por cento a mais que o valor pactuado. Teríamos, então, na regra sub examen a seguinte decomposição lógica:
Hipótese: se é dado um compromisso de compra e venda de imóvel realizado dois meses antes da entrada em vigor da lei.
Preceito: pagamento ao vendedor de 10% a mais que o valor pactuado.
Claro, pois, que na presente situação de direito, o legislador, ao descrever o elemento fático que integra a hipótese da norma, invadiu o período anterior ao da própria vigência da regra a que se integra. Por força do estabelecido na sua hipótese, portanto, a norma jurídica em apreço deve ser entendida como tipicamente retroativa.
No primoroso escólio de JOSÉ EDUARDO MARTINS CARDOZO[4]: "... poderíamos dizer que uma norma é retroativa quanto à sua hipótese sempre que esta é realizada, no todo ou em parte, por fato ou acontecimentos passados".
A regra vigente é a da irretroatividade da norma legal, o que determina que a retroatividade apenas excepcionalmente pode ser admitida.
Considerando o seu caráter excepcional, a retroatividade de uma lei nova, para que seja admissível, deve estar expressamente consagrada no texto legislativo. Inexiste, por conseguinte, dentre nós, a denominada "retroatividade tácita".
Destarte, tendo a Lei de Introdução ao Código Civil alcance vasto, não limitado às leis civis, mas pertinente a todos os Códigos e a todas as disposições legislativas, sejam estas de natureza pública ou privada, a abrangência do princípio da irretroatividade das leis envolve todos os ramos do direito.
O art. 101 do Código Tributário Nacional é prova inconteste dessa assertiva, ao prescrever:
Art. 101. A vigência, no espaço e no tempo, da legislação tributária rege-se pelas disposições legais aplicáveis às normas jurídicas em geral, ressalvado o previsto neste Capítulo. (grifo nosso)
Imperioso destacar, ainda, que o PARÁGRAFO 1º do ARTIGO 145 da Constituição Federal preceitua o dever do FISCO em respeitar os direitos individuais, sempre que utilizar de meios para identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
A advertência de CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS[5] é elucidativa: "Isto posto, não vejo, no Texto Constitucional, algo que tenha resultado em acréscimo no poder de fiscalizar, visto que todas as garantias e direitos anteriores foram preservados a favor do contribuinte".
Na esfera judicial, a constitucionalidade da Lei Complementar nº 105 está sendo questionada junto ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL através da AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE nº 2397-7, proposta pela CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA – CNI, a qual não restou ainda julgada pela Corte Suprema.
O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, em julgamento realizado após a vigência da LC nº 105, assentou o seguinte entendimento:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. SIGILO BANCÁRIO. QUEBRA. PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO. PRECEDENTES.
"Firmou-se o entendimento desta Corte sobre a ilegalidade da quebra do sigilo bancário, sem autorização prévia do Poder Judiciário, devido à garantia constitucional da inviolabilidade dos direitos individuais".[6]
O TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO, em recentíssimo julgado, assim se posicionou:
CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA. SIGILO BANCÁRIO. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ARTS. 5º, X E LV E 145, § 1º. CTN, ART. 197, II. LEI 4.595/64, ART. 38, CAPUT E §§ 5º E 6º. CPC, ART. 462. SUPERVENIÊNCIA DA LEI COMPLEMENTAR 105, DE 10 DE JANEIRO DE 2.001, ART. 6º.
"I – A jurisprudência deste c. Tribunal é no sentido de que somente a autoridade judiciária, em processo judicial, pode conceder autorização para a revelação de informações protegidas pelo sigilo bancário.
II – A superveniência do art. 6º da LC 105, de 10 de janeiro de 2.001, não teve o condão de legitimar as quebras de sigilo do passado, levadas a efeito em desconformidade com a legislação então vigente. Deve, entrementes, ser considerada nos provimentos de caráter preventivo".[7]
Neste mesmo sentido, a decisão proferida pela MM. Juíza da 17ª Vara Federal de São Paulo, Dr.ª Andréa Basso, por ocasião do julgamento do Mandado de Segurança nº 2001.61.00.017770-7.
Diante do expendido, concluímos:
1º)a Lei Complementar nº 105, de 10/01/2001, está eivada de inconstitucionalidade, eis que viola flagrantemente os direitos fundamentais individuais insculpidos no art. 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal;
2º)a garantia ao direito de intimidade e vida privada, previstos no inciso X do art. 5º, da Carta Magna, não podem ser objeto sequer de emenda constitucional, haja vista ostentarem o status de cláusula pétrea, a teor do disposto no art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal;
3º)o parágrafo 1º do art. 145 da Constituição Federal preceitua o dever do FISCO em respeitar os direitos individuais, sempre que utilizar de meios para identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte;
4º)tanto a Lei Complementar nº 105 como o Decreto 3.724 não dispõe expressamente sobre a retroatividade dos seus efeitos;
5º)em conclusão final: as disposições constantes na Lei Complementar nº 105, principalmente no que tange ao disposto no seu art. 6º, só têm eficácia a partir da data de 10/01/2001, data da sua publicação;
Notas
1.Washington de Barros Monteiro. CURSO DE DIREITO CIVIL – Parte Geral, 1º volume, 30ª edição, São Paulo, Saraiva, 1991, págs. 29-30-31.
2.Silvio Rodrigues. DIREITO CIVIL – Parte Geral, Volume I, 18ª edição, São Paulo, Saraiva, 1988, pág. 29.
3.Celso Ribeiro Bastos. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 19ª edição, São Paulo, Saraiva, 1998, págs. 215-219.
4.DA RETROATIVIDADE DA LEI, 1ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1995, pág. 269.
5.COMENTÁRIOS À CONSTITUIÇÃO DO BRASIL, 6º Volume, tomo I, São Paulo, Saraiva, 1990, pág. 65.
6.SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - Segunda Turma – RESP nº 196413/CE – Rel. Min. Francisco Peçanha Martins – j. 01/03/2001 – DJU de 02/04/2001 – pág. 00281.
7.TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO – SEGUNDA TURMA – MAS 96.01.36965-1/MG – rel. Juíza Vera Carla Nelson de Oliveira Cruz – j. 23/08/2001 – DJ de 17/09/2001 – pág. 472.