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Democracia agonística e partidos políticos

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14/04/2014 às 15:22
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3. A democracia agonística e os partidos políticos.

Como é cediço, a compreensão da democracia representativa está intrinsecamente relacionada com a figura dos partidos políticos. O papel dessas instituições na formalização da vontade do Estado, por intermédio da sintetização das afinidades políticas dos indivíduos, se reveste de considerável importância.

Parece ser adequado, destarte, refletir minimamente sobre o papel desempenhado pelos partidos políticos nesse contexto.

Ao final, se buscará aproximar a função dos partidos políticos do ideal agonístico propugnado por Chantal Mouffe (2006), objeto de análise anterior, por se compreender que tais instâncias representam um ambiente adequado para o tratamento das relações de conflito inerentes à vida em sociedade.

Um dos elementos nodais a ser considerado nesse tocante diz respeito às bases ideológicas que marcam a associação partidária. Ou seja, aos critérios doutrinários básicos formuladores da visão do partido em relação ao exercício do poder estatal.

Afinal, é justamente a ideologia propugnada pela instituição partidária que permitirá a reunião de pessoas, que muitas vezes não possuem nenhuma relação pretérita, mas que compartilham de afinidades ou pensamentos comuns. Tais indivíduos, no cenário analisado, irão se unir por intermédio do partido político, para que assim possam apresentar ao restante da sociedade uma proposta ideológica de ação do Estado.

Como consequência dos princípios ideológicos caracterizadores do partido, surge outro aspecto a ser considerado, que reside nas propostas programáticas da entidade aqui concebida, ou seja, o programa de atuação concreta do partido visando a implementar as ações pertinentes aos objetivos que defende.

Os partidos políticos afloram, desse modo, como ambiente absolutamente propício para a consolidação da participação popular aqui concebida.

Com efeito, um dos principais elementos constitutivos dos partidos políticos, que lhes assegura autonomia e representatividade, consiste na igualdade de tratamento que deve ser dispensada aos seus membros associados. Afinal, todos os componentes do partido gozam de igual relevância para a persecução dos objetivos delineados pela associação à qual pertencem.

Registre-se, a esse respeito, que as deliberações internas dos partidos políticos são tomadas na forma dos seus regimentos, e devem decorrer de amplas discussões e debates, de tal forma que garantam a participação e a colheita da opinião de seus membros.

Vale ressaltar, ademais, que outro elemento relevante dos partidos políticos consiste na liberdade associativa dos seus membros, cuja razão de ser reside na autonomia privada dos indivíduos, que podem ou não se associar ou se manter associados ao ente partidário respectivo.

Tem-se, portanto, que tal liberdade associativa carrega consigo a necessidade de um processo democrático interno no âmbito dos partidos políticos, que permita uma adequada construção das propostas a serem externadas, por intermédio da definição de metas e estratégias que visem a alcançar os escopos ideológicos da instituição.

A isso se pode chamar democracia interna dos partidos políticos, conquanto uma decorrência da liberdade associativa dos seus membros, sendo um elemento fundante do fortalecimento e da autonomia do próprio ente partidário, que passará a evidenciar, na sua atuação, a vontade democraticamente externada pelos seus filiados.

Para que isso ocorra, todavia, faz-se necessário que os indivíduos, hoje em grande monta alheios às questões políticas, passem a ocupar os espaços verdadeiramente vazios existentes nas instituições partidárias. Com efeito, merece ser registrada a empírica percepção de que a cada dia diminui o número de pessoas interessadas em ingressar nos partidos políticos já existentes.

Superada tal apatia e consolidada a potencialidade aqui vislumbrada, talvez seja possível se alcançar um cenário ainda mais sofisticado, no qual possa ser acolhida a teoria bem explanada por Orides Mezzaroba (2004) acerca da chamada “democracia partidária”. Ao tratar desse modelo, o referido estudioso explica que

[...] além de mediar os interesses dos órgãos representativos e dos representados, os partidos também funcionam como fator decisivo na mediação entre os cidadãos e seus representantes, caso em que estes últimos ficam submetidos ao mandato partidário, ou seja, à vontade única e exclusiva do Partido, pois considera-se que a vontade do indivíduo é inerente à vontade da organização partidária. Desta forma, o representante perde o seu caráter de exclusividade na atividade de representação “e, conseqüentemente, as eleições adquirem um caráter plebiscitário”, já que o eleitor passa a outorgar a sua confiança e a sua capacidade de decisão ao Partido como organização, e não aos candidatos apresentados por ele. (MEZZAROBA, 2004, p. 155).

Note-se, diante da proposta aqui ventilada, que ao prestigiar a decisão do partido político, e não do indivíduo eleito para o exercício do cargo respectivo, e partindo-se do pressuposto de que a decisão partidária terá sido adotada democraticamente, com a participação, no âmbito interno, do próprio eleitor, aproxima-se a decisão política final do cidadão.

Trata-se, destarte, de um mecanismo que prestigia a participação popular na política. Tal participação, no modelo proposto, se circunscreve mais especificamente ao âmbito partidário, e retira o indivíduo da condição de alheio às questões públicas, cenário tão corriqueiro no âmbito da tradicional democracia representativa.

Esse modelo, aqui apontado como democracia partidária, é também denominado Estado de Partidos. Segundo Mezzaroba (2004), tal perspectiva elucida sobremaneira a crise de representatividade vivenciada pela democracia representativa. Para ele,

o que não se tem privilegiado é a investigação das verdadeiras causas da crise de representatividade em que se encontram as instituições político-partidárias brasileiras, mudando o prisma de observação para o próprio desgastado modelo de representação política liberal. (MEZZAROBA, 2004, p. 314).

Logo, o que se cogita, diante das ideias aqui tratadas, é que a participação popular na política não necessariamente precisa ocorrer de forma direta. Tal participação pode ocorrer também por intermédio dos partidos, ambientes propícios à manifestação de vontade dos indivíduos. Essa perspectiva, sem dúvidas, permitiria a formalização da vontade estatal a partir da atuação coletiva da sociedade, de baixo para cima.

Para Mezzaroba (2004, p. 314),

Como nesse modelo a vontade do Estado é edificada pelo embate político entre as vontades partidárias, que por sua vez canalizam as vontades individuais, o centro das decisões políticas sofre um deslocamento radical, deixa o Parlamento e migra para o interior dos Partidos, onde a vida intrapartidária permitiria a livre e democrática participação direta da Sociedade em ampla escala.

[...]

Os Partidos Políticos tornam-se, com isso, sujeitos coletivos de cuja ação resultariam as políticas públicas do Estado. A representatividade de todo sistema político representativo fica, então, assegurada justamente por uma concepção radicalmente democrática de Partido, em que o próprio programa partidário é o resultado melhor concebido da construção de uma vontade coletiva.

Nota-se, ademais, que uma vez consolidado o formato aqui concebido, será possível também robustecer a ideia de que a democracia é um ambiente no qual se reproduzem os conflitos e antagonismos inerentes à vida em sociedade, o que foi enxergado com clareza por Chantal Mouffe (2006).

Com efeito, é natural e salutar que existam discordâncias na vida em sociedade. O antagonismo, que se faz presente nas relações sociais, também se reproduz claramente no seio político. Desse modo, a melhor forma de organizar os embates decorrentes de tal antagonismo, transformando-o em agonísmo – substituição do inimigo pelo adversário – perpassa justamente pelo fortalecimento dos partidos políticos, o que se faz possível por intermédio da participação popular no seu âmbito interno.

Logo, acredita-se que há uma consonância intrínseca entre a democracia agonística de Chantal Mouffe e a democracia partidária aqui perfilhada. Uma permite a consolidação da outra, ante as similitudes das premissas das quais partem.

Faz-se necessário ressaltar, todavia, que para que se torne efetivamente possível a figura do Estado de Partidos, a participação interna dos indivíduos, na construção das vontades partidárias, é elemento absolutamente inarredável. Afinal,

[...] a Democracia interna é um condicionante da formação racional da vontade partidária. Sem a garantia de participação democrática dentro da vida do partido, não há como admitir que este representa a vontade de algum setor da Sociedade, mas, somente, e no máximo, de restrito grupo de indivíduos ou de verdadeiras facções. (MEZZAROBA, 2004, p. 321).

Caso superado tal obstáculo, e uma vez garantida a democracia intrapartidária para fins de consolidação da vontade do partido – à qual certamente se oporá, no cenário agonístico já referido, a vontade de outro (ou de outros) partidos –, abre-se o caminho para a consolidação do mandato partidário, o qual evidenciará pura e diretamente os anseios dos integrantes da agremiação política, que a partir daí ostentarão a condição de partícipes diretos da cena política.


Conclusão

A amplitude conceitual da democracia, aliada às diversas e tão diferentes formas de sua manifestação, é uma constatação inicial e inevitável. Com efeito, o processo de consolidação das práticas democráticas ao redor do mundo tem percorrido um caminho longo e acidentado, marcado por avanços e retrocessos, assim como por variantes intrínsecas às próprias diferenças culturais e sociais concretamente observáveis.

Todavia, não obstante essa pluralidade de manifestações e de vertentes democráticas, é forçoso concluir que existe atualmente um cenário de crise no modelo hegemônico de democracia, qual seja, o modelo representativo e liberal.

Tal crise, que se manifesta na verdadeira discrepância entre a atuação política dos representantes e os anseios e necessidades da sociedade, e que se robustece na percepção de verdadeira desconfiança e desalento que o cidadão tem mantido para com o cenário político, é motivada por diversos fatores.

Há quem entenda, como fez Rousseau, que a democracia representativa sempre foi um equívoco. Existe quem defenda, outrossim, como fazem Boaventura de Sousa Santos e Paulo Bonavides, que tal crise é um fenômeno mais recente, e se marca pela verdadeira erosão da teoria do contrato social ou, ainda, pela crescente despolitização da legitimidade política.

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Entretanto, em que pese a crise aqui versada seja real e manifesta, não se pode desconsiderar a existência de percepções mais otimistas, externadas por alguns estudiosos do cenário democrático. Afinal, embora contenha seus problemas e vicissitudes, a representação política também ostenta virtudes e qualidades, mormente por permitir a consolidação de práticas democráticas em ambientes que, em princípio, não seriam favoráveis a tal sistemática, como, por exemplo, os grandes e populosos Estados contemporâneos.

Ademais, é preciso reconhecer a necessária relação entre o sistema democrático e o caráter conflituoso da vida em sociedade. Tal aspecto, como se asseverou anteriormente, não parece estar muito presente nas teorias que apregoam a falência do sistema representativo, as quais, ao contrário, comumente se referem a expressões como bem comum e vontade geral, o que conduz à interpretação de que a democracia seria um mecanismo de construção de consensos e de pacificação social.

Certamente aí reside um equívoco a ser debelado. Com efeito, as relações de enfrentamento e de oposição são inerentes à vida em sociedade. Logo, são fenômenos absolutamente naturais e intrínsecos àquilo que Chantal Mouffe aponta como sendo a dimensão do político.

É necessário reconhecer, destarte, a dimensão do antagonismo e seu caráter inerradicável nas relações humanas, uma decorrência lógica e natural do pluralismo de valores vigorante na sociedade contemporânea.

E diante desse contexto, propõe-se a consolidação de uma democracia agonística, através da qual a política não procure a eliminação do poder e a construção de consensos, mas, ao contrário, sirva como ambiente para a construção de formas de poder mais compatíveis com os valores democráticos.

Para a consolidação desse ambiente agonístico, que se fundamenta, conforme exposto ao longo do texto, na transformação do inimigo em adversário legítimo, e na convivência com a constante tensão entre os grupos de poder presentes na sociedade, a participação popular na política parece ser o caminho mais adequado.

Tal participação até poderá se desenvolver em caráter que muito se aproxima do que se costuma denominar democracia direta. Entretanto, para além disso, é possível também conceber a participação popular na política por intermédio das próprias instâncias representativas hoje existentes. E nesse quesito, chama-se a atenção para o papel desempenhado pelos partidos políticos.

Com efeito, acredita-se que a participação popular na forma aqui concebida – por intermédio dos partidos políticos – deve ser também ampliada, em um formato que não invalida o sistema democrático-representativo.

Para que isso ocorra, todavia, faz-se necessário que os cidadãos se insiram cada vez mais nas instituições partidárias, consolidando o que aqui se chamou de democracia interna dos partidos políticos.

Nesse cenário, o que se tornará possível será a consolidação não mais da vontade do representante eleito, tal como ocorre no universo democrático-representativo. Ao contrário, passa-se à construção da vontade partidária, formalizada com a participação democrática, no âmbito interno, do próprio eleitor. Aproxima-se, assim, a decisão política final do cidadão enquanto indivíduo, conferindo-lhe maior participação no cenário político.

Tal sistemática, elucidada no presente artigo como democracia partidária ou Estado de Partidos, certamente se coaduna e valoriza o ambiente no qual se reproduzem os conflitos e antagonismos inerentes à vida em sociedade, em um reconhecimento agonístico do enfrentamento legítimo e das diferenças ideológicas observáveis no universo político.


Referências

BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência por uma nova hermenêutica por uma repolitização da legitimidade. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

______. A constituição aberta: temas político e constitucionais da atualidade, com ênfase no federalismo de regiões. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Trad.: Beatriz Sidou. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.

MEZZAROBA, Orides. Introdução ao direito partidário brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Lisboa, Gradiva, 1993.

______. Por um modelo agonístico de democracia. Rev. Soc. Polit., Curitiba, n. 25, p. 165-175, 2006.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad.: Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2003.

SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Introdução: para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (p. 39-82)

______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2005.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. O paradoxo de Rousseau: uma interpretação democrática da vontade geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

STRECK, Lenio Luiz e LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Constituição não prevê controle de constitucionalidade. Disponível em: <http://conjur.com.br/2011-jan-29/nao-espaco-controle-preventivo-constitucionalidade-brasil>. Acesso em: 11 mar. 2011.

VATTER, Miguel E. La democracia, entre representación e participación. In: NADALES, Antonio J. Porras (org.). El debate sobre la crisis de la representación política. Madrid: Tecnos, 1996.


Nota

[1] Para Mouffe (2006, p. 172), “O crescimento de várias religiões, bem como de fundamentalismos morais e étnicos, é [...] a conseqüência direta do déficit democrático que caracteriza a maior parte das sociedades liberal-democráticas”.

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Sobre o autor
Pedro Henrique Peixoto Leal

Possui graduação em Direito pela Universidade de Fortaleza (2005), especialização em Direito Público pela Universidade de Brasília (2013) e mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011). Atualmente é Procurador Federal - membro da Advocacia-Geral da União. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional e Teoria do Estado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEAL, Pedro Henrique Peixoto. Democracia agonística e partidos políticos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3939, 14 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27304. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Artigo elaborado para apresentação no XXI Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Outubro de 2012 na Universidade Federal Fluminense - UFF.

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