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Interpretação constitucional entre a dogmática e a zetética

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02/04/2014 às 13:40
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As influências dogmática e zetética, de forma equilibrada, em matéria de interpretação constitucional, são a segurança de que a Constituição não se tornará obsoleta e anacrônica, mas que terá o firme posicionamento que se mostrar necessário em dado contexto.

Resumo: A presente pesquisa tem por objeto principal o aprofundamento no tema interpretação constitucional, com o objetivo de vislumbrar as linhas então existentes e entraves decorrentes do erro ou vício do intérprete. Para tanto, como ponto de partida buscou-se dissecar a atividade interpretativa, com a elucidação de questões pertinentes às suas diversas espécies, aí contidos método, agente e extensão. Superado o tema, apresentou-se como necessidade a abordagem acerca dos postulados de interpretação constitucional, sistemas interpretativos e limites da interpretação. Por fim, conceituados todos os elementos básicos necessários ao exercício da tarefa hermenêutica, as perspectivas zetética e dogmática puderam ser estudadas como posturas a serem adotadas na condição de intérprete. Concluiu-se serem a dogmática e a zetética visões antagônicas cuja co-existência é necessária à manutenção do sistema, eis que a primeira é criadora de segurança jurídica enquanto a última propõe-se a atender às necessidades primordiais da justiça. Para o trabalho utilizou-se como método de abordagem o dedutivo e de procedimento o monográfico.

Palavras-chave:interpretação, constituição, dogmática, zetética.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1. A INTERPRETAÇÃO E SUAS ESPÉCIES. 1.1. Panorama geral. 1.2. Interpretação. 1.2.1.2. Interpretação privada. 1.2.1.3. Outras espécies de interpretação quanto ao agente. 1.2.2. A Interpretação quanto à Natureza. 1.2.2.1. Interpretação gramatical. 1.2.2.2. Interpretação teleológica. 1.2.2.3. Interpretação histórica. 1.2.2.4. Interpretação sistemática. 1.2.3. A Interpretação quanto à extensão. 2. INTERPRETAÇÃO: INÍCIO, MEIO E FIM. 2.1. Princípios de interpretação constitucional. 2.1.1. Princípio da Supremacia da Constituição. 2.1.2. Princípio da Unidade da Constituição. 2.1.3. Princípio da maior efetividade possível. 2.1.4. Princípio da Harmonização. 2.1.5. Outros princípios. 2.2. Sistemas interpretativos. 2.2.1. Sistema dogmático. 2.2.2. Sistema histórico-evolutivo. 2.2.3. Sistema da livre pesquisa. 2.3. Limites da interpretação constitucional. 2.3.1. Mutações Constitucionais. 2.3.2. Normas constitucionais inconstitucionais. 2.3.2.1. Contradições transcendentes. 2.3.2.2. Contradições positivas. 3. A CERTEZA DOGMÁTICA E A DÚVIDA ZETÉTICA. 3.1. Dogmática. 3.1.1. Segurança jurisdicional. 3.1.2. Segurança científica. 3.2. Zetética. 3.2.1. Reflexos da zetética. 3.2.1.1. Quebra de paradigmas. 3.2.1.2. Transição constitucional. 3.3. Ponderação de perspectivas. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 


INTRODUÇÃO

É fato que a interpretação constitucional e das normas em geral é fator decisivo para determinar o destino do jurisdicionado. Afinal, muito embora a função da criação das normas seja do constituinte, originário ou derivado, é somente quando de sua aplicação efetiva que o seu propósito se consuma. Sendo a Constituição a lei maior, sua adequada interpretação passa a ser objeto de estudo profundo, em especial pelo caráter amplo e genérico trazido por este tipo de norma, o que confere ao intérprete grande poder e responsabilidade.

Para tanto, a pesquisa tem por intuito adentrar nas nuances dos sistemas, métodos e visões interpretativas, eis que tais fatores definem o produto final da atividade hermenêutica em matéria constitucional, tornando-se imperiosa a observação de que, neste caso, os meios definem o fim, ainda que por vezes possam as diferentes linhas de raciocínio vir a convergir para a mesma conclusão.

Para tanto, propõe-se o estudo da atividade da interpretação constitucional em três diferentes etapas: a interpretação em si e suas espécies, o trajeto da interpretação constitucional e, por fim, as antagônicas perspectivas zetética e dogmática.

Por tais razões, adotou-se como metodologia de abordagem o método dedutivo, cuja angariação de um apanhado geral de conceitos passa a ser uma necessidade prévia para criar uma base sobre a qual trabalhar a pesquisa, viabilizando-se desta forma a obtenção de subsídios para uma conclusão congruente.

No que tange à metodologia de procedimento, ainda que se trate de assunto amplo, exige-se grande foco, sob pena de restar frustrada a intenção primordial do trabalho. Destarte, o método monográfico apresenta-se como o mais apropriado ao propósito.

O primeiro capítulo trabalha, portanto, a interpretação, aprofundando o conceito e adentrando nas diversas espécies – agente, natureza e extensão – o que viabiliza a compreensão da atividade dando a primeira base para o prosseguimento da pesquisa.

O capítulo seguinte tem por intuito justamente oportunizar o vislumbre do caminho que é percorrido quando da apreciação do sentido da norma constitucional. Assim, aborda inicialmente os postulados de interpretação constitucional como ponto de partida, por serem princípios inarredáveis na tarefa. Ato contínuo, traz a lume os sistemas de interpretação então reconhecidos pela doutrina majoritária, o que em verdade é meio adotado pelo hermeneuta. Por fim, impõe os limites da interpretação constitucional, fechando simbolicamente o ciclo.

Por derradeiro, o enfoque do terceiro capítulo recai sobre as óticas dogmática e zetética, que dada a sua oposição de polaridades, tem influência determinante sobre o intérprete, haja vista ter a primeira o intuito de enrijecer a interpretação então vigente, na medida em que a segunda tem caráter reciclador, suscitando a dúvida quando oportuno.


1. A INTERPRETAÇÃO E SUAS ESPÉCIES

1.1. Panorama geral

Sabe-se que a interpretação e a hermenêutica por vezes são utilizadas como sinônimos, ambas as expressões trazendo consigo, via de regra, o intuito de referir-se à atividade interpretativa das normas.

Entretanto, é oportuno iniciar explanação sobre o assunto com a diferenciação terminológica dos termos em questão, evitando-se destarte a sua equivocada utilização e consequente confusão de conceitos.

Inicialmente, cumpre salientar que Hermenêutica é ciência, que engloba, dentre outras atividades, a de interpretação. Assim, a Hermenêutica busca definir os critérios a serem adotados para o desenvolvimento da atividade interpretativa, resultando na interpretação mais fidedigna da norma – a depender, ainda, do sistema interpretativo adotado.

Jane Reis Gonçalves Pereira[1] esclarece que “a interpretação constitucional é uma modalidade de interpretação jurídica. Esta, por sua vez, pertence ao domínio da hermenêutica, que, na dicção de Emilio Betti, é a ciência do espírito que se ocupa da atividade de interpretar.”

A autora diferencia com clareza solar a distinção das figuras da interpretação e da hermenêutica:

A hermenêutica nasceu como uma disciplina filológica, consubstanciando uma técnica de leitura que visava a recuperar o sentido de escritos religiosos, como a Bíblia, e de obras da antiguidade clássica, como a Ilíada de Homero. O propósito da hermenêutica era, inicialmente, resgatar o sentido perdido dos textos, desvelando o seu significado autêntico, que o tempo obscureça. No século XX, o aporte de autores como schleiermacher e Dilthey ampliou o objeto da hermenêutica, a qual passou a abranger a compreensão de todas as formas de ação humana, tornando-se, assim, uma teoria geral da interpretação. A partir da obra desses autores, o foco primordial da hermenêutica deixa de ser o texto , passando a buscar-se a intenção do autor ou do agente histórico envolvido no fenômeno interpretado.[2]

Aliás, enriquece a explicação remetendo à origem do termo interpretação:

a origem etimológica da palavra interpretação abarca a preposição latina inter (entre) e a expressão indoeuropéia pre, que significa falar. Indica, assim, a idéia de pôr em contato duas partes falantes, remetendo à idéia de mediação. A palavra hermenêutica, por sua vez, procede do vocabulário grego “hermeneutike” – que significa arte de interpretar. Tal termo encontra-se estreitamente ligado ao simbolismo que cerca o mito de Hermes, Deus grego dotado de singular capacidade intelectual e de comunicação. Filho e mensageiro de Zeus, Hermes atuava como mediador entre os Deuses do Olimpo e entre estes e os mortais, decodificando a vontade divina e a transmitindo aos homens na forma de mensagens.[3]

Corroborando tal informação acerca da origem do termo empregado, Flávia de Almeida Viveiros Castro[4] acrescenta:

Etimologicamente a palavra interpretação deriva do verbo latino interpretari (interpretatio, interpres...). No latim, o vocábulo interpres é formado a partir da preposição inter, que evoca a idéia de ligação, e do substantivo praes, que é uma forma nominal tirada de um verbo antigo, significando comprar ou vender, lembrando o valor de algo. O primeiro sentido do termo interpretar é, portanto, aquele de intermediar valores. O intérprete é, pois, inicialmente, um intermediário, é ele que está entre, que se impõe para assegurar a comunicação e a valoração de duas instâncias distintas.

Assim, é correto pensar na Hermenêutica como ciência que regula as regras de interpretação, sendo plenamente aplicável às situações de cunho abstrato, o que não ocorre com a interpretação da norma, que, via de regra, para se situar exige o caso concreto como objeto de análise.

Feita a diferenciação, parte-se do ponto de que o ato de interpretar é mera atividade, que observa as regras – ou critérios – definidas pelo tipo de interpretação e sistemas interpretativos, estes por sua vez elementos que compõem a ciência da Hermenêutica.

Uma vez enquadrada na condição de ciência, a Hermenêutica comporta, para fins didáticos, divisões que auxiliam no melhor entendimento acerca da atividade interpretativa e das diversas espécies de interpretação e correspondentes peculiaridades, por assim dizer.

1.2. Interpretação

Resta claro, evidentemente, que os efeitos da aplicação da norma estão condicionados diretamente ao sentido que lhe é atribuído, de modo que a interpretação desempenha papel de inexorável importância para que se alcance o fim a que se destina a Constituição e leis infraconstitucionais.

Naturalmente, espera-se que a interpretação, independentemente da linha seguida, esteja sintonizada com as circunstâncias que permeiam a norma, de modo que a comunicação entre o abstrato e o concreto não se distorça.

Levando isso em conta, o mestre Norberto Bobbio[5] ministra cuidadosa explanação acerca da atividade interpretativa:

Mas o que significa interpretar? Este termo, com efeito, não é exclusivo da linguagem jurídica, sendo usado em muitos outros campos: assim se fala de interpretação das Escrituras Sagradas, de interpretação das inscrições arqueológicas, de interpretação literária, de interpretação musical... Pois bem, interpretar significa remontar do signo (signum) à coisa significada (designatum), isto é, compreender o significado do signo, individualizando a coisa por este indicada. Ora, a linguagem humana (falada ou escrita) é um complexo de signos, é uma especies do genus signo (tanto é verdade que é substituível por outros signos, por exemplo os gestos das mãos, embora seja mais perfeito porque mais rico e maleável). Assim, por exemplo, quando digo “cavalo”, me limito a produzir um som vocal, mas com isso indico uma coisa diferente de tal som. Como o complexo de signos, a linguagem exige a interpretação; esta é exigida pelo fato de que a relação existente entre o signo e a coisa significada (neste caso, entre a palavra e a idéia) não é uma relação necessária, mas puramente convencional, tanto que a mesma idéia pode ser expressa de modos diversos (o mesmo objeto, aliás, é indicado em cada língua com um som diverso). Ademais há sempre um certo desajuste entre idéia e a palavra, porque a primeira é mais rica , mais complexa, mais articulada do que a segunda, que serve para exprimi-la; além disto, nós não usamos nunca as palavras isoladamente (exceto o menino que aprende a falar ou quem se encontra num país estrangeiro de cuja língua só conhece alguns termos), mas formamos complexos de palavras, ou proposições. Ora, dependendo do contexto em que esteja inserida, a mesma palavra assume significados diferentes (e podemos até dizer que um termo tem tantos significados quantos são os contextos em que pode ser usado).

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Reside aí, portanto, a necessidade evidente de cautela quando da realização da interpretação, sob pena de ver-se desvirtuada a norma e perdido o seu propósito, tornando-se inócua frente à tarefa de tutelar o bem ou regular a conduta a que originalmente se destinava.

Não se deve prescindir, portanto, da correta situação da interpretação como ferramenta hermenêutica, conforme salienta Flávia de Almeida Viveiros de Castro[6]:

A interpretação ocupa uma sutil posição entre duas outras. Ela é a ligação entre plúrimos elementos. Deste ponto de vista, ela penetra em todos os campos da vida social. Na área do direito, Alea relaciona essencialmente o texto jurídico e o universo ao qual este se dirige. A lei, o direito são essencialmente inscritos dentro de textos que, por sua vez, são aplicados para dirimir litígios do cotidiano.

Para tanto, é recomendável que seja a interpretação dissecada, dividindo-se para fins didáticos em classificações que viabilizem melhor vislumbre do tema.

Fazendo referência a outros tantos renomados autores (Savigny, Fiore, Maximiliano, Serpa Lopes, entre outros), cuja adesão de ideias dá-se no mesmo sentido, R. Limongi França define que a interpretação de normas pode ser classificada em três espécies de interpretação: quanto ao agente, quanto à natureza e, por fim, quanto à extensão.[7]

1.2.1. A interpretação quanto ao Agente

O interpretador desempenha papel fundamental quanto à aplicação que será conferida à norma sob sua análise, o que implica em afirmar que é ele quem acabará por fazer com que a lei chegue ao seu destino.

Peter Häberle[8], cuja obra fora traduzida[9] por Gilmar Ferreira Mendes, esclarece que quem vive a norma acaba por interpretá-la ou co-interpretá-la, ainda que originariamente denomine-se interpretação apenas a atividade que busca de forma intencional e consciente a explicitação do sentido da norma.

Dentre os possíveis agentes interpretantes, pode-se dividir a atividade em duas grandes linhas de interpretação: pública ou privada.

1.2.1.1. Interpretação pública

Como se deduz, a interpretação pública é aquela emanada dos agentes públicos no exercício da função, tal como membros do Judiciário, Legislativo e Executivo. Ante esta variedade de pessoas que figuram no rol que compõem a já mencionada interpretação de cunho público, surge subdivisão: interpretação pública autêntica e interpretação pública judicial.

No que tange à primeira, resta evidente a ligação direta com os órgãos que editam a norma, que possuem plena atribuição para a edição de outros tantos diplomas de igual importância – hierárquica – para conferir ao texto original a interpretação mais apropriada.

Entretanto, em se tratando de interpretação constitucional, Luís Roberto Barroso[10] atenta para a impropriedade técnica do termo “interpretação autêntica”, explicitando o porquê do entendimento:

A rigor, a interpretação constitucional, para ser verdadeiramente autêntica, na conformidade da definição, teria de emanar da mesma fonte instituidora: o poder constituinte originário. Isso, normalmente, não será possível, pois, uma vez concluída a sua obra, o poder constituinte originário se exaure, ou, melhor dizendo, volta ao seu estado latente e difuso. De modo que não se pode falar em interpretação constitucional verdadeiramente autêntica.

De outra banda, a interpretação pública Judicial – ou jurisdicional – é aquela realizada pelo Judiciário, quando da execução de sua missão constitucional de se fazer cumprir a lei. A consequência de tal interpretação – ainda que não como no Common Law – é a geração de jurisprudência capaz de nortear casos idênticos ou análogos.

O resultado mais marcante, na prática, são os enunciados de súmulas dos Tribunais Superiores, dando-se maior destaque aqui às súmulas vinculantes oriundas do Pretório Excelso, bem como as (intensamente) presentes súmulas do Tribunal Superior do Trabalho.

1.2.1.2. Interpretação privada

Ousa-se dizer que tão importante quanto a interpretação pública, é a interpretação privada. Tal assertiva decorre da constatação de que em maioria volumosa a própria interpretação pública é diretamente influenciada pela privada.

Ora, por mais bem preparados que estejam os agentes públicos em função, a sua formação intelectual, atual ou futura, via de regra é fruto de considerável carga de conhecimento acumulada pelo contato com a doutrina jurídica.

Como se parte do corolário de que o ser humano não nasce tendo conhecimento, a ilação é também no sentido de que todo o conhecimento adquirido é aprendizado do meio. E, no meio jurídico, são as grandes obras e os mestres do direito os responsáveis pela ampliação do horizonte dos julgadores e legisladores. Luís Roberto Barroso[11] acrescenta:

A interpretação doutrinária não se dirige, diretamente, à aplicação das normas constitucionais, mas, sim, a fornecer subsídios para os órgãos encarregados de realizá-la. Trata-se do produto do trabalho intelectual de jurisconsultos, professores, e escritores em geral. Também os advogados, elaborando teses jurídicas e ousando criativamente na defesa dos interesses que patrocinam, prestam importante contribuição de cunho doutrinário.

Então, quando (ilustrativamente) um juiz de direito forma sua convicção com base no que defende um reconhecido autor sobre aquela área do conhecimento jurídico, ele na verdade estará aderindo à interpretação feita por outro agente. Neste momento verifica-se que aparentemente se estará diante de uma manifestação de interpretação pública, quando em verdade a fonte real do ponto de vista é a interpretação privada.

Não obstante o precioso trabalho realizado pelos docentes e pesquisadores que ampliam o horizonte da hermenêutica, uma parcela de mérito deve ser também reservada aos profissionais que atuam na área, que, nesta condição, não se desvestem da atividade interpretativa.

Não se pode olvidar aqui da interpretação privada realizada pelo advogado, figura indispensável à administração da justiça, nos termos do art. 133 da Carta Magna.

São os advogados – em pólos opostos – os responsáveis por levar ao Judiciário as novas teses, com aprofundamento de interpretação sobre as normas em lume no caso concreto. De tal aprofundamento, resulta não raras vezes o questionamento acerca do correto prisma a ser adotado para que se faça ter a norma o valor que efetivamente deveria ter.

Destarte, sem embargo da forte influência doutrinária que recai sobre os julgadores, ainda há que se considerar que são também tentados – pelos profissionais patrocinadores das causas – a rever os seus pontos de vista, dando margem para uma alteração do ponto de vista acerca dos dispositivos legais invocados.

Possivelmente este seja um dos motivos pelo qual o constituinte originário viu-se obrigado a fazer constar, no já referido artigo da Constituição de 1988, a importância do advogado para a justiça. É ele quem provoca a quebra de paradigmas, quem viabiliza a revisão dos dogmas que exigem superação.

Afinal, se de um lado é o advogado seguidamente influenciado pelo posicionamento jurisprudencial, de outro lado, é ele também o responsável por promover a cristalização de tais entendimentos pelos Tribunais.

Vale lembrar, a título de exemplo, da criação doutrinária da figura da exceção de pré-executividade, por Pontes de Miranda, em 1966. Na ocasião, defendia o renomado jurista os interesses da siderúrgica Mannesmann, que sofria execução de títulos executivos extrajudiciais com vício grave, sem que houvesse o direito de realizar efetiva defesa em virtude da ausência de previsão legal.

Para atacar a questão, elaborou o jurista parecer que suscitava a mais óbvia aplicação do senso básico de justiça e licitude. Assim dizia:

Quando se pede ao juiz que execute a dívida, tem o juiz de examinar se o título é executivo, seja judicial, seja extrajudicial. Se alguém entende que pode cobrar dívida que consta de instrumento público, ou particular, assinado pelo devedor e por duas testemunhas, e o demandado – dentro das 24 horas – argui que o instrumento público é falso, ou de que a sua assinatura, ou de alguma testemunha, é falsa, tem o juiz de apreciar o caso antes de ter o devedor de pagar ou sofrer a penhora.[12]

É de saber comum que muito embora não previsto em lei o instituto passou a ser aceito tanto pela doutrina quanto pelo judiciário como meio hábil de impugnação de execução que possa conter vício. Tornou-se um referencial na área, um exemplo prático de reinterpretação da norma, com a utilização de princípios como fonte apta para suprir a falha do texto legal.

Em suma, percebe-se que ao veicular em suas teses interpretações inovadoras sobre a Constituição ou a vasta legislação já existente, acaba o advogado por inspirar o Judiciário a encontrar a melhor aplicação da lei para o caso concreto.

1.2.1.3. Outras espécies de interpretação quanto ao agente

Há na doutrina quem defenda ainda que além das duas principais espécies de interpretação quanto ao agente (pública e privada), existem outras duas de menor relevância distintiva: administrativa e usual.

No que tange à primeira, explica R. Limongi França que se estaria a tratar daquela “realizada por órgãos do Poder Público que não são detentores do Poder Legislativo nem do Judiciário.”[13]

Como reconhece o próprio autor, tal variedade de interpretação pública tem sido olvidada pelos doutrinadores, muito embora esteja presente a classificação em algumas obras.

Dentre elas, George Salomão Leite[14] exemplifica a interpretação pública administrativa com situação hipotética:

Questão interessante é a do descumprimento, pelo Chefe do Poder Executivo, de lei por ele reputada inconstitucional. Em outras palavras, o Chefe do Poder Executivo pode deixar de aplicar uma lei que considere inconstitucional. Eis um caso típico de interpretação constitucional por parte do Executivo.[15]

Também inclui no rol de possibilidades de interpretação quanto ao agente, o mestre Luís Roberto Barroso, que assim expõe seu entendimento:

É igualmente indispensável a interpretação para que os órgãos do Executivo possam dar cumprimento aos atos normativos e aos atos de individualização de situação jurídicas na conformidade da Constituição, além de sua importância na elaboração das políticas governamentais, que devem, necessariamente, apontar para os fins constitucionais. Aliás, o Executivo, em certos casos, pode interpretar a Constituição até mesmo para divergir da interpretação que haja sido dada pelo Legislativo. É que a doutrina e a jurisprudência a ele tem reconhecido o poder de deixar de aplicar os atos legislativos que considere inconstitucionais.[16]

Entretanto, como já referido, trata-se de espécie de interpretação pública deixada em segundo plano pela maioria da doutrina. Uma das primeiras hipóteses a ser considerada para entender o motivo disso, seria o fato de que possivelmente boa arte da doutrina entenda – interprete – que tal atividade enquadrar-se-ia no conceito de interpretação pública autêntica, quando considerado o poder regulamentar do Executivo, por exemplo.

Uma segunda hipótese seria a menor relevância da atividade interpretativa administrativa quando comparada com a interpretação pública autêntica, que estabelece normas, ou com a interpretação pública judicial, que decide em última instância como devem ser aplicadas – não raras vezes, obrigando o Executivo a fazer ou deixar de fazer aquilo que entendia não se aplicar, decorrente da interpretação administrativa.

Por fim, França destaca ainda uma quarta espécie de interpretação pública, definida como usual, trazendo o direito consuetudinário como um possível norte interpretativo. O autor lembra que “como é sabido, há costumes interpretativos.”[17]

Assim como ocorre com a interpretação pública administrativa, a quarta espécie de interpretação desta natureza também não desempenha grande relevo em matéria de classificação por parte da doutrina.

O mais provável, neste caso, é que não apenas se trate de espécie que não mereça maior destaque, mas também já se veja naturalmente incluída tanto na interpretação autêntica quanto na interpretação judicial. Afinal, estar-se-ia diante de uma escancarada alienação do Legislativo e Judiciário se ignorassem as peculiaridades do território abrangido pela norma interpretada.

1.2.2. A Interpretação quanto à Natureza

 Conhecidos como meios ou métodos de interpretação, são sistemas adotados para que se apure o verdadeiro valor atribuído à norma objeto do interpretante, sendo atualmente divididos em quatro espécies, ou elementos: gramatical, lógica, histórica e sistemática.

A importância dos diferentes métodos interpretativos decorre também da variedade e complexidade de casos concretos que possam surgir exigindo interpretação de normas. Como aponta Luís Roberto Barroso[18], duas são as possibilidades que surgem quando da adoção de diferentes elementos de interpretação: todos convertem para o mesmo resultado, criando-se fácil solução para a problemática; ou, em situações mais complexas, os diferentes métodos interpretativos geram diferentes conclusões, estando o intérprete diante de um caso difícil.

1.2.2.1. Interpretação gramatical

Também conhecida como interpretação léxica, literal, textual, filológica, verbal ou semântica, é o mais antigo método interpretativo existente na seara do direito, recordando França[19] que “[…]tempo houve, no direito romano, em que era a única permitida, pois, como observa Ihering, a importância das palavras era tal que a omissão de uma só delas, no entabulamento de um ato jurídico, podia gerar a sua nulidade”.

Os seguidores desta linha alegam que a norma deve expressar-se por si, valendo para fins interpretativos aquilo que nela consta literalmente, o que consequentemente acaba minorando a margem para distorção da lei e eventual arbitrariedade.

Até certo ponto coaduna-se com a idéia da teoria objetiva, em que o teor a ser levado em consideração é o da mens legis, e não o que desejaria dizer, em tese, o legislador da época da edição da norma.

Luis Roberto Barroso[20] explica que “na interpretação constitucional, por vezes, não é necessário ir além da letra e do sentido evidente do texto como se passa, por exemplo, em relação aos dispositivos acerca da composição e funcionamento dos órgãos estatais”.

Aliás, o mestre prossegue tecendo comentários sobre a relevante presença da interpretação gramatical, invocando comparação com o direito norte-americano:

É corrente, na prática jurisprudencial americana, que as palavras em uma Constituição são empregadas em seu sentido comum. No fundo, é o desejável, pois, tratando-se de um documento simbolicamente emanado do povo e destinado a traçar as regras fundamentais de convivência, seus termos devem ser entendidos em sentido habitual.[21]

Entretanto, adverte Maria Helena Diniz[22]: “Insidiosa é a máxima in claris non fit interpretatio, pois as leis claras contêm o perigo de serem entendidas apenas no sentido imediato decorrente dos seus dizeres, quando, na verdade, têm valor mais amplo e profundo que não advém de suas palavras.”

1.2.2.2. Interpretação teleológica

De certa forma, pode ser considerada como uma evolução distante da interpretação gramatical, uma vez que busca a interpretação da norma por meio da apreciação conjunta dos termos empregados. Em outras palavras, a interpretação isolada das palavras viabiliza a interpretação conjunta.

Como esclarece França[23], “a interpretação lógica é aquela que se leva a efeito, mediante a perquirição do sentido das diversas locuções e orações do texto legal, bem assim através do estabelecimento da conexão entre os mesmos.”

Entretanto, diferentemente do intuito da interpretação gramatical, a interpretação lógica é meio hábil para alcançar o conhecimento acerca da mens legislatoris, ou seja, aquilo que desejava transmitir o legislador.

É neste aspecto que surge a fundamental diferença com relação à interpretação gramatical, pois não se prende à letra fria do enunciado do dispositivo legal ou constitucional em apreço.

Conforme ensina George Salomão Leite[24], “através do elemento teleológico busca-se a ratio legis, a razão da lei. Nela o intérprete procura conhecer a finalidade, o valor que está por trás do enunciado prescritivo.”

De outra banda, também tem alguma proximidade com o método histórico, pois pode utilizar-se das circunstâncias do passado para compreender o intuito da norma. Todavia, diferencia-se daquele método por não estar atrelado às condições históricas, buscando tão-somente compreender o objeto perseguido pelo legislador ou constituinte. Ou seja, não se prende a dada ocorrência ou circunstância do passado, mas resgata a intenção do legislador de modo que possa ela ser adequada às peculiaridades hodiernas e vindouras.

Muito embora inexista hierarquia entre os métodos de interpretação, com alguma frequência o elemento teleológico, na opinião de alguns doutrinadores, demonstra ser merecedor de preponderância na interpretação constitucional, possivelmente por ser aquele que tenta manter a norma útil e atual, outorgando-lhe condições de cumprimento do propósito para o qual foi elaborada. Assim também entende o professor Luís Roberto Barroso[25]:

A Constituição e as leis, portanto, visam a acudir certas necessidades e devem ser interpretadas no sentido que melhor atenda à finalidade para a qual foi criada. O legislador brasileiro, em uma das raras exceções em que editou uma lei de cunho interpretativo, agiu, precisamente, para consagrar o método teleológico, ao dispor, no art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil, que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Conclui-se, pois, tratar-se de método interpretativo que muito embora não desvalorize a disposição textual da norma, tem por intuito averiguar a sua real razão de existir, permitindo-lhe uma efetiva e eficiente aplicação mesmo com o passar dos anos e alteração das condições originais.

1.2.2.3. Interpretação histórica

É por meio do elemento histórico que se busca interpretar a original vontade do legislador, a fim de se alcançar razoável estabilidade nas decisões judiciais.

George Salomão Leite[26] aduz que “segundo esta concepção, o significado da lei é aquele atribuído por quem a elaborou. Busca-se na vontade do legislador histórico, o significado do texto legal.”

Em sentido semelhante, mas entendendo que tal espécie de interpretação busca não apenas a vontade do legislador como, também, as circunstâncias históricas que deram ensejo ao surgimento da norma, França[27] esclarece: “chama-se interpretação histórica aquela que indaga as condições de meio e momento da elaboração da norma legal, bem assim das causas pretéritas da solução dada pelo legislador.”

Porém, adverte Luís Roberto Barroso[28] que “apesar de desfrutar de certa reputação nos países que adotam o common law, o elemento histórico tem sido o menos prestigiado na moderna interpretação levada a efeito nos sistemas jurídicos da tradição romano-germânica”. Todavia, o doutrinador entende necessário destacar que “o elemento histórico desempenha na interpretação constitucional um papel mais destacado do que na interpretação das leis.” [29]

Finalizando a abordagem sobre o tema, Barroso[30] alerta que os limites da interpretação histórica devem ser respeitados, sob pena de restarem as necessidades presentes e futuras aprisionadas às condições do passado, as quais deram ensejo à norma. Ilustra lamentável ocorrência de desrespeito a esta limitação invocando o julgamento Olmstead vs. United States, no qual a Suprema Corte entendeu inexistir violação da 4ª Emenda – cujo teor traz vedação à prova ilegal e busca e apreensão desprovidas de ordem judicial – supostamente causada pela utilização indevida de interceptação telefônica, pois, aos olhos do então julgador, o comando não se aplicaria ao caso porque em 1971 – data da edição da norma – o telefone ainda não era recurso existente.

É, portanto, espécie de interpretação que antagoniza a interpretação gramatical, coadunando-se com a linha de entendimento que defendem os subjetivistas.

1.2.2.4. Interpretação sistemática

Tida como uma das mais importantes espécies de interpretação jurídica, tal elemento define que não há interpretação da norma sem análise contextual, o que implica na impossibilidade de se alcançar o melhor resultado interpretativo se forem ignorados as demais informações que constituem o todo, tal como apregoa George Salomão Leite[31].

Neste quesito, entra em sintonia com o postulado da Unidade da Constituição, que é adotado como um dos nortes em matéria de interpretação exclusivamente constitucional.

Destarte, segundo esta espécie, é inviável compreender o real significado da norma sem que se analise o todo no qual ela está inserida, observando-se as mais tênues conexões existentes no conjunto.

Luís Roberto Barroso[32] eslcarece:

O método sistemático disputa com o teleológico a primazia no processo interpretativo. O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente. A interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas.

Insta salientar que em se tratando de interpretação constitucional, a adoção de tal elemento de interpretação é obrigatória, sob pena de geração de contradições entre as disposições da Carta Maior.

1.2.3. A Interpretação quanto à extensão

Trata-se de conclusão lógica a previsão de que dadas as espécies de interpretação que possam ser adotadas, diferentes consequências poderão resultar. Assim, a título de exemplo, se adotado o elemento teleológico ou histórico para interpretar a norma, pode acabar o intérprete por descobrir que a letra da lei está em falta com a mensagem que deveria ser transmitida, seja por dizer menos do que deveria, seja por dar a entender o que de fato não é.

Desta forma, no que tange à extensão da interpretação, três são as possíveis espécies: declarativa, extensiva e restritiva.

Entende-se por interpretação declarativa aquela que conclui que a lei expressa com exatidão o seu propósito, não havendo qualquer dissonância entre o seu texto e a forma de sua aplicação.

Ressalte-se que não há qualquer relação entre a clareza da mensagem e a necessidade de adoção do método Literal de interpretação. O que ocorre, neste caso, é que seja por se busca à idéia do legislador, seja por análise da letra fria da lei, o objeto da norma coincide com a disposição textual.

Quanto à interpretação extensiva, trata-se de decorrência da constatação de que a norma tem maior importância do que aparenta. Seu texto é deficiente quando posto em cotejo com o objeto que efetivamente busca regular ou tutelar.

Dessa feita, concluindo o intérprete da norma que a sua existência busca, na verdade, alcançar objeto mais abrangente do que aquele constante em seu teor literal, sua interpretação acaba por estender o efeito da norma.

Em sentido diametralmente oposto, a interpretação restritiva é fruto da observação de que a norma traz em seu corpo dizer mais robusto do que aquele a que se propunha.

Assim, a fim de evitar que a aplicação da norma crie situações impróprias, presta-se a interpretação restritiva a mitigar o teor do texto, fazendo valer-lhe o sentido correto – na ótica do intérprete.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Ádamo Brasil. Interpretação constitucional entre a dogmática e a zetética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3927, 2 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27374. Acesso em: 22 nov. 2024.

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