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Interpretação constitucional entre a dogmática e a zetética

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02/04/2014 às 13:40
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2. INTERPRETAÇÃO: INÍCIO, MEIO E FIM

Como já demonstrado no capítulo anterior, a interpretação é atividade imprescindível à correta aplicação da norma – constitucional ou não – pois cria condições mínimas e limites de atuação do aplicador da lei. Em se tratando de interpretação constitucional, tal atividade não é menos importante. Muito pelo contrário, haja vista a amplitude das normas constitucionais, a interpretação passa a ser necessária em grande parte dos dispositivos contidos na lei maior.

Destaca José Adércio Leite Sampaio[33]:

Ao longo dos dois últimos séculos, a Teoria do Direito tenta compreender epistemologicamente o estatuto teórico do conhecimento jurídico como uma ciência. Para isto, lançou-se mão, historicamente, do conceito de sistema, e todo esforço da interpretação jurídica moderna tem sido, pelo menos até a metade do nosso século, no sentido de compreender o ordenamento jurídico como um sistema. Se a teria jurídica tradicional podia concordar com o pluralismo na produção do ordenamento jurídico, ela não podia no entanto concordar com um pluralismo na sua aplicação e, sobretudo, no conhecimento jurídico. Se o legislador, pressionado por forças políticas contraditórias, formula um direito antinômico e conflituoso, compete ao cientista do direito encontrar o sistema que subjaz ao caos legislativo aparente.

Destarte, a fim de que se possa proceder a interpretação constitucional adequada e efetiva, criou-se entre a doutrina uma série de critérios, desde pontos de partida até os limites a que pode chegar a interpretação.

2.1. Princípios de interpretação constitucional

Percebe-se na doutrina constitucionalista um certo consenso acerca dos princípios – ou também nominados postulados – aplicáveis para a interpretação constitucional, os quais tem função de consolidar a Lei Maior, dando-lhe sentido eficiente e harmônico.

Dentre tais postulados, alguns são de reconhecimento unânime entre os autores abordam o tema; outros, arrolados apenas por parte da doutrina, são trazidos de forma complementar.

2.1.1. Princípio da Supremacia da Constituição

O intuito do postulado é o de distinguir a Constituição das demais normas em virtude de sua superioridade hierárquica, de modo que não sejam as leis influenciadoras daquela, mas sim o inverso.

Celso Ribeiro Bastos[34] é categórico:

O postulado da supremacia da Constituição repele todo o tipo de interpretação que venha de baixo, é dizer, repele toda a tentativa de interpretar a Constituição a partir da lei. O que cumpre ser feito e sempre o contrário, vale dizer, procede-se à interpretação do ordenamento jurídico a partir da Constituição.

George Salomão Leite[35] ressalta que “é da rigidez da Constituição que deriva a superioridade formal das normas constitucionais sobre as demais normas integrantes da ordem jurídica.”

Ante a obviedade do propósito do postulado em questão, não há necessidade de mais profunda explicação. O que se pretende é que se faça respeitar a hierarquia de normas existente também na atividade interpretativa, pois deve a lei ceder à constituição e nunca o contrário.

2.1.2. Princípio da Unidade da Constituição

Segundo este postulado, a interpretação deve ser realizada sempre levando em consideração a constituição como um sistema, um organismo, que deve ter sentido e eficiência nos seus diversos aspectos, como um todo. Aliás, Virgilio Afonso da Silva[36] aponta que “o chamado princípio da unidade da constituição parece em nada se diferenciar daquilo que há pelo menos século e meio se vem chamando de interpretação sistemática”.

Vale dizer que interpretações isoladas que possam criar contradições dentro da própria constituição são vedadas. Isso implica na conclusão de que o método de interpretação sistemático é obrigatório, não obstante possam estar presentes outros.

Aliás, sobre a questão o comentário de George Salomão Leite é de total pertinência:

Por força do princípio da unidade, a Constituição deve ser compreendida de forma sistêmica, não devendo o exegeta interpretar uma norma constitucional isoladamente. A Constituição é um sistema, e como tal deve ser considerada. Deve-se evitar, ressalte-se mais uma vez, qualquer interpretação que resulte em conflito entre normas constitucionais.[37]

Afinal, quando a norma constitucional é clara, o método gramatical encontrará o mesmo destino que o método sistemático. De igual sorte, os métodos teleológico e histórico, ao buscarem o intuito genuíno da norma, podem ser indispensáveis para a interpretação de determinado dispositivo constitucional, desde que não afastado o método sistemático. Canotilho[38] explica:

O Princípio da unidade da constituição ganha relevo autónomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas. […] Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios. [sic]

Celso Ribeiro Bastos[39] complementa:

É necessário, pois, que o intérprete procure as recíprocas implicações, tanto de preceitos como de princípios, até chegar a uma vontade unitária da Constituição.

Como consequência desse princípio, as normas constitucionais devem sempre ser consideradas como coesas e mutuamente impricadas. Não se poderá jamais tomar determinada norma isoladamente, como suficiente em si mesma.

A aplicação do postulado é imperiosa por ser responsável pelo fortalecimento da Constituição. Impede o surgimento de contradição entre os próprios dispositivos, o que fatalmente fragilizar-lhe-ia como norma suprema.

2.1.3. Princípio da maior efetividade possível

Também chamado por Canotilho[40] de princípio da máxima efetividade, princípio da eficiência ou princípio da interpretação efetiva, o postulado em questão tem por objeto valorizar a mensagem trazida pela norma constitucional, devendo ser-lhe dada o sentido que maior eficácia lhe dê.

Como a norma não deve empregar palavras inúteis, sempre que possível, o alcance mais eficiente deve ser atribuído ao dispositivo constitucional sob análise interpretativa.

Todavia, Celso Ribeiro Bastos alerta para os cuidados que se deve ter quanto à aplicação do postulado:

Mas cumpre advertir que o axioma aqui colocado não é sinônimo do que se designa por interpretação ampliativa, nem mesmo se pense em convertê-lo em estímulo para, em casos duvidosos, fazer prevalecer sempre a interpretação lata. Isto seria, em muitos casos, subverter os fins para os quais existe a Constituição, dentre eles o da defesa do indivíduo.[41]

A idéia do postulado não é a de dar sentido extremamente amplo, pois acabaria por se criar uma ilegítima interpretação extensiva, o que por vezes seria absurdo. O que pretende o postulado é fazer com que a interpretação dê à norma constitucional o sentido mais coerente possível – e aqui deve ser novamente observado o princípio da unidade.

2.1.4. Princípio da Harmonização

Também conhecido por princípio da concordância prática, em verdade, trata-se como um postulado secundário, decorrente do princípio da unidade da constituição. Assim, apregoa a necessidade de que os diversos trechos da constituição, ainda que aparentemente contraditórios em determinado aspecto, encontrem um ponto de vista harmônico.

Canotilho destaca que “o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros”[42], entendimento este que é adotado também, sem alterações, por George Salomão Leite[43].

Celso Ribeiro Bastos leciona sobre o tema:

Assim, o postulado da harmonização impõe que a um princípio ou regra constitucional não se deva atribuir um significado tal que resulte ser contraditório com outros princípios ou regras pertencentes à Constituição. Também não se lhe deve atribuir um significado tal que reste incoerente com os demais princípios ou regras.[44]

David Diniz Dantas aborda a idéia da atenção ao conceito de proporcionalidade, que deve ser realçado entre os princípios que possam sofrer conflitos ante o caso concreto que os suscite:

Com a idéia de proporcionalidade procura-se desenvolver (não solucionar definitivamente) o conflito de princípios por meio de uma “solução de compromisso” por meio da qual um deles será privilegiado no caso concreto, mas sempre procurando minimizar os efeitos ofensivos ao princípio “perdedor”. Este em todo caso deve ter seu “núcleo essencial respeitado.[45]

Com entendimento semelhante, Virgilio Afonso da Silva[46] argumenta que a idéia de concordância prática está “estreitamente ligada à idéia de proporcionalidade, pois exige que, na solução de problemas constitucionais, deve-se procurar acomodar os direitos fundamentais de forma que todos possam ter uma eficácia ótima. Mas há algumas diferenças”.

De certa forma também vincula-se ao postulado da máxima efetividade, uma vez que a harmonização busca dar coerência à norma em lume, possibilitando-lhe uma aplicação sem riscos de conflito com os demais dispositivos e princípios constitucionais.

2.1.5. Outros princípios

Muito embora os quatro princípios anteriores sejam elencados em uníssono diapasão pela doutrina, não se pode olvidar ainda da existência de outros, não adotados em consenso pelos autores constitucionalistas.

Dentre estes, Canotilho destaca outros três princípios, que serão alvo de curta análise: princípio do efeito integrador, princípio da conformidade funcional e princípio da força normativa da constituição.

O primeiro, frequentemente associado ao postulado da unidade, busca enfrentar os problemas de ordem constitucional com soluções que atentem aos princípios basilares da carta maior, de caráter social e relacionados à estabilidade política. Tal como esclarece David Diniz Dantas[47], “a integração do ordenamento jurídico por meio da Constituição é uma das finalidades principais da interpretação constitucional[…]”.

Segundo Canotilho, “na resolução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política.”[48]

Já o princípio da conformidade funcional – ou princípio da justeza – intenta evitar que a interpretação constitucional altere organização de competências definida pelo constituinte originário.

George Salomão Leite esclarece que “consoante este postulado, as normas constitucionais devem ser interpretadas de modo a não alterar as competências dos órgãos públicos constitucionalmente fixadas.”[49]

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Assim, a interpretação pelo Judiciário – ou órgãos que tenham poder de decisão quando da aplicação prática da constituição – não pode fugir daquilo estabelecido na Carta Maior. A tarefa de alterar a organização da constituição não cabe ao intérprete, mas sim ao constituinte.

Por fim, o princípio da força normativa da constituição tem por escopo manter o interpretante das leis infraconstitucionais atento à necessidade de não perder de vista os preceitos fundamentais da norma maior.

Canotilho esclarece que “na solução de problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia óptima da lei fundamental.”[50]

David Diniz Dantas conecta este princípio ao postulado da máxima efetividade, pois entende que “a idéia de ambos os princípios é realçar que na solução de casos constitucionais devem prevalecer os pontos de vista que promovam a eficácia máxima da Constituição”[51].

2.2. Sistemas interpretativos

Uma vez definidas as espécies de interpretação, quanto ao agente, natureza e extensão, e princípios que norteiam o ponto de partida da tarefa interpretativa, torna-se viável avançar o estudo, passando-se à análise dos sistemas interpretativos, que visam a definir a postura e liberdade do intérprete.

Consoante magistério de França[52], três são os sistemas de interpretação hoje identificados: o dogmático, o histórico-evolutivo e o da livre pesquisa.

2.2.1. Sistema dogmático

Também conhecido como sistema exegético, sistema jurídico-tradicional ou, ainda, sistema francês, tem indissociável relação com a postura adotada pelos intérpretes ante o Código de Napoleão – tal como sugere a última nomenclatura.

Como amplamente sabido, o referido diploma veio a ser consolidado como uma das mais completas fontes legais – dadas as circunstâncias históricas locais –, tornando-se inquestionável a sua aplicação. Daí a relação com a dogmática.

O sistema em questão divide-se em duas correntes: a extremada e a moderada.

Os defensores da orientação extremada simpatizam, em regra, com a interpretação gramatical, uma vez que entendem que a norma expressa com exatidão aquilo que deseja (ou desejava) o legislador ou constituinte.

Assim, a função do intérprete não é a de dar novo sentido à norma, mas sim de explicá-la, ainda que discorde de eventuais desajustes em relação aos fatos que devem a ela serem submetidos.

De outro lado do sistema dogmático, tem-se a orientação moderada, a qual permite a adoção de interpretação sistemática, histórica ou teleológica das normas envolvidas, flexibilizando-se o entendimento acerca do teor do dispositivo legal ou constitucional quando houver real necessidade. Tecendo comentários sobre a orientação moderada, França refere que “para os casos duvidosos, recomenda a interpretação sistemática a consulta às fontes que propiciaram o texto ao legislador, o exame dos trabalhos preparatórios, a ponderação das consequências das interpretações possíveis e, finalmente, a indagação do espírito da lei.” [53]

2.2.2. Sistema histórico-evolutivo

Inspirado nos ensinamentos de Savigny, França[54] esclarece que se trata de sistema que utiliza dos quatro elementos de interpretação (gramatical, teleológico, histórico e sistemático), a serem utilizados em conjunto para o resultado mais fidedigno ao propósito da norma.

Entretanto, a impressão que se extrai da análise de tal sistema, é de estar substancialmente mais presente a interpretação histórica, prestando-se como imprescindível base para a confirmação da interpretação sistemática, teleológica ou gramatical que porventura se faça. Que se observe, todavia, que a utilização das últimas três espécies interpretativas não acarreta qualquer prejuízo ao resultado, estando em verdade vinculada à perspectiva adotada pelo intérprete.

A tendência, no entanto, é que a limitação do próprio sistema acabe por culminar em uma absorção pelo sistema da livre-pesquisa, eis que este último vale-se também de dados históricos e da apreciação da evolução da necessidade do jurisdicionado para alcançar o seu intento interpretativo.

2.2.3. Sistema da livre pesquisa

Também conhecido como sistema da livre formação do direito, compartilha com o sistema histórico-evolutivo a missão de solucionar as dificuldades decorrentes da adoção do ponto de vista dogmático.

Ocorre que, diferentemente do sistema histórico-evolutivo, não há limites para o sistema da livre pesquisa, que se utiliza de elementos históricos, socais, fontes legais, constitucionais e demais fatores válidos para alcançar o objeto final: a interpretação ideal.

Já no que diz respeito ao sistema exegético, depreende-se que o sistema da livre pesquisa adota caminho nitidamente contrário, criando uma perspectiva que antagoniza o posicionamento dogmático.

Aliás, tal assertiva justifica a relevância que adquire o sistema interpretativo da livre pesquisa. A consequência do seu surgimento é o surgimento de uma dicotomia, na qual se posiciona em um pólo o sistema dogmático e no outro o sistema da livre interpretação. Instaura-se aí a possibilidade da atividade dialética, que será objeto de melhor análise no capítulo seguinte.

Divide-se o sistema da livre formação do direito em duas linhas: a romântica e a científica.

Quando nomina a doutrina como postura romântica, refere-se justamente à influência trazida pela formação pessoal do intérprete. Acabam por incidir na interpretação elementos de caráter sentimental ou ideológico inerentes ao agente que interpreta, o que muito embora possa ter resultados positivos quando da análise do caso prático, gera também o risco da insegurança. França adverte que “não se trata propriamente de um sistema científico, senão de uma atitude antijurídica que, se generalizada, comprometeria a paz e a segurança públicas.”[55]

Diametralmente oposta à postura romântica, a perspectiva científica busca o seu embasamento nas normas, filosofia, história e outras ciências que contribuam para uma interpretação fundamentada.

Por óbvio não interessa à presente pesquisa – e possivelmente a nenhuma outra de cunho acadêmico – a postura romântica, limitando-se a sua utilização às relações de cunho privado ou às batalhas judiciais que, por vezes, adotam de linha argumentativa que escapa da seara do direito – em prol da persuasão.

2.3. Limites da interpretação constitucional

É certo que a interpretação da norma, como atividade complementar à edição do próprio texto, possui limites. Estes, por sua vez, são de certa forma previsíveis e justificáveis quando observados os postulados de interpretação constitucional.

Ora, a ausência de limites no desempenho da tarefa ensejaria a possibilidade de distorção do cerne da constituição, uma vez que teria o interpretante o poder absoluto de ditar o que, em tese, tal dispositivo constitucional efetivamente significa dentro de determinado contexto.

Portanto, visando a evitar o desenvolvimento de preocupante quadro, alguns critérios são adotados como limites na interpretação da lei maior, sem embargo todavia dos postulados ou princípios constitucionais que também orientam a atividade.

2.3.1. Mutações Constitucionais

Inúmeros são os fatores que implicam em uma mutação gradual de uma sociedade: avanço em matéria de tecnologia ou educação, crise ou desenvolvimento econômico, influência cultural externa, etc.

Por tal razão, alteram-se também as necessidades de uma nação, sejam elas individuais ou coletivas, o que implica em uma adequação do sistema jurídico então vigente.

Afinal, as condutas só devem se adequar à lei quando esta estiver em sintonia com as necessidades e costumes do grupo a ser regrado.Trata-se de um pressuposto de legitimidade da norma, uma vez que a regra não deve dissonar das necessidades do público que se obrigará a cumprí-la.

Com o decorrer dos anos, e consequente mudança da realidade econômica e/ou social, é possível que as normas constitucionais passem a ser impróprias para reger as relações a que se propunham inicialmente, salvo se houver a possibilidade de uma interpretação que possibilite uma readequação entre norma e objeto tutelado.

Tem-se aí o chamado fenômeno da transição constitucional, em que é preservado o texto original da norma, mas é revisado o sentido originalmente conferido, a fim de que não se torne o dispositivo contrário aos princípios orientadores e ideais basilares da constituição.

Situação diferente seria aquela em que as mudanças econômicas ou sociais são de tal relevância que a mera reinterpretação da norma não é suficiente para atender às novas necessidades.

Surge aí a necessidade de uma alteração constitucional, ou seja, uma efetiva mudança formal do preceito constitucional, editando-se o texto da norma de forma que sejam extintas ou acrescentadas regras a fim de coadunar-se à ideia nuclear da constituição.

É neste ponto que reside o problema, pois há casos em que o limiar que separa a possibilidade de uma transição constitucional da necessidade de uma alteração constitucional é demasiado tênue.

O limite, neste caso, está fixado no ponto em que se encerra qualquer possibilidade de ser dado à norma novo sentido, em vista da necessidade de ser revisto o texto que lhe dá as formas e o alcance da interpretação.

2.3.2. Normas constitucionais inconstitucionais

No campo teórico, cogita-se a possibilidade da ocorrência de uma inobservância por parte do legislador constituinte aos preceitos fundamentais não positivados que devem reger uma constituição.

Tal ocorrência geraria a singular situação de uma norma constitucional inconstitucional, conceito este importado da doutrina alemã (verfassungswidrige Verfassungsnormen) por Canotilho[56], dividindo-se em duas linhas: contradições transcendentes e contradições positivas.

2.3.2.1. Contradições transcendentes

Quando se fala de contradição transcendente, cria-se a problemática idéia de normas constitucionais inconstitucionais, o que é decorrência da falta de sintonia entre os valores que orientam e sustentam a constituição e a norma positivada que lhe dá forma.

É o que ocorre quando o ato constituinte (originário e, principalmente, derivado) não reflete com fidelidade o anseio e necessidade da nação que será regida pelas normas constitucionais criadas.

Canotilho[57] esclarece:

“É perfeitamente admissível, sob o ponto de vista teórico, a existência de contradições transcendentes, ou seja, contradições entre o direito constitucional positivo e os “valores”, “directrizes” ou “critérios” materialmente informadores da modelação do direito positivo (direito natural, direito justo, ideia de direito).”

O limite interpretativo da contradição transcendente se desenha justamente na ideia de que a interpretação das normas deve ater-se àquilo que primordialmente busca defender a constituição, o que remete aos elementos de interpretação teleológico e/ou histórico – sem olvidar-se, por óbvio, da obrigatória presença do elemento sistemático.

Todavia, resta a dúvida sobre a quem compete apreciar tal questão. Afinal, não se trata de tarefa simples a de afirmar que o texto constitucional é contrário aos preceitos fundamentais que sustentam a constituição.

Dando prosseguimento à sua explanação, o mestre Canotilho ilumina o caminho que se revela o mais apropriado:

“A questão da constitucionalidade da constituição suscita, logicamente, também o problema de saber quem controla a conformidade da constituição com o direito supraconstitucional. O Tribunal Constitucional Alemão, ao admitir uma ordem de valores vinculativamente modeladora da constituição, vinculativamente modeladora da constituição, considerou-se igualmente competente para “medir” valorativamente a própria constituição. O Tribunal Constitucional teria um papel de “guia” na defesa da ordem de valores constitucionais.”

Seguindo esta linha, dentro do ordenamento pátrio, recairia por analogia sobre Supremo Tribunal Federal a competência para a apreciação da questão, o que em verdade não chega a ser novidade quando eventualmente suscitada a inconstitucionalidade de normas constitucionais decorrentes de emendas à constituição.

É oportuno frisar, entretanto, que em se tratando de normas positivadas pelo legislador constituinte originário, deve-se adotar a interpretação sistemática auxiliada pelos dos postulados de interpretação constitucional, a fim de que se encontre na norma a razão de existir em função dos valores que lhe ensejaram a existência.

Por óbvio, é possível que se crie a situação em que o texto original da norma constitucional não mais tenha condições de reger a realidade que se desvela, tal como ocorre quando presentes a necessidade de alteração constitucional, tema este anteriormente abordado.

2.3.2.2. Contradições positivas

Diferentemente do que ocorre com as contradições transcendentes, em que o conflito se cria entre uma norma constitucional escrita e um ou mais valores axiológicos, nas contradições positivas o atrito é gerado entre normas positivadas.

Destarte, quando da interpretação sistemática e observância dos postulados da unidade e da harmonia ainda resultar incompatibilidade entre duas normas constitucionais, surge a possibilidade de identificação da inconstitucionalidade de uma delas.

Entretanto, é mister salientar que só será possível a verificação de inconstitucionalidade de uma, em função do que estabelece a outra, quando entre elas houver uma relação de hierarquia.

Trata-se de pressuposto básico de descarte da norma inconstitucional, uma vez que se ambas estiverem no mesmo nível, não se poderá afirmar que uma tem maior relevância que a outra.

Em se tratando da Constituição Federal brasileira, as possibilidades de uma norma constitucional inconstitucional restringem-se àquelas oriundas da atividade legislativa derivada.

A exemplo disso, Virgilio Afonso da Silva[58] comenta:

Somente se se parte do pressuposto de que se essas normas são, de alguma forma, superiores às demais normas constitucionais é possível entender a razão pela qual as emendas constitucionais que pretendam alterar as chamadas “cláusulas pétreas” são inconstitucionais, enquanto as emendas que alterem os artigos que não estejam entre essas cláusulas são permitidas.

Canotilho[59] destaca que “a probabilidade de existência de uma norma constitucional originariamente inconstitucional é bastante restrita em estados de direito democrático-constitucional.”

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Ádamo Brasil. Interpretação constitucional entre a dogmática e a zetética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3927, 2 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27374. Acesso em: 26 abr. 2024.

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