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Interpretação constitucional entre a dogmática e a zetética

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02/04/2014 às 13:40
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3. A CERTEZA DOGMÁTICA E A DÚVIDA ZETÉTICA

Esclarecido o funcionamento do processo hermenêutico, para que seja possível dar prosseguimento ao raciocínio desenvolvido acerca da atividade interpretativa constitucional, viabiliza-se o avanço do próximo passo. Tal avanço consiste em adentrar às perspectivas de tratamento do assunto, hodiernamente divididas em dogmática e zetética.

Sintetiza Ícaro de Souza Duarte[60] que “zetética vem de zetein e significa perquirir, ter dúvida e dogmática vem de dokein e significa doutrinar”, definição esta confirmada pelo professor Leonel Cesarino Pessoa[61], dentre outros autores que abordam o tema.

É relevante que se compreenda que dogmática e zetética não são propriamente figuras vinculadas à hermenêutica, mas sim à postura do operador do direito, a nível abstrato e/ou concreto.

Entretanto, a recíproca não é verdadeira. A hermenêutica, como ciência base do direito, atingirá invariavelmente ambos os pontos de vista, em maior ou menor intensidade, a depender do contexto.

Destarte, sob pena de perder-se a informação por ausência de assimilação, a hermenêutica passa a ser pré-requisito indispensável para que se torne possível alçar a compreensão acerca dos posicionamentos, dogmático ou zetético.

3.1. Dogmática

No ambiente nacional é notório tanto na atuação dos profissionais do direito quanto – e principalmente – no sistema de ensino jurídico que a visão dogmática de apreciação de normas constitucionais e infraconstitucionais reina de forma quase soberana.

Possivelmente tal situação seja fruto da considerável carga de conhecimento científico produzido em matéria jurídica, o que parece ser uma tendência local, ante o volume de leis e emendas constitucionais que surgem a cada novo ano.

Busca a dogmática estabelecer um padrão, enrijecendo definições por dado período de tempo. Tal proceder tem por propósito alcançar uma certa estabilidade e segurança jurídica, evitando-se frequentes novas interpretações acerca da mesma norma – o que implicaria em julgados distintos sobre idênticas situações.

Maria Helena Diniz[62] descreve a importância da dogmática de forma sucinta e precisa:

A função social da dogmática jurídica está no dever de limitar as possibilidades de variação na aplicação do direito e de controlar a consistência das decisões, tendo por base outras decisões. Só a partir de um estudo científico-jurídico é que se pode dizer o que é juridicamente possível. O ideal dos juristas é descobrir o que está implícito no ordenamento jurídico, reformulando-o, apresentando-o como um todo coerente e adequando-o às valorações sociais vigentes.

A dogmática é, portanto, a âncora nas ciências jurídicas. É dela que partem as certezas, a segurança, a afirmação daquilo que é – ou deve ser – e do que não deve ser alvo de (novas) discussões. Leonel Cesarino Pessôa[63] define da seguinte forma:

Numa perspectiva dogmática, predomina o lado resposta. Isso significa que nem tudo pode ser objeto de questionamento. A investigação tem limites porque as questões abordadas são limitadas. Algumas das premissas – os dogmas – são tomadas como certas e mantidas fora de questionamento, e o resultado da investigação, em última instância, terá de manter relação com essas premissas que não podem ser afastadas.

Destarte, o propósito da perspectiva dogmática é a cristalização da interpretação e, consequentemente, das decisões judiciais acerca da forma de aplicação das normas aos casos concretos.

3.1.2. Segurança científica

Muito embora as ciências jurídicas sejam instrumento de dissecação das normas, interpretação e aplicação, o que implica na idéia de constante atividade de indagação e, até mesmo, flexibilização de pensamento, é mister sejam feitas algumas ressalvas.

Ora, se o objeto da ciência é o avanço, é pressuposto básico que o objeto de estudo atual esteja calcado nas conclusões de estudos do passado. De igual forma, as conclusões a que se chegar hoje, servirão de ponto de partida para as reflexões vindouras.

Tercio Sampaio Ferraz Junior trata da principal característica da dogmática da seguinte maneira:

Ela explica que os juristas, em termos de um estudo estrito do direito, procurem sempre compreendê-lo e torná-lo aplicável dentro dos marcos da ordem vigente. Essa ordem que lhes aparece como um dado, que eles aceitam e não negam, é o ponto de partida inelutável de qualquer investigação. Ela constitui uma espécie de limitação, dentro da qual eles podem explorar as diferentes combinações para a determinação operacional de comportamentos juridicamente possíveis.[64]

Por conta disso, nem tudo deve ser objeto de novo questionamento. A revisão de determinados postulados tem sua importância, mas as certezas são fundamentais para se ter início a descoberta de um novo horizonte. Alexandre Araújo Costa[65] salienta que “se o juristas colocassem em dúvida todos os conceitos fundamentais do direito, as discussões jurídicas nunca teriam fim.”

Ora, até mesmo a primeira interpretação da norma utiliza-se da carga de conhecimento trazida pelo intérprete. Para que possa apreciar o novo, deve ter parâmetros de comparação e conceitos pré-estabelecidos. Jane Reis Gonçalves Pereira[66] explica:

Nessa perspectiva, é de capital importância na atividade hermenêutica o fenômeno da pré-compreensão. A pré-compreensão decorre do conjunto de experiências do intérprete e do contexto social em que este se insere. A tarefa interpretativa nunca é levada a afeito por alguém completamente despido de preconceitos, estando sempre condicionada pelos valores, crenças e vivências daquele que interpreta. No exame de um determinado problema jurídico, haverá sempre certa antecipação da solução a ser adotada por parte do intérprete, antecipação esta que é revelada pela própria forma como a questão jurídica é por este formulada. No entanto, tal solução é sempre provisória e deverá ser confirmada à luz do ordenamento.

E é aí que se localiza a dogmática como postura inarredável para o avanço da ciência. Afinal, somente uma base sólida permite a construção de uma nova estrutura de pensamento. Não há linha de raciocínio que possa ser levada a sério quando inexistente a segurança acerca daquilo que foi utilizado como base.

3.1.1. Segurança jurisdicional

A necessidade de alicerces sólidos acerca de conceitos e interpretação não é exclusiva do campo teórico da atividade jurídica. Também a práxis demanda pontos livres de controvérsia acerca do modo de utilização das normas que dão margem para interpretações divergentes.

Aliás, a certeza tem maior relevância na atividade jurisdicional do que na científica. Isso porque a ciência, na condição de atividade teórica, trabalha para aprimorar os meios de obtenção do reflexo concreto.

A atividade judicial existe para atender a um fim social. Ao judiciário compete a aplicação e o cumprimento da norma. A norma, por sua vez, é emanada dos poderes legislativos e executivo, e tem por objeto atender à demanda do Estado e da sociedade.

Portanto, a prática jurisdicional busca atender a um fim de interesse social, mesmo quando aprecia a demandas de direito privado – neste caso o interesse social estaria estampado na ideia de que ninguém ficará desamparado nem estará fora do alcance da lei.

De outra banda, a atividade científica tem por objeto identificar problemas presentes ou futuros na aplicação da norma sob determinado ponto de vista, apontando possíveis soluções – de ordem interpretativa ou legislativa.

Então, enquanto a ciência busca soluções para a prática da aplicação da norma, o judiciário busca soluções práticas por meio da aplicação da norma. A atividade científica reflete na atividade jurisdicional, enquanto esta última reflete de forma incisiva sobre a sociedade jurisdicionada.

Daí o porquê de ser o dogma tão o mais importante para a atividade jurisdicional do que para a atividade científica. Enquanto a ciência se permite inflexões pela busca do melhor conceito e/ou interpretação, o aplicador da lei não tem tamanha liberdade.

Ilustra Alexandre Araújo Costa que, se ausente uma postura dogmática ante certas questões,

o réu sempre poderia questionar a legitimidade do Estado para forçá-lo a viver dez anos em uma penitenciária. Ele sempre poderia dizer que as provas contra ele apresentadas não são uma demonstração absoluta de que Lee cometera o crime de que é acusado, e as provas nunca são uma demonstração absoluta.[67]

Prossegue o autor explicando:

Por tudo isso, o jurista (bem como muitos estudiosos da moral e de teologia) não pode colocar em dúvida todos os conceitos com os quais trabalha. Ele precisa definir um certo grupo de noções como inquestionáveis, pois esses serão os critérios para decidir as questões problemáticas.[68]

Enquanto uma variação de entendimento doutrinário esbarra nas convicções do julgador, que servem como ponderação ou filtro, mesma sorte não teria o jurisdicionado no caso de variação de linha de raciocínio adotada pelo mesmo julgador, por um simples motivo: a última palavra cabe ao judiciário.

Parte-se do corolário, portanto, de que a dogmática tem papel essencial de segurança nas decisões emanadas das tantas instâncias das diferentes competências que compõem o judiciário brasileiro. Afinal, se hipoteticamente o próprio julgador não tivesse alguma certeza sobre a forma de aplicação da norma, criar-se-ia uma situação de caos jurídico.

As incertezas, especulações e previsões devem ser resguardadas, na medida do possível, ao mundo da atividade científica. Prestam-se as ciências jurídicas como ferramentas da busca da melhor linha de pensamento, a fim de que possa a atividade prática jurisdicional diminuir a margem de erro quando da aplicação das normas então ventiladas.

3.2. Zetética

Diametralmente oposta à perspectiva dogmática, surge a zetética com o propósito de revisar as ditas verdades solidificadas, questionar os paradigmas existentes e, quando for o caso, derrubar os posicionamentos já ultrapassados.

Surge a zetética como combate à visão retrógrada e obsoleta que por vezes solidifica-se entre os operadores do direito sobre determinados aspectos, revelando-se verdadeiro entrave à concretização do propósito primordial e razão de existir da justiça.

Alexandre Araújo Costa[69] define que “quando o principal compromisso de uma ciência é com a descrição da realidade, ela tem que deixar os seus conceitos fundamentais sempre abertos à discussão e, portanto, ela pode ser qualificada como zetética.”

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 Portanto, tem-se na zetética a oportunidade de rever conceitos enrijecidos que já não mais tenham condições de aplicabilidade ante às necessidades que se desvelam no campo teórico e prático, o que decorre não apenas da mudança das atividades do público alvo jurisdicionado, mas também do surgimento de novas normas cuja primeira interpretação, literal, possa acarretar reflexos negativos e incompatíveis com o seu propósito.

3.2.1. Reflexos da zetética

A fim de melhor vislumbrar a importância da perspectiva zetética, trata-se de relevante abordagem as consequências de sua adoção, até mesmo para que, feito o caminho inverso – da consequência em direção à causa – se crie o necessário subsídio para a compreensão do tema.

3.2.1.1. Quebra de paradigmas

Das ciências da sociologia e da história extrai-se o atestado mais nítido de que o avanço dos anos implica em mudança de rotinas e demandas da sociedade. Seja por influência de comportamento externa, chegada da tecnologia, avanço cultural ou simples mudança de condição econômica, os hábitos de uma nação mudam. E com eles, alteram-se também as necessidades – individuais e coletivas – do ser humano, o que implica na readequação das regras definidas pelo Estado.

O que em tempos passados era tipificado como crime, consequente da circunstancial imoralidade, hoje é tido como normal ou mero dissabor do cotidiano. De outra banda, o que no passado nem se cogitava, dadas as limitadas condições tecnológicas, hodiernamente passa a ser objeto de preocupação do legislador e judiciário. Como exemplos notórios, pode-se invocar a atenção suscitada pelos chamados crimes virtuais e danos ao meio ambiente.

Neste aspecto, a zetética vem se revelando visão de grande relevância na superação de obstáculos, pois cria a oportunidade de revisão de conceitos que se tornaram entraves para o alcance da tutela de que se carece.

Plauto Faraco de Azevedo[70] relembra inusitado e triste episódio[71] que marcou a nação, em que um deputado federal veio a ter mandado cassado e a sofrer condenação penal quando, na verdade, apenas desempenhava a função que a própria Constituição lhe atribuía. O autor destaca que a ocorrência, visivelmente injusta e contrária aos preceitos fundamentais que regem a Constituição, foi consequente da falta de tato por parte do julgador acerca da adequação da lei e, até mesmo, de sua constitucionalidade. Ora, uma postura zetética ensejaria o questionamento acerca da norma, o que possivelmente afastaria a sua aplicação para o caso.

Em matéria de direito aplicado, tem-se nos enunciados de súmulas dos tribunais superiores a presença da cristalização de entendimento, característica da dogmática. Em contrapartida, a aplicação prática da zetética resulta na revogação dos enunciados que se tornem inadequados para a correta[72] aplicação da lei ou constituição.

Por óbvio, a zetética parece servir muito mais à ciência do que a dogmática. Esta, em contrapartida, passa a demonstrar maior importância no campo prático, da efetiva aplicação das normas, do que aquela. Tal quadro é consequente das características das atividades em questão: enquanto a atividade científica atua no campo teórico, a atividade jurisdicional atua no campo prático.

Então – como já abordado anteriormente – o judiciário tem por objeto resolver uma situação fática problemática que se lhe desvela, sem que lhe pareça oportuno levantar questionamentos acerca de cada conceito utilizado como fundamento de decidir. Abre-se exceção a esta regra quando a falta de coesão parecer-lhe gritante ou a questão seja de caráter excepcional, o que exigiria uma linha de raciocínio também excepcional por parte do aplicador da lei – lei esta que busca ser de caráter geral.

Muito embora esta tendência venha mudando gradualmente, Jane Reis Gonçalves Pereira[73] lembra que “[…]a noção de que o juiz atua com certa dose de criatividade só veio a ser aceita de forma mais ampla após o fracasso histórico do positivismo legalista.”

Entretanto, as vertentes vem rumando a um ponto de equilíbrio no que tange ao que deve ou não ser objeto de revisão de interpretação. Lênio Streck[74] aborda a questão:

[…] não deve haver surpresa por parte da doutrina ou da jurisprudência com relação ao caráter das decisões que, aparentemente – e somente aparentemente – desbordam dos postulados (metafísicos) do pensamento dogmático do Direito. Ou seja, historicamente (como demonstrado acima) tem sido elaboradas decisões que redefinem o conteúdo de base do texto jurídico. Por isso, é necessário acabar com a ilusão, própria do modelo liberal-normativista, e do constitucionalismo anterior ao Estado Democrático de Direito, de que os tribunais agem como legislador negativo.

Assim, ainda que a zetética não esteja sobremaneira ausente do campo prático, é na seara teórica que ela desenvolve o máximo do seu potencial, apresentando-se como perspectiva de grande valia. Para esclarecer, Tercio Sampaio Ferraz Junior[75] ilustra:

Suponhamos que o objeto de investigação seja a Constituição. Do ângulo zetético, o fenômeno comporta pesquisas de ordem sociológica, política, econômica, filosófica, histórica, etc. Nessa perspectiva, o investigador preocupa-se em ampliar as dimensões do fenômeno, estudando-o em profundidade, sem limitar-se aos problemas relativos à decisão dos conflitos sociais, políticos, econômicos. Ou seja, pode encaminhar sua investigação para os fatores reais do poder que regem uma comunidade, para as bases econômicas e sua repercussão na vida sociopolítica, para um levantamento dos valores que informam a ordem constitucional, para uma crítica ideológica, sem preocupar-se em criar condições para a decisão constitucional dos conflitos máximos da comunidade. Esse descompromisso com a solução de conflitos torna a investigação infinita, liberando-a para a especulação.

Destarte, revela-se a zetética como figura imprescindível para alcançar o objeto da lei maior e dos valores que a orientam, uma vez que evita que definições obsoletas, contraditórias ou desprovidas de razoabilidade venham a se fixar de forma inarredável na aplicação das normas ante os casos reais.

3.2.1.2. Transição constitucional

Como brevemente salientado no capítulo anterior, um dos fenômenos decorrentes da interpretação da Carta Magna é o da transição constitucional, o qual importa na alteração de sentido da norma sem que se lhe modifique o texto, a fonte constitucional. Ressalte-se aqui, todavia, que tal fenômeno só é possível quando a zetética coloca-se como guia da nova interpretação. Ora, uma alteração de entendimento sobre uma mesma norma só se apresenta como algo viável quando a interpretação até então vigente passa a ser alvo de questionamento.

Aliás, em obra organizada por Jacinto Nelson Miranda Coutinho, o professor Eros Roberto Grau[76] faz sucinta e brilhante explanação sobre o assunto:

Assim, quando tomamos a Constituição de 1988 em face dos fatos da realidade social de hoje, ela já não é mais a Constituição de 1988, mas a Constituição do Brasil, de hoje. E outra será, amanhã, embora permaneça sendo sempre a Constituição do Brasil. Ainda que não se altere o seu texto, a dinâmica da realidade social importará em que outras normas, distintas das dela extraídas em 1988, sejam a partir dela – e da realidade – construídas pelo intérprete autêntico. O juiz não interpreta apenas os textos, mas os textos-e-os-fatos, transformando-os em normas.

Sendo a Constituição um sistema aberto de normas, parece razoável crer que um mesmo dispositivo constitucional possa ter inúmeras aplicações e interpretações, a depender da circunstância que se desenhe. Ora, se os valores que se prestaram como pontos de partida para a própria lei maior são de conhecimento comum, é de se esperar que a norma reflita-os da forma mais conveniente para o momento.

Flávia de Almeida Viveiros Castro[77] assim resume:

Constata-se, portanto, que a interpretação refletida nos dispositivos das modernas cartas constitucionais é intencional e salutar. O constituinte assim o quis e tal plasmou no texto da Lei Maior. Isto por dois principais motivos: permitir o consenso entre grupos políticos que participaram da elaboração da Lei Fundamental e possibilitar a adaptação às novas situações e mudanças que o Estado certamente sofrerá durante o período mais ou menos longo de vigência de sua Constituição.

Ora, percebe-se portanto que além da obrigatória interpretação sistemática, a interpretação teleológica parece ser a que melhor se propõe a dar aos preceitos constitucionais aplicabilidade mesmo quando já não subsistem as condições que ensejaram a sua criação.

Luís Roberto Barroso[78] demonstra atenção à tendência de uma necessidade de interpretação constitucional teleológica:

A Constituição e as leis, portanto, visam a acudir certas necessidades e devem ser interpretadas no sentido que melhor atenda à finalidade para a qual foi criada. O legislador brasileiro, em uma das raras exceções em que editou uma lei de cunho interpretativo, agiu, precisamente, para consagrar o método teleológico, ao dispor, no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Nem sempre é fácil, todavia, desempenhar com clareza a finalidade da norma. À falta da melhor orientação, deverá o intérprete voltar-se para as finalidades mais elevadas do Estado, que são, na boa passagem de Marcelo Caetano, a segurança, a justiça e o bem-estar social.

Na condição de sistema aberto, a Constituição cria para o intérprete a possibilidade de rever a mensagem que deseja passar. Muito embora já alteradas as condições sociais originais que inspiraram a edição do texto da lei maior pela assembléia constituinte, o desejo do legislador originário era o de que a Carta Magna sobrevivesse por mais tempo.

Assim, conferiu-lhe certa flexibilidade de interpretação, por vezes condicionada à edição de leis ordinárias e complementares, a fim de que, na medida do possível, se preservasse a viabilidade de uma transição constitucional – e, consequentemente, se evitasse a necessidade de uma alteração da norma. Sobre a questão, Flávia de Almeida Viveiros de Castro[79] desenvolve explanação:

O texto constitucional é, como visto, marcado pela ambiguidade de seus preceitos e ainda pela generalidade que toda norma jurídica deve possuir. Recorde-se que os dispositivos normativos, de uma forma geral, devem ser aplicados a uma multiplicidade de casos concretos, e tanto maior será sua generalidade quanto mais extensa seja a gama de casos a regular. Dado que o âmbito regido pelo Direito Constitucional é o mais amplo possível, não se pode estranhar a abertura que caracteriza o conteúdo normativo da Carta Magna. Seu desenvolvimento, tanto pela via interpretativa como mediante a legislação, apresenta possibilidades de variação numerosíssimas.

Destarte, pode-se concluir que contava o legislador constituinte com a presença da visão zetética entre a doutrina e os julgadores dos tempos futuros, tempos estes nos quais mudanças substanciais provavelmente ocorreriam, e a revisão da forma de aplicação dos dispositivos constitucionais seria medida obrigatória.

Maria Helena Diniz[80], quando busca expor o porquê da necessária interpretação dos fatos e valores de onde advém a norma, acaba por reforçar este pensamento:

Ao se interpretar a norma, deve-se procurar compreendê-la em atenção aos seus fins sociais e aos valores que pretende garantir (LICC, art. 5º). O ato interpretativo não se resume, portanto, em simples operação mental, reduzida a meras inferências lógicas a partir das normas, pois o intérprete, ao compreender a norma, descobrindo seu alcance e significado, refaz o caminho da "fórmula normativa" ao "ato normativo"; tendo presentes os fatos e valores dos quais a norma advém, bem como os fatos e os valores supervenientes, ele a compreende, a fim de aplicar em sua plenitude o "significado nela objetivado".

Não fosse isso, de nada adiantaria a amplitude característica das normas constitucionais, pois, preso a uma visão dogmática, não seria o operador do direito capaz de perceber a inadequação daquelas ante as necessidades sociais surgidas por decorrência dos mais variados fatores.

3.3. Ponderação de perspectivas

Percebe-se que muito embora antagônicas as óticas dogmática e zetética, não necessariamente disputam espaço. Por vezes, trabalham em complementação mútua. Em outros casos, tem a potencialidade de atuar como corretivo aos exageros da faceta oposta.

Ora, o que se extrai é que na medida em que a dogmática busca conceituar ou estabelecer de forma definitiva determinado entendimento, a zetética é agente de mudança, pois semeia a dúvida como modo de procedimento.

Entretanto, até mesmo para que surjam as dúvidas, um mínimo de certezas são necessárias – ainda que sejam apenas para ser objeto de questionamento. Lourival C. Freitas[81] esclarece:

Claro é que, para se obter um conhecimento mais ou menos abrangente da zetética jurídica, necessário se faz que coloquemos a dogmática como ponto de partida e ancoradouro desse mesmo conhecimento. E isso porque a zetética tanto parte da dogmática para descobrir os objetos da sua pesquisa, quanto parte desses mesmos objetos para chegar ao conhecimento do dogma como maneira particular de delimitar a sua área de investigação.

Isso equivale a dizer que não há zetética sem dogmática, uma vez que inexistindo conceitos solidificados, inabaláveis, resta também prejudicada a atividade de questionamento, a suscitação da dúvida, a pretensa necessidade de revisão de supostas certezas.

Alexandre Araujo Costa[82] assim leciona:

Apesar das distinções apontadas […] deve ficar claro que os enfoques zetético e dogmático não são excludentes, mas complementares. Toda investigação tem uma parte dos dois, na medida e que não é possível conhecer senão a partir de alguns pontos definidos de partida (o que evidencia a presença de uma certa dogmática), mas também é necessário buscar as respostas mais adequadas para as perguntas colocadas (o que implica ao menos um pouco de zetética). Como afirmou Tercio, cada investigação apenas acentua mais um desses aspectos, sendo possível desenvolver perspectivas teóricas que busquem harmonizar esses enfoques.

O problema situa-se na ausência de equilíbrio na utilização das duas óticas. Via de regra, o operador do direito afeiçoa-se mais a uma ou a outra, criando uma tendência problemática.

De um lado, se a afinidade se dá pela dogmática, tende o operador a não fugir do rigoroso texto legal, adotando postura formalista e que, por vezes, acaba por olvidar-se do propósito da norma: o de atender a uma necessidade. Não raras vezes o judiciário, em especial na esfera dos tribunais superiores, sucumbe a essa tendência.

De outra banda, quando se filia o operador do direito à postura predominantemente zetética, acaba por abrir-se à possibilidade de suscitação de dúvidas e conflitos de interpretação sobre questões que não demandam tal importância. Testemunho disso pode ser obtido junto a alguns autores, que erguem discussões homéricas acerca de pontos de questionável relevância.

O que é certo, é que a dogmática busca padronizar a forma de interpretação e aplicação das normas, alcançando uma certeza consensual, enquanto a zetética aspira rever tais padrões, almejando dar à norma a utilidade que melhor se enquadre com os valores inspiradores da Constituição e com os seus princípios orientadores.

É o que de forma ímpar Barroso esclarece:

Há amplo consenso de que a ordem jurídica é uma função de dois valores principais: de um lado, a segurança, a previsibilidade e a estabilidade das relações sociais e, de outro, a justiça. Ambos contribuem direta ou indiretamente para o bem-estar humano, para a proteção e promoção de sua dignidade e para a criação de condições que permitam o seu pleno desenvolvimento. Um sistema que supervaloriza a segurança pode tornar-se iníquo e desconectar-se das legítimas expectativas de justiça. Por outro lado, uma ordem jurídica que despreza a segurança acaba por instituir um ambiente de imprevisão e incerteza que dificulta as relações sociais e o desenvolvimento pessoal dos indivíduos.[83]

Aliás, neste aspecto percebe-se uma certa simpatia entre a adoção de princípios e a postura zetética, enquanto a dogmática tende a ter maior apego às normas, devido ao seu rigor. Tal constatação é decorrência de dois fatores.

O primeiro deles, diz respeito à liberdade de pensamento e de interpretação. Ora, uma vez que os princípios, via de regra, não se apegam a caminhos (meios), mas apenas a início e fim (propósito, destino), há uma miríade de possibilidades de trajetórias a serem adotadas.

Aliás, é esta liberdade que viabiliza ao judiciário, por vezes, usar de princípios como fundamento de decidir, tal como explica Flávia de Almeida Viveiros de Castro:

Conceitos como igualdade, dignidade, livre desenvolvimento, estado de direito, bem comum, constituem terminologia usualmente aplicada em textos constitucionais. Os juízes e tribunais estão sempre recorrendo aos mesmos para fundamentar suas decisões ou ainda, e o que é mais importante, podem estes servir de critério na emissão de um juízo de constitucionalidade.[84]

Então, quando de alguma forma a interpretação dada à norma não estiver em sintonia com o princípio, cria-se a oportunidade de questioná-la, prática esta consequente do enfoque dado pela zetética.

O segundo fator reside justamente no intento dos princípios. Princípios, como fontes materiais e formais do direito, atuam como norteadores ao ideal de justiça. Ao contrário da lei, cuja aplicação pode resultar em injustiças, os princípios estão – ou deveriam estar – livres deste resultado, uma vez que seu propósito de existir é justamente o de possibilitar um sistema justo.

Até mesmo os princípios mais voltados a assuntos específicos, a exemplo dos princípios que regem o direito tributário, buscam diretamente atender a questões pertinentes à forma de incidência do tributo, mas indiretamente – e como propósito final – garantir a justa aplicação das normas jurídicas.

Na medida em que regras buscam definir o meio para se atingir o fim, o princípio é o fim, é o norte. A regra visa à segurança, enquanto o princípio visa à justiça.

Aliás, esta distinção é trazida por Luís Roberto Barroso[85], que explica que “as regras são normas que estabelecem desde logo os efeitos que pretendem produzir no mundo dos fatos, efeitos determinados e específicos (conduta)”.  Prossegue o autor ilustrando com o exemplo da norma que proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito anos.

Prossegue o autor, com a definição de princípios, explicando que funcionam de forma diferente, pois:

Os princípios, todavia, funcionam diversamente. Para facilitar a exposição sobre os princípios, e tendo em conta razões estruturais, é possível agrupá-los em duas categorias. O primeiro grupo congrega os princípios que descrevem efeitos relativamente indeterminados, cujo conteúdo, em geral, é a promoção de fins ideais, valores ou metas políticas. E essa indeterminação, ainda que relativa, decorre de a compreensão integral do princípio depender de concepções valorativas, filosóficas, morais e/ou da variedade de circunstâncias fáticas sobre as quais ele incide, como nas regras. Por conta da natureza do efeito pretendido, não se trata apenas de empreender um raciocínio lógico-jurídico para apurar as condutas possíveis a partir de distintas posições políticas, ideológicas e valorativas. Se há um caminho que liga o efeito às condutas no caso das regras, há uma variedade de caminhos que podem ligar o efeito do princípio a diferentes condutas, sendo que o critério que vai definir qual dos caminhos escolher não é exclusivamente jurídico ou lógico.[86]

Cumpre advertir que não se autoriza a afirmação categórica que normas são fontes formais pertencentes à seara da dogmática, enquanto princípios vinculam-se à zetética. Tratar-se-ia de erro grosseiro de interpretação.

O que ocorre é que os princípios servem de forma mais útil à zetética, pois sua liberdade característica permite interpretação mais reflexiva, incluindo aquelas que possam ser contraditórias entre si, ainda que potencialmente aplicáveis em períodos distintos.

Sem embargo, a norma é comumente alvo da revisão zetética. O exemplo gritante disso é a própria norma constitucional, que, diversamente das infraconstitucionais, tem como característica a amplitude e generalidade. Ora, por óbvio que norma com esta característica passa a conferir ao intérprete liberdade semelhante àquela que se tem quando da aplicação do princípio.

No que tange à faceta oposta, também não se encontra a ótica dogmática presa às normas, cuja característica é a rigidez. É certo que a dogmática busca a estabilidade e, como tal, a norma – especialmente infraconstitucional – se revela muito adequada para este fim.

Todavia, até mesmo os princípios exigem limites, os quais vigoram por determinado período, até que as circunstâncias demandem nova apreciação e consequente reinterpretação, tarefa esta atinente à zetética.

Sem estes limites, estariam os princípios sob risco de perda de foco e, por conseguinte, diminuição de sua real efetividade. Aquilo que pode ser aplicado para tudo, muito provavelmente não será aplicado em nada, justamente por lhe faltar força, nitidez, precisão.

Portanto, zetética e dogmática revelam-se forças opostas que devem coexistir para manter o equilíbrio entre segurança jurídica e justiça, as quais hodiernamente são objeto de incansável busca no sistema jurídico vigente.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Ádamo Brasil. Interpretação constitucional entre a dogmática e a zetética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3927, 2 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27374. Acesso em: 23 abr. 2024.

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