3 – DIREITO E LITERATURA.
3.1 - A CORRENTE DO DIREITO.
A partir do raciocínio que foi desenvolvido até aqui, é importante ter em mente que não há uma separação estanque entre criação e interpretação. Tanto quando o artista que ao criar, deve interpretar a obra, o crítico ao interpretar também cria.[43]Mas a partir disso não se pode cair no ceticismo de afirmar que não há diferença entre o crítico e o artista. Por isso mesmo a interpretação literária pode se mostrar como um ótimo exemplo para o problema da interpretação jurídica. E partindo desse ponto, Dworkin lança mão da metáfora do romance em cadeia, que consiste no seguinte exercício imaginativo:
Suponha que um grupo de romancistas seja contratado para um determinado projeto e que jogue dados para definir a ordem do jogo. O de número mais baixo escreve o capítulo de abertura de um romance, que ele depois manda para o número seguinte, o qual acrescenta um capítulo, com a compreensão de que está escrevendo um capítulo a esse romance, não começando outro, e, depois, manda os dois capítulos para o número seguinte, e assim por diante. Ora, cada romancista, a não ser o primeiro, tem a dupla responsabilidade de interpretar e criar, pois precisa ler tudo o que foi feito antes para estabelecer, no sentido interpretativista, o que é o romance criado até então. Deve decidir como os personagens são “realmente”, que motivos os orientam, qual é o tema ou o propósito do romance em desenvolvimento, até que ponto algum recurso ou figura literária, consciente ou inconscientemente usado, contribui para estes, e se deve ser ampliado, refinado, aparado ou rejeitado para impedir o romance em uma direção e não em outra. Isso deve ser interpretação em um estilo não subordinado à intenção porque, pelo menos para todos os romancistas após o segundo, não há um único autor cujas intenções qualquer intérprete possa, pelas regras do projeto, considerar como decisivas.[44]
Mas mesmo o primeiro autor do romance terá a tarefa de interpretar a obra em elaboração, bem como o gênero que se propõe a escrever. Assim, Dworkin (2001:236) afirma que cada romancista não tem liberdade criativa, pois há um dever de escolher a interpretação que para ele faça da obra em continuação a melhor possível.[45]O que se espera nesse exercício literário é que o romance seja escrito como um texto único, integrado, e não simplesmente como uma série de contos espaçados, independentes que somente tem em comuns os nomes dos personagens.
Mas qual a relação com o problema da interpretação jurídica? Para a teoria de Dworkin, a decisão de casos controversos - dos hard cases – é mais ou menos como esse exercício literário.
Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance escrito até então. Qualquer juiz obrigado a decidir uma demanda descobrirá, se olhar nos livros adequados, registro de muitos casos plausivelmente similares, decididos há décadas ou mesmo séculos por muitos outros juízes, de estilos e filosofias judiciais e políticas diferentes, em períodos nos quais o processo e as convenções judiciais eram diferentes. Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturadas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção.[46]
Mas qual, então, seria o objeto de discordância de quem oferta objeções à melhor interpretação do precedente jurídico? No caso da interpretação artística, demonstrou-se a tese de que uma interpretação para ver a obra à sua melhor luz, deve levar em consideração tanto características formais - de identidade, de coerência e de integridade - como características substantivas de valor artístico. Acontece que ambas as dimensões também estão presentes na interpretação jurídica.
Mas a finalidade ou valor, aqui, não pode significar valor artístico, porque o Direito, ao contrário da literatura, não é um empreendimento artístico. O Direito é um empreendimento político, cuja finalidade geral, se é que tem alguma, é coordenar o esforço social e individual, ou resolver disputas sociais e individuais, ou assegurar a justiça entre os cidadãos e entre eles e seu governo, ou alguma combinação dessas alternativas.[47]
É por isso mesmo que se pode afirmar contra os céticos e os defensores da discricionariedade para os magistrados: nenhum juiz é livre para descobrir na história jurídica o que for que ache que deveria estar lá. Há um dever de interpretar a história jurídica, ao invés de inventá-la. Obviamente, que com isso Dworkin não está afirmando ser possível o uso de um método capaz de determinar a interpretação, pois estaria com isso negando o giro linguístico, bem como base teórica, a hermenêutica filosófica.[48]
Quando uma lei, Constituição ou outro documento jurídico é parte da história doutrinal, a intenção do falante desempenhará um papel. Mas a escolha de qual dos vários sentidos, fundamentalmente diferentes, da intenção do falante ou do legislador é o sentido adequado, não pode ser remetida à intenção de ninguém, devendo ser decidida, por quem quer que tome da decisão, como uma questão de teoria política (DWORKIN, 2001:240).
Nenhuma sequência de decisões, contudo, é isenta de apresentar contraexemplos, que sugiram direções diferentes. Para tanto, se exige o desenvolvimento de uma doutrina do erro no julgamento dos casos anteriores. Importante esclarecer que essa flexibilização não destrói a distinção entre interpretação e decisões novas sobre o que o direito deve ser (DWORKIN, 2001:240-241). Um juiz ao verificar a finalidade ou função do direito acabará por incluir uma concepção de integridade e de coerência do direito, tomado como uma instituição, o que irá tutelar e limitar suas convicções pessoais.
Mesmo assim, dois magistrados poderão apresentar interpretações divergentes. Do mesmo modo que um poema pode permitir duas leituras coerentes, decisões do passado podem fornecer apoio a dois princípios diferentes, satisfazendo duas teorias distintas de adequação ao caso concreto. Por isso mesmo, Dworkin (2001:241) chama a atenção para o fato de que uma teoria política substantiva pode ser decisiva.[49]
Poderíamos resumir esses pontos desta maneira. Os juízes desenvolvem uma abordagem particular da interpretação jurídica formando e aperfeiçoando uma teoria política sensível a essas questões, de que dependerá a interpretação em casos específicos, e chamam isso de sua filosofia jurídica. Ela incluirá características estruturais, que elaborem a exigência geral de que uma interpretação se ajuste à história doutrinal, e afirmações substantivas sobre os objetivos sociais e os princípios de justiça. A opinião de um juiz sobre a melhor interpretação será, portanto, a conseqüência de convenções que outros juízes não precisam compartilhar. Se um juiz acredita que o propósito dominante de um sistema jurídico, o principal objetivo a que deve servir, é o econômico, então verá nas decisões passadas sobre acidentes alguma estratégia para reduzir os custos econômicos dos acidentes de modo geral. Outros juízes, que acham repugnante qualquer imagem desse tipo da função do Direito, não descobrirão nenhuma estratégia assim na história, mas apenas, talvez, uma tentativa de reforçar a moral convencional referente à falta e a responsabilidade. Se insistirmos em uma grau elevado de neutralidade na nossa descrição da interpretação jurídica, portanto, não podemos tornar nossa descrição da natureza da interpretação jurídica muito mais concreta do que fiz.[50]
3.2 – A INTENÇÃO DO AUTOR NO DIREITO.
Importante, então, ter em mente a distinção entre subjetividade e objetividade na interpretação para que seja possível escapar dos argumentos levantados, quer por convencionalista - que esperam encontrá-lo na história -, quer por adeptos do pragmatismo - que acreditam que o direito é algo criado por juízes de uma maneira individualista, conforme critérios pessoais.[51]Assim, o direito não apresenta nenhuma vantagem - principalmente quanto ao problema da objetividade - frente a literatura em termos de representar uma melhor interpretação, ao contrário do que alguns podem pensar. Trata-se mais de um problema geral de bases filosóficas que permite o desenvolvimento de níveis de concepção do direito e, consequentemente, da conclusão por um tipo de interpretação tida como certa.
Contudo, mesmo após todo o debate acima travado, uma importante questão ainda se mostra pertinente: a hipótese política sobre a interpretação jurídica desenvolvida por Dworkin é realmente contrária ao argumento a favor da intenção do autor?
Como já explicado, para os intencionistas, o direito é o sentido pretendido pelos vários atores do processo jurídico em sentido amplo – ou seja, constituintes, parlamentares, magistrados, administradores públicos, etc. No entanto, tais defensores poderiam, então, afirmar que a hipótese estética levantada por Dworkin não é contrária à tese da intenção do autor, já que a interpretação dos legisladores, bem como dos juízes, pode representar a melhor teoria política. É por isso mesmo que a questão deve ser posta sob outra luz como vai compreender Dworkin:
[...] se a presente objeção é realmente uma objeção à argumentação desenvolvida até aqui, ela deve ser compreendida de modo diferente, como propondo, por exemplo, que o próprio “significado” da interpretação no Direito exige que apenas essas intenções oficiais sejam consideradas ou, que, pelo menos, haja um firme consenso entre juristas nesse sentido.[52]
Mas se considerarmos pertinente essa objeção e admitirmos que ela ofereça uma base sólida, ela deverá se voltar para um texto jurídico canônico. Mas assim, será possível notar que a intenção do legislador é complexa, tal e qual a intenção de um romancista. Dworkin então elabora o seguinte exemplo:
Suponha que um constituinte vote a favor de uma cláusula que garante a igualdade de tratamento, sem distinção de raça, em questões que afetam interesses fundamentais das pessoas; mas ele pensa que a educação não é uma questão de interesse fundamental e, portanto, não acredita que a cláusula torna inconstitucionais escolas segregadas.[53]
Podem ser identificadas duas intenções, uma abstrata e outra concreta: proibir discriminação no que é realmente de interesse fundamental; e não proibir escolas segregadas. Mas, pode-se ver que tais intenções estão em polos isolados, sendo a mesma intenção, só que descrita de duas maneiras diferentes. Então qual descrição dessa mesma intenção será tomada como canônica para uma teoria da intenção legislativa?
Se aceitarmos a primeira descrição, então um juiz que deseja seguir as intenções do constituinte, mas acredita que a educação é uma questão de interesse fundamental irá considerar a segregação inconstitucional. Se aceitarmos a segunda, não o fará. A escolha entre as duas descrições não pode ser feita mediante nenhuma reflexão adicional sobre o que uma intenção realmente é. Deve ser feita decidindo-se que uma descrição é mais adequada ou com base em outros fundamentos abertamente políticos.[54]
Deve-se, então, lembrar que a teoria da intencionalista se mostra por demais pobre. Se fossem examinadas todas as decisões judiciais sobre uma determinada matéria, talvez fosse possível chegar (ou pelo menos especular com uma probabilidade de certeza maior) às explicações de ordem psicológicas, econômicas ou sociais que levaram o juiz pensar o que de fato pensou. Mas o resultado da pesquisa seria diferente para cada juiz anterior e uma ordem só apareceria por meio da inclusão de alguma espécie de sumário estatístico. Mas tudo isso ainda não apresentaria utilidade para um juiz decidir um caso semelhante hoje, do que seria uma informação similar para um romancista da participante da cadeia imaginária. Ainda se exige um novo exercício de interpretação que não será nem uma pesquisa histórica pura, nem uma ideia completamente nova de como as coisas deveriam ser.
A saída que parece ser posta para um defensor da tese do intencionalismo seria a seleção de um juiz em particular ou de um pequeno grupo de magistrados situados no passado. Assim poder-se-ia perguntar sobre qual regra esse juiz ou esse grupo pretendeu fixar para o futuro. Mas ao fazer isso, ele estaria tomando os juízes como legisladores e, retendo a todos os problemas que surgem ao se interpretar uma lei.
Mesmo assim, no fim das contas, não evitaria os problemas especiais da prestação jurisdicional no Common Law, porque o juiz que assim interpretasse teria de supor-se com o direito de examinar apenas as intenções do juiz ou juízes anteriores que selecionou, e não poderia supor tal coisa, a menos que acreditasse que ser isso o que juízes na sua posição deveriam fazer era fruto da prática judicial como um todo.[55]
3.3 – A POLÍTICA NA INTERPRETAÇÃO.
Dworkin reconhece que a partir de suas afirmações sobre o papel da política na interpretação jurídica dever-se-ia encontrar opiniões que fossem de cunho liberal, radical ou conservadora sobre o que a Constituição e as leis deveriam ser, mas ainda, como elas são, o que de fato acontece mesmo. Um exemplo que pode ser ricamente explorado é a interpretação da cláusula de igual proteção da Constituição norte-americana, pois esta não pode ser compreendida apartada de alguma teoria sobre o que seja a igualdade política e até que ponto a igualdade é exigida. Por isso mesmo, juristas conservadores argumentam a favor de supostas ideias ligadas às intenções do autor e acusam os demais de estarem inventando o direito.
Mas trata-se de uma vociferação com o intuito de ocultar o papel que suas próprias convicções políticas desempenham na sua escolha do estilo interpretativo, e os grandes debates jurídicos quanto à cláusula da igualdade de direitos teriam sido mais esclarecedores se fosse mais amplamente reconhecido que valer-se de uma teoria política não é uma corrupção da interpretação, mas parte do que significa interpretação.[56]
Mas qual o papel da política no desenvolvimento de uma determinada interpretação? Segundo Stanley Fish,[57]no caso da literatura, as disputas são mais políticas que lógicas. Trata-se de uma busca por parte dos professores por domínio. Mas trata-se também de um olhar externo sob a questão, pois refere-se as causas de ascensão de uma ou de outra abordagem.
Por isso mesmo, a proposta dworkiana passa por um olhar interno, ou seja, ao invés de se discutir a política da interpretação, um debate sobre a política na interpretação. Em outros termos, significa indagar os limites para o uso de princípios de moralidade política a favor de uma interpretação particular de uma obra. Para o autor,
Há muitas possibilidades, [...]. Disseram que nosso compromisso com o feminismo, nossa fidelidade à nação ou nossa insatisfação com a ascensão da nova direita devem influenciar nossa avaliação e apreciação da literatura. [...] mas se nossas convicções a respeito dessas questões políticas especificas contam na decisão de até que ponto um romance, uma peça ou um poema são bons, então devem contar também na decisão de qual interpretação é a melhor, entre várias interpretações particulares dessas obras. Ou assim deve ser se meu argumento for fundamentado.[58]
Há, então, uma ligação entre teoria estética e política. Assim como uma teoria estética irá demandar uma teoria de identidade pessoal adequada para marcar os limites entre pessoas e circunstâncias, ou entre pessoas ou negar tais fronteira, uma teoria abrangente de justiça social também encontrará suas raízes sob as mesmas questões ou em outras similares.[59]Deste modo, Dworkin conclui seu pensamento no sentido de questionar se uma solução não seria indagar sobre a existência de bases filosóficas compartilhadas por teorias estéticas, teorias políticas e teorias jurídicas.