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A efetividade da jurisdição arbitral

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08/04/2014 às 11:30
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2. JURISDIÇÃO

2.1. Evolução do conceito de jurisdição

Para o completo entendimento deste tópico, faz-se necessário analisar, primeiro, o conceito clássico de jurisdição, a partir da formação dos Estados nacionais modernos.

A expressão jurisdição – com a silhueta próxima à atual – conformou-se juntamente com a consolidação da figura jurídica do Estado moderno. O senso de unidade nacional soberana, a organização de um governo representativo lastreado no princípio da legalidade formal e a implementação da doutrina montesquiana de separação e interdependência das funções do Estado (Poder Executivo, Legislativo e Judiciário) moldaram essa nova forma de organização social. Nessa configuração, o Estado monopolizou a prerrogativa de distribuição do Direito (jurisdição), a qual passou à titularidade do Poder Judiciário.

Destarte, há jurisdição quando o Estado se impõe sobre os particulares, decidindo-lhes os conflitos de interesses com autoridade. Noutras palavras, a jurisdição clássica afigura-se na atividade através da qual o Estado (juízes) aprecia os conflitos de interesses e os julga, visto estar vedada a vingança privada (GONÇALVES NETO, 2006).

Sobre a concepção clássica de jurisdição, importante destacar as teorias formuladas por Giuseppe Chiovenda e Francesco Carnelutti, as quais influenciaram a doutrina pátria e que, não obstante atualmente defasadas, ainda encontram defensores.

Giuseppe Chiovenda, no intuito de romper o paradigma da natureza privatista do processo (então vigente no Estado liberal), pensou o processo como instituto de direito público, ferramenta de expressão da autoridade do Estado. Nesse norte, asseverou que a jurisdição, no processo de conhecimento, consiste na “substituição definitiva e obrigatória da atividade intelectual não só das partes, mas de todos os cidadãos, pela atividade intelectual do juiz, ao afirmar existente ou não existente uma vontade concreta de lei em relação às partes” (CHIOVENDA, p. 365). Sintetizando, a jurisdição, segundo a escola chiovendiana, é vista como função voltada à atuação da vontade concreta da lei (MARINONI, 2011).

Já Francesco Carnelutti definiu o conceito de jurisdição a partir da ideia de lide. De acordo com Carnelutti (2000, p. 77) lide seria “um conflito (intersubjetivo) de interesses qualificado por uma pretensão contestada (discutida)”. Assim, para tal doutrinador, a prestação jurisdicional só se faria presente onde houvesse lide. Eventual atividade do juiz alheia à resolução de conflito de interesses não poderia ser taxada de jurisdicional.

Diante disso, dentro do sistema carneluttiano, a jurisdição amoldou-se como “atividade criada e organizada pelo Estado para pacificar os conflitos através da justa composição da lide” (RANZOLIN, 2011, p. 61).

Confrontando os conceitos de jurisdição acima delineados, nota-se que Francesco Carnelutti observou o processo do ponto de vista do interesse privado (finalidade das partes), enquanto Giuseppe Chiovenda debruçou-se numa perspectiva publicista (atividade do juiz). Outra diferença entre as teses foi exposta por Marinoni (2011, p. 11):

Para Carnelutti a sentença cria uma regra ou norma individual, particular para o caso concreto, que passa a integrar o ordenamento jurídico, enquanto que, na teoria de Chiovenda, a sentença é externa (esta fora) ao ordenamento jurídico, tendo a função de simplesmente declarar a lei, e não de completar o ordenamento jurídico.

Apesar dessas distinções, verifica-se que ambas as teorias carregam em seu âmago a noção de que a atuação do magistrado é voltada para a subsunção de uma premissa menor (fatos) a uma premissa maior (lei abstrata e genérica). Dessa forma, o produto da jurisdição sempre seria uma sentença declaratória, que poderia ser encarada como uma norma individual do caso concreto (Carnelutti) ou a simples aplicação da norma geral criada pelo legislador (Chiovenda).

Perceba-se que tais teorias são insuficientes para explicar a jurisdição no Estado Democrático de Direito, visto que foram engendradas sob a concepção de que a legislação infraconstitucional – supostamente completa e coerente – daria todas as respostas (direta ou reflexamente) para as controvérsias que permeassem a sociedade. Naquela época, a evolução tecnológica era lenta, inexistia o fenômeno da globalização e, sobretudo, as relações sociais não detinham a complexidade atual. Isso permitia o ideário de construção de um ordenamento jurídico completo e coerente, porquanto os conflitos de interesses eram assemelhados e previsíveis, o que potencializava a precisão do direito material. Nesse cenário, a interpretação da lei pelos magistrados era despicienda ou mínima, estando eles amarrados a um positivismo acrítico ou semicrítico. Os ensinamentos de Marinoni (2011, p. 42) corroboram o asseverado:

É fácil perceber que em uma sociedade legalmente igualizada, em que as relações têm características definidas como homogêneas, não há dificuldade na visualização das particularidades dos casos conflitivos. Por esse motivo, na época em se falava de “lei genérica e abstrata”, sequer se podia imaginar que um dia o juiz teria que “compreender” e atribuir “sentido” e “valor” aos casos concretos. O caso era visto como algo quase que predefinido e, nessa linha, a função do juiz era apenas preencher as suas particularidades. Como a jurisdição não precisava outorgar “sentido” ao caso, bastava a sua subsunção à norma geral mediante mera aplicação lógica.

No Estado Democrático de Direito, concebido sobre novos valores filosóficos, tornou-se imperativa a revisão do conceito de jurisdição. A evolução da complexidade das relações sociais e a velocidade dessa transformação certificaram a utopia de criação de um arcabouço jurídico total. Dessa forma, racionalizou-se a Constituição como norma fundamental de organização do Estado, ocupante do ápice da pirâmide normativa e informadora de todo o sistema jurídico. Por conseguinte, as lacunas legislativas e a norma infraconstitucional deveriam ser interpretadas pelos juízes à luz do caso concreto, bem como conforme os preceitos fundantes da carta política.

Nessa esteira, a efetiva prestação jurisdicional vai muito além da simples subsunção de premissa menor à premissa maior; passa pela compreensão do caso concreto no raciocínio decisório, o qual deverá se orientar pelos princípios constitucionais (explícitos ou implícitos) e direitos fundamentais, tudo a fim de cristalizar uma norma que regulará a lide.

2.2. Ondas renovatórias de acesso à Justiça

Previamente à abordagem das ondas renovatórias de acesso à Justiça, importante entender a própria concepção de “acesso à Justiça”.

O movimento de acesso à Justiça, capitaneado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, sustentou que o verdadeiro acesso à Justiça exige que o operador do Direito integre a realidade em sua visão jurídica, gerando um filtro sociojurídico na interpretação das normas produzidas pelo Estado. Esse aprimoramento interpretativo afasta a ideologia meramente formalista do Direito, a qual, historicamente, atravancou o acesso à Justiça por desconsiderar os aspectos social, econômico, político e cultural na efetivação do sistema legal. Coaduna-se com essas reflexões Ayoub (2005, p. 15-16) quando ressalta que:

O Acesso à Justiça exige tomada de consciência dos problemas, necessidades e deveres fundamentais, para que se alcance o perfeito desenvolvimento da atividade jurídico-judiciária, elemento primordial para uma resposta positiva aos anseios da sociedade. Trata-se principalmente de procurar respostas para superar as dificuldades e obstáculos que tornam o Direito inacessível à população. Esse movimento tem como escopo a distribuição igualitária das liberdades civis e políticas, ou seja, os Direitos Fundamentais que fazem parte de uma sociedade democraticamente organizada.

Assim, no entendimento de CAPPELLETTI e GARTH (1988), acesso à Justiça significa acesso à ordem jurídica justa e não apenas a simples possibilidade de o cidadão deduzir sua pretensão perante o Poder Judiciário. Afirmaram ainda que a ordem jurídica justa só pode ser alcançada se forem satisfeitas três ondas renovatórias de acesso à Justiça, a saber: (i) assistência judiciária para os pobres; (ii) tutela dos interesses metaindividuais; (iii) novo enfoque de acesso à Justiça.

Feitas essas considerações, passa-se ao exame individualizado das ondas renovatórias retromencionadas.

A primeira onda busca suprimir as desigualdades econômicas como entrave à efetiva realização da Justiça. A consecução dessa meta vem ao encontro ao objetivo da República Federativa do Brasil de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Desse modo, no rastro de outros países, o Brasil consagrou a assistência judiciária gratuita aos necessitados. A Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, disciplinou a matéria, conceituando “necessitado” como “todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família” (art. 2º, parágrafo único).

A prestação da assistência judiciária gratuita compete à Defensoria Pública – da União, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Estados – incumbindo-lhe, fundamentalmente, “a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados” (art. 1º da Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994).

De mais a mais, esse modelo de Justiça gratuita confere aos legalmente pobres a isenção das custas processuais e honorários advocatícios.

A segunda onda empenhou-se na solução dos problemas de representação jurídica dos direitos coletivos lato sensu ou transindividuais ou metaindividuais dos cidadãos – que se dividem em direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos.

O Código de Processo Civil pátrio foi dimensionado para solver lides privatistas de caráter individual. Ocorre que, em razão da evolução política, social, cultural e tecnológica da sociedade, a tutela meramente individual mostrou-se insuficiente para solucionar as questões transindividuais – o que delineava um problema de denegação de justiça (CAPPELLETTI, 1977, p. 128). Contudo, através da promulgação da Constituição Federal de 1988, houve uma mudança de paradigma, pois a tutela coletiva foi guindada ao rol dos direitos e garantias fundamentais.

Assim, a tratativa dispensada pela Carta Magna de 1988 aos direitos coletivos permitiu o suprimento de um déficit de acesso à Justiça, bem como o estabelecimento da relevância social da tutela coletiva, caracterizada pela natureza dos bens jurídicos envolvidos (v.g.: meio ambiente, relações de consumo, saúde e educação), pelas dimensões ou características da lesão e pelo elevado número de pessoas atingidas (DIDIER JR. e ZANETI JR., 2009, p. 41).

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A partir do balizamento constitucional, o qual revigorou, em especial, os comandos da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), observou-se a proliferação de estatutos jurídicos específicos de tutela coletiva (v.g.: Lei nº 7.853/89, Lei nº 7.913/89, Lei nº 8.069/90, Lei nº 8.078/90, Lei nº 8.884/94, Lei nº 9.494/97 e Lei nº 10.741/03).

Não obstante esse emaranhado legislativo, foi criado um microssistema processual para as ações coletivas. Esse microssistema foi concebido, sobretudo, através da intercomunicação entre a Lei de Ação Civil Pública e o Título III do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). A junção desses diplomas legais traçou um procedimento “comum/ordinário” da tutela coletiva brasileira.

A desobstrução desse acesso à Justiça pode ser aferida pelas milhares de ações em trâmite movidas por partidos políticos, associações, sindicatos, Ministério Público etc., tratando de direitos metaindividuais dos cidadãos, “muita vezes sem que estes tenham sequer conhecimento de que (indiretamente) estão a litigar e de que diversos interesses seus estão em disputa” (RANZOLIN, 2011, p. 9).

A terceira onda expõe um novo enfoque de acesso à Justiça. No Estado Democrático de Direito, o real acesso à Justiça aperfeiçoa-se numa prestação jurisdicional que resguarde os direitos fundamentais dos cidadãos, em especial o direito à tutela jurisdicional efetiva. Dessa maneira, a efetividade é a pedra de toque da amplitude de acesso à Justiça, devendo o Estado disponibilizar aos jurisdicionados meios eficazes, lídimos e céleres de resolução de conflitos. Sintetiza essa ideia Teixeira (1996, p. 887) ao elucidar:

Na ‘onda’ atual, a preocupação se volta para a efetividade dessa prestação, refletindo ideais de justiça e princípios fundamentais, tendo como idéias matrizes o acesso a uma ordem jurídica justa e a celeridade na solução do litígio, ao fundamento de que somente procedimentos ágeis e eficazes realizam a verdadeira finalidade do processo.

Nessa seara, a expressão “acesso à Justiça” teria melhor significação como “acesso à ordem jurídica justa”, visto que não basta ao Estado “conceder ao jurisdicionado o pleno acesso aos tribunais, sem a existência de condições mínimas satisfatórias à obtenção de justa composição do litígio […]” (WATANABE, 1988, p. 128).

A velocidade de desenvolvimento da sociedade e suas relações jurídicas cada vez mais complexas escancaram que a forma clássica de solução de lides – o processo estatal – está em crise, porquanto não constitui mais via suficientemente abrangente e efetiva de pacificação social. Nesse norte, se a entrega de Justiça efetiva é dever do Estado, este deverá sempre evoluir processualmente com vagar na implantação de instrumentos voltados para a solução de litígios sem a presença obrigatória do Poder Judiciário.

Aqui se inserem, por exemplo, a negociação, a mediação, a conciliação e, sobretudo, a arbitragem que são ferramentas extrajudiciais de pacificação social tão válidas quanto o processo estatal. Destaca-se que esses meios alternativos de solução de controvérsias ou Alternative Dispute Resolution (ADR) possuem, em muitos casos, melhor dimensionamento para solver lides que a Justiça pública, o que traduz efetividade no acesso à Justiça.

Essencial pontuar que nenhum desses meios é melhor ou pior do que o oferecido pelo Estado para a solução de conflitos; “todos eles concorrem para o melhor desempenho da atividade, função e poder de julgar, tarefas que não constituem mais um monopólio do Estado” (CARMONA, 2011, p. 10).

A intensificação de outros métodos de acesso do cidadão ao encontro da Justiça também é primordial porque nem mesmo a produção legislativa recente conseguiu mitigar a estagnação do modelo processual estatal vigente. Ainda que repensada a sistemática de prestação de serviços pelo Poder Judiciário (EC nº 45/04), criado rito processual menos formal (Leis nº 9.099/95 e Lei nº 10.259/01), reforçado o cunho conciliatório da audiência preliminar (Lei nº 10.444/02), recalibrada a via recursal (Leis nº 10.352/01, 11.187/05, 11.276/06, 11.418/06, 12.322/10 etc.), ampliada a tutela específica (Lei nº 10.444/02) e instituído o sincretismo processual (Lei nº 11.232/05), essas alterações não foram capazes, na prática, de rejuvenescer e garantir a efetividade da jurisdição estatal.

Portanto, a terceira onda renovatória sub examine consolida-se num sistema plural ou multiportas de solução de controvérsias – estatal e paraestatal – devendo seus integrantes ser informados indistintamente pelos mesmos princípios que garantam um processo e julgamento justo. Esse é o novo enfoque de acesso à Justiça, atendendo às observações de Ranzolin (2011, p. 10-11):

A projeção das ADR é norteada por um realismo jurídico, pelo qual o acesso à justiça deixa de ser tratado como um direito social alcançável pela previsão formal de instrumentos legais para seu exercício. Passa-se a encarar o acesso à justiça como um problema social de cunho material, que demanda soluções práticas efetivas, tendo em conta as peculiares dificuldades de cada um de seus componentes reais: sujeitos, instituições, contexto etc. O cidadão é enfocado como um consumidor de justiça, devendo os instrumentos serem multiplicados e adaptados para efetiva maior oportunização do acesso à justiça. Por isso, com as ADR, o fenômeno da pacificação das controvérsias ganha novas perspectivas funcional, teleológica e instrumental.

2.3. Redimensionamento do conceito de jurisdição e jurisdicionalidade da arbitragem

As transformações provocadas na concepção de jurisdição ante a implantação do Estado Democrático de Direito foram profundas, conforme ressaltado no subcapítulo 2.1. Além de fincar a supremacia da Constituição Federal na hierarquia das leis, estabeleceu que a legislação deve moldar-se e ser interpretada conforme as regras e princípios dessa norma superior. Assim, o positivismo acrítico de outrora deu lugar ao positivismo crítico.

Na evolução desse modelo de Estado, percebeu-se que a legalidade pura ou meramente formal não atendia aos anseios de efetivação do núcleo da Constituição, qual seja, os direitos e garantias fundamentais. Logo, a substância da norma – interpretada conforme a Constituição – importaria mais que o simples expediente de subsunção do fato à norma. A lição de Marinoni (2011, p. 3) aclara essa transformação:

A assunção do Estado constitucional deu novo conteúdo ao princípio da legalidade. Esse princípio agregou o qualificativo “substancial” para evidenciar que exige a conformação da lei com a Constituição e, especialmente, com os direitos fundamentais. Não se pense, porém, que o princípio da legalidade simplesmente sofreu um desenvolvimento, trocando a lei pelas normas constitucionais, ou expressa uma mera “continuação” do princípio da legalidade formal, característico do Estado legislativo. Na verdade, o princípio da legalidade substancial significa uma “transformação” que afeta as próprias concepções de direito e de jurisdição e, assim, representa uma quebra de paradigma.

Destarte, incontestável que, no estágio atual do Estado Democrático de Direito, o acesso à Justiça e a tutela jurisdicional efetivos foram alçados à categoria de direitos fundamentais. A materialização desses direitos se dá através do processo, que, ao revés dos Estados pseudodemocráticos, resguarda as garantias máximas do devido processo legal na dimensão substancial (v.g.: contraditório, proporcionalidade, imparcialidade, isonomia etc.).

Nessa ordem, verifica-se que: (i) a jurisdição só pode se dar via processo; (ii) a função jurisdicional está subordinada às garantias constitucionais do processo; (iii) o Estado tem o dever de entregar Justiça efetiva – independentemente do meio disponibilizado – desde que não fira os direitos e garantias fundamentais.

O rol de constatações acima alicerça a necessidade de redimensionar o conceito de jurisdição. Em que pese o Estado ter a responsabilidade de prover uma ordem jurídica justa, isso não significa que a prestação jurisdicional é monopólio do Poder Judiciário. A jurisdição moderna deve ser entendida a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, donde se extrai a legalidade e legitimidade de “criação de um sistema multiportas de solução de controvérsias, que dê à população opções válidas para a resolução de seus multifacetados litígios” (CARMONA, 2011, p. 2).

Em consonância com os argumentos supra, Ranzolin (2011, p. 63-64) explana que:

[…] o direito ao processo e à jurisdição passou a compor categoria atinente aos direitos fundamentais constitucionais. A garantia dos cidadãos de obterem um efetivo processo justo se coloca como elemento-chave de todo o sistema de prerrogativas da cidadania. Com tal elevação do significado de justiça e da própria jurisdição no sistema jurídico, sua conceituação atual não pode mais estar dissociada dessas estruturas jurídicas fundamentais de proteção do indivíduo. Tal importa, como referido, uma nova concepção do próprio Direito, sobrepujando a percepção meramente formal da lei – historicamente inoperante para remediar o arbítrio.

Pontua-se, então, que a concepção de jurisdição no sistema jurídico atual é calcada, basicamente, no caráter finalístico da função de prestar justiça de forma equidistante e imparcial em relação às partes. Nesse passo, nota-se que “justiça efetiva” e “jurisdição” não são termos coincidentes de significação, constituindo, o primeiro, dever privativo do Estado e significando, o segundo, poder ou atividade –estatal ou particular decorrente de outorga legal – necessário para o atingimento de tal dever.

Ademais, cumpre complementar que a tutela jurisdicional deve ser prestada na esteira das garantias do processo, isto é, a jurisdição só pode se dar mediante processo informado pelos princípios do devido processo legal, contraditório, ampla defesa, imparcialidade, igualdade das partes e livre convencimento. A partir dessa assertiva visualiza-se que o processo estatal é um processo garantista por natureza, entretanto essa qualidade não lhe é exclusiva, podendo apresentar-se também noutros processos, tais como o arbitral.

Traçadas as amplitudes do conceito de jurisdição e do processo garantista ante a realidade posta, resta patente a jurisdicionalidade da arbitragem. A Lei nº 9.307/96 amarrou a arbitragem a um processo garantista (art. 21, § 2º) e concedeu ao seu ato final – decisório – revestimento de coisa julgada. Assim, o legislador, cristalizando os direitos fundamentais de acesso à Justiça e tutela jurisdicional efetivos, determinou ser jurisdicional a arbitragem. A exposição de Alvim (2000, p. 87-89) racionaliza a questão:

Para quebrar de vez a resistência ortodoxa, optou o legislador por uma postura mais agressiva, dizendo com todas as letras, no art. 18 da Lei de Arbitragem, que ‘o árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário’ […] Prescreveu também o art. 31 da nova Lei de Arbitragem que ‘a sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo’. […] a amplitude do que significa a arbitragem ser jurisdicional radicaria no fato de que ela não pode ser considerada um simples equivalente jurisdicional, porquanto não proporciona um resultado equivalente à sentença, mas uma verdadeira e própria sentença, em tudo e por tudo idêntica, em valor jurídico e eficácia, à que se obtém através da jurisdição estatal.

A jurisdicionalidade em tela também fica nítida quando da instituição da arbitragem, pois, nesse momento, evidencia-se o acionamento de uma função, uma atividade e um poder que não diferem daqueles entregues aos magistrados. Nesse sentido, veja-se:

[…] a função é de pacificar o conflito entre os contendentes; a atividade é tipicamente processual, utilizando-se o árbitro de um encadeamento de atos que pode ser diferente daquele empregado pelo juiz estatal, mas cumpre o mesmo objetivo; e o poder é o de decidir imperativamente, impondo às partes sua decisão (CARMONA, 2011, p. 8).

Vale lembrar que a jurisdicionalidade da arbitragem possibilita ao instituto integrar o sistema de prestação de Justiça efetiva, todavia isso não a torna absoluta. Os atos emanados do juízo arbitral que violarem os direitos fundamentais e as normas legais poderão ser invalidados pelo Estado (provedor dessa ordem jurídica justa), via Poder Judiciário. O controle de legalidade do processo e/ou da sentença arbitral encontra-se disposto no art. 33 da Lei nº 9.307/96.

Para concluir este subcapítulo, imperioso transcrever trecho da obra de Ayoub (2005, p. 36), onde há interessante entrelaçamento do atual viés da jurisdição e da jurisdicionalidade da arbitragem:

O segundo ato mostra o Estado preponderante, em sua vontade única, a fim de distribuir a luz social entre a sociedade. Ao conceber ao particular autonomia para instituir a forma de se obter a Justiça, de fazer valer seu Direito, efetivamente e sem delongas, o Estado não se isenta da responsabilidade que lhe é peculiar e primordial. Pelo contrário, ele proporciona diferentes oportunidades de promover a Justiça, respeitando os princípios e garantias fundamentais de um Estado Democrático de Direito, concebendo aos imediatos interessados, aos sujeitos polares da demanda a possibilidade de escolher entre o Tribunal Judicial tradicional e o juízo arbitral, prevalecendo o Princípio da Autonomia da Vontade.

2.4. Constitucionalidade da arbitragem

A Lei nº 9.307/96 potencializou a efetividade do juízo arbitral. O cerne desse incremento afigura-se no revestimento de coisa julgada dado à sentença arbitral contemporânea. Esse decisum dispensa a homologação do Poder Judiciário, produzindo, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença estatal.

Essa quebra de paradigma reacendeu acirrada discussão doutrinária sobre a constitucionalidade da arbitragem. Para alguns, o instituto em foco é inconstitucional, pois viola o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal – “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

O art. 5º, inciso XXXV, consagra o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário e, sob a ótica dos defensores da inconstitucionalidade da arbitragem, esse regramento certifica o monopólio da prestação jurisdicional pelo Estado. Nesse passo, interpretam que qualquer conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida deve ser solvido obrigatoriamente pela jurisdição estatal. E complementam que a arbitragem atenta contra o irrenunciável direito de ação (pretensão processual) conferido às partes. Então, para essa corrente, a Lei nº 9.307/96 obstrui o acesso ao Judiciário, logo padece de manifesta inconstitucionalidade.

Aqueles que sustentam a constitucionalidade da arbitragem asseveram que o texto constitucional garante – e não obriga – o acesso ao Poder Judiciário. O princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário não traduz monopólio da jurisdição pelo Estado.

O princípio em questão deve ser interpretado conforme a história política nacional; daí exsurge sua verdadeira dimensão. A primeira vez que surgiu de forma expressa foi na Carta Política de 1946 (art. 141, § 4º), tendo sido repetido nas de 1967 (art. 150, § 4º), 1969 (art. 153, § 4º) e 1988 (art. 5º, inciso XXXV), e teve como fundamento a extirpação das denegações de justiça promovidas pelas ditaduras varguista e militar. Nesse sentido, anota-se:

O aludido princípio constitucional não teve o intuito de se referir à arbitragem ou a qualquer outro meio de composição extrajudicial, mas sim, o de se declarar o repúdio da sociedade a abusos cometidos durante a ditadura varguista. O dispositivo em questão teve por finalidade acabar com comissões e conselhos extraconstitucionais, responsáveis por inquéritos policiais e parlamentares, que eram levados de forma sumária, excluindo o reexame da questão pelo Poder Judiciário, sem a observação de princípios constitucionais como o do contraditório e da tutela jurisdicional (VALÉRIO, 2004, p. 103-104).

Dessa maneira, o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário foi cunhado como uma garantia/proteção do cidadão contra eventual abuso do legislador ou do Poder Executivo que impusesse coativamente o afastamento do devido processo legal e do controle jurisdicional. Vem de encontro a essa assertiva CARMONA (2007, p. 313) ao pontuar que “a norma inserida na Constituição Federal (art. 5º, inc. XXXV) encarta uma proibição dirigida ao legislador, e não àqueles que precisam resolver um litígio”.

Em decorrência do exposto, tem-se que tal princípio seria mais bem compreendido como “princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional”.

Na medida em que a arbitragem não exclui o Poder Judiciário – seja porque é uma opção e não via obrigatória de solução de controvérsias, seja porque seu processo e sentença não estão imunes ao controle de legalidade da jurisdição estatal – não há que se falar em inconstitucionalidade.

Ademais, o instituto em apreço possui amplitude limitada, já que só pode ser utilizado por pessoas maiores e capazes para dirimir litígios voltados a direitos patrimoniais disponíveis. Isso também é traço marcante de sua constitucionalidade, pois consagra o princípio da autonomia da vontade, além de salvaguardar os direitos da personalidade (v.g.: vida, liberdade, igualdade, segurança etc.).

Ressalta-se ainda que a convenção de arbitragem não constitui disposição acerca da pretensão processual. Nessa direção, Valério (2004, p. 106) ensina:

[…] com a celebração da convenção de arbitragem, as partes optam pela jurisdição privada, não significando renúncia ao direito de ação, mas um livre ajuste na forma pela qual se comprometem a compor sua lide, ademais, se o titular de um direito disponível pode renunciá-lo, então, por dedução lógica, pode escolher a forma de solucionar controvérsia em torno desse mesmo direito.

O debate sobre a (in)constitucionalidade do instituto da arbitragem foi sepultado em 12 de dezembro de 2001. Nessa data houve o histórico julgamento do Agravo Regimental em Sentença Estrangeira – SE nº 5206, onde o Pleno do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, declarou constitucional a Lei nº 9.307/96. Segue o teor do acórdão:

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em prover o agravo para homologar a sentença arbitral, e por maioria, declarar constitucional a Lei nº 9.307, de 23.09.96, vencidos, em parte, os Senhores Ministros Sepúlveda Pertence, Sydney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves, que declaravam a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 6º; do artigo 7º e seus parágrafos; no artigo 41, das novas redações atribuídas ao artigo 267, inciso VII, e ao artigo 301, inciso IX, do Código de Processo Civil; e do artigo 42, todos do referido diploma legal.

Posto isso, “não resta dúvida sobre a validade e eficácia plena de todos os dispositivos da Lei nº 9.307/96, sendo insustentável tese em contrário” (GAJARDONI, 2006, p. 53).

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Sobre o autor
Alan Monteiro Gaspar

Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Civil: Universidade Anhanguera – Uniderp (2014/2015). Especialista em Direito Processual Civil: Universidade Anhanguera – Uniderp (2011/2012). Especialista em Direito Processual: grandes transformações: Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (2008/2009). Bacharel em Direito: Centro Universitário de Sete Lagoas – UNIFEMM (1998/2002).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GASPAR, Alan Monteiro. A efetividade da jurisdição arbitral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3933, 8 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27531. Acesso em: 24 abr. 2024.

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