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O povo se reúne constitucionalmente.

Sobre os protestos nas ruas e a proposta da lei antiterrorismo

01/05/2014 às 13:45
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O povo sempre irá protestar constitucionalmente. Jamais o fará de modo inconstitucional. Numa república democrática o povo atua extamente no exercício dessa potestade nata de quem, no final das contas, é o detentor do poder originário.

O povo foi às ruas protestar! Logo completará um ano esse fenômeno[1] que tomou as ruas de todo o Brasil no meio do ano de 2013[2] e que ainda desperta paixões e comentários com um misto de admiração e incompreensão.

Assim como na Paris de 1968[3], onde os estudantes tomaram as ruas em inesquecível iniciativa e em poéticos dias e tudo logo voltou ao normal[4], também aqui a população em peso tomou ruas, praças e avenidas nas principais cidades e tudo pareceu voltar à rotina após alguns dias, embora ainda haja protestos aqui e acolá, ora com participação de poucos, ora de milhares[5], por vários motivos e motivações.

É crível que os protestos não eram contra isso ou aquilo e sim a favor do Brasil e este é o motivo pelo qual concluímos que nenhum político ou partido político (seja da oposição ou da situação) deles se apropriou. Não houve quem pudesse se apropriar do discurso eloquente que os protestos expressavam. Não havia um líder porque era o “poder soberano” do povo se manifestando e marchando. Havia um senso comum de insatisfação contra algo que o povo pode até não compreender profundamente, mas que evidentemente sente e percebe instintivamente e que se manifestou daquele modo, por sofrer com o transporte coletivo, a saúde e educação públicas e práticas políticas condenáveis, que nos custam muito em impostos com pouco retorno[6], aumentando o tal “custo Brasil”. Essa realidade e percepção latentes talvez não tenham gerado protestos tão veementes antes por falta do elemento de compreensão adequado e empírico, que só surgiu quando foi possível a sua comparação com as obras “padrão Fifa” nos estádios construídos para a Copa do Mundo 2014! 

Em primeiro lugar vamos logo enaltecer o fato de que, sendo democráticas as manifestações e, portanto, fortalecedoras da própria democracia[7], temos de separar do coletivo de manifestantes os que, infiltrados[8], praticaram crimes ou condutas antijurídicas: a estes todo o rigor da legislação penal[9] e civil. Também não sejamos inocentes a ponto de esquecer que não é raro que haja lamentáveis excessos de um ou outro lado[10] e, apenas para o debate, alguém diria que a violência policial corresponderia a atos de terrorismo? De qualquer modo, todos os excessos são passíveis de punição pela legislação vigente, tenham sido praticados por cidadãos ou por policiais e não se confundem com terrorismo.[11]`[12]`[13] A propósito, a matéria no Senado foi retirada de pauta para apresentação de substitutivo[14] pelo Relator, alvitrando classificar o terrorismo segundo os paradigmas dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, sem envolver manifestações e afins.

Mas como surgiram em tantos lugares diferentes e distantes e ao mesmo tempo aquelas ondas cívicas? Não foi culpa da rede mundial de computadores, que apenas foi um veículo, um instrumento e pretender simplificar assim a abordagem não explicaria tantos movimentos anteriores, no Brasil e no mundo, quando aquela ainda não existia! Independentemente do que se diga, ali havia uma unidade de manifestação do povo, demonstrativa de sua pujança, identidade cultural e política.

Por isso a análise em comento parte de outra premissa, algo não necessariamente escrito expressamente no texto constitucional ou em qualquer lei. Vejamos por exemplo um cartaz que dizia mais ou menos assim: - “se o cinto é para minha segurança, porque ando em pé em ônibus cheio”? Há uma percepção lógica de um paradoxo, em discursos que não combinam com uma realidade e, inegavelmente, um profundo senso filosófico e crítico em questionamento dessa natureza, pois um ônibus com cerca de 100 pessoas e muitas em pé e sem dispor de cinto de segurança é potencialmente mais perigoso (em todos os sentidos) do que um veículo de passeio com apenas o motorista e que corre o risco de ser multado se não usar o cinto de segurança (aliás, essa multa seria para fomentar a arrecadação ou alvitra proteger a saúde e integridade física do cidadão?). Também não há cinto para motos e estas são perceptivelmente mais arriscadas que os carros e vem causando vítimas em grande quantidade.[15]`[16]

Há, assim, algo em cada indivíduo que simplesmente encontrou eco em outros indivíduos a partir do momento em que alguém percebeu algo errado e gritou que “o rei está nu”, como no clássico conto de Hans Christian Andersen. Assim, antes da subsunção (incidência do fato sobre a norma), da adequação das condutas às leis, há algo sem forma clara e não por isso incorreto, algo próprio do bom senso comum, do direito natural, dos mais fundamentais princípios emocionalmente vibrantes que alimentam a alma humana e ao mesmo tempo demonstram uma pequena ruptura do entorpecimento quase permanente e latente... Apesar disso nada há de antijurídico ou de antinatural no que vivenciamos, pois o povo simplesmente se reúne constitucionalmente (aliás, o povo sequer poderia imaginar se reunir inconstitucionalmente)! Engana-se também quem desconhece que isso está previsto no texto constitucional. A nossa Constituição Federal de 1988, democrática e opondo-se às constituições do período da ditadura, prevê o direito à desobediência civil em seu art. 5º. Parágrafo Segundo[17], quando expressamente admite outros direitos não expressamente ali redigidos.

Mas como se exerce esses direitos constitucionais não escritos? O que o povo fez nas ruas é um exemplo!

Por isso é que assusta ver governos estaduais colocando forças policiais para coibir constitucionais manifestações e o Estado debatendo algo como leis antiterroristas pretensamente aplicáveis a manifestantes.

Tropeçará quem afirmar que essa atuação nas ruas foi tão ostensiva que contrariou a imagem de um povo alegre e pacífico: o povo agiu pacificamente, certo de que exercia sua cidadania e com mais liberdade do que quando o faz pelo exercício do voto obrigatório, tanto que havia milhares de idosos, pais com seus filhos de colo, grávidas e pessoas com jovens espíritos, de todas as idades: era o povo, sem partido, sem ser dirigido... Era o povo fazendo política e sendo político, mas sendo natural (alguns destacaram em demasia a conduta de infiltrados que praticaram ilegalidades, mas isso não representa a vontade pura do povo nas pacíficas e democráticas manifestações em comento, nem tira a legitimidade do movimento e discutir apenas a ação de poucos baderneiros com o cogitado e pretendido endurecimento da legislação significa na verdade desvalorizar o movimento popular e desviar o foco do problema principal e que levou o povo às ruas!).

Era simplesmente o povo e que foi à rua porque quis!... Em parte o poderoso símbolo do protesto legítimo de uns poucos encontrou eco em muitos se alastrou, mas não contaminou ninguém, ao contrário, apenas se identificou no pensamento de tantos!

Outros dirão que não havia uma “causa” de fácil identificação, um líder ou um discurso político.

Na verdade, houve isso tudo, mas numa linguagem não balizada e rebuscada previamente pela classe política e, mais importante do que as faces, houve um discurso, uma fala, uma crítica, uma voz! Só não entendeu quem não quis ou quem simplesmente achou melhor deixar tudo se acalmar ou achar que tem que “mudar tudo para não mudar nada”.

         (04.4.2014 - contato: [email protected] ou [email protected])


Notas

[1] Ruas em todo o país foram tomadas por passeatas com milhares de pessoas, protestando por vários motivos, contra problemas na área da saúde, do transporte público e da educação e os altos custos (“padrão Fifa”) das obras dos estádios para a Copa, contra condutas políticas que o povo entendia não os representar, contra Pec 37 que alvitrava limitar poderes do MP, tudo como voluntário eco de um singular protesto em São Paulo contra aumento de vinte centavos no preço das passagens de ônibus.

[2]  “Sete dias que mudaram o Brasil” era o título de uma matéria especial na Revista Veja, de 26.6.2013 (p. 60).

[3] ...”A incomum magnitude das manifestações daquele dia (em Paris, uma passeata com mais de 500 mil pessoas) dá confiança aos trabalhadores e serve de trampolim para a deflagração, no dia seguinte, de greves reivindicativas e sua disseminação. Começa a greve geral que fez passar o mês de maio de 1968 para a história: a maior de todos os tempos, com dez milhões de grevistas.”...”Por outro lado, a amplidão da greve geral apresenta um sentido político que ultrapassa o terreno meramente sindical, negando qualquer legitimidade ao governo (“Fora De Gaulle!”, gritam os manifestantes).“...(fonte: http://seer.ufrgs.br/organon/article/viewFile/29507/18192 - acesso em 31.3.2014 – n.g.).

[4] ... “Ironicamente, a confrontação de maio de 68 termina num empate técnico. O establishment é sacudido, faz algumas concessões à contestação e tudo volta ao normal. Os revoltosos, sem base política, econômica ou militar, se dispersam. De Gaulle, derrotado no referendo de abril de 1969, renuncia à presidência.” (fonte: http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/maio-de-68-sacudiu-franca-9195148 - acesso em 31.3.2014)

[5] Como exemplifica aquele havido em São Paulo, na Av. Paulista, 26 de março de 2014.

[6] ...”Entre os 30 países de maior carga tributária do mundo, Brasil oferece o menor retorno em serviços públicos de qualidade” ... (in “Brasil tem alta carga tributária, mas continua oferecendo menor retorno à população” – fonte https://www.ibpt.org.br/noticia/896/Brasil-tem-alta-carga-tributaria-mas-continua-oferecendo-menor-retorno-a-populacao - consulta em 04.4.2014 – n.g.)

[7] Em 26.6.1968 ocorreu no Rio de Janeiro a “Passeata dos Cem Mil”, que foi manifestação popular de protesto contra a Ditadura Militar no Brasil, organizada pelo movimento estudantil e outros setores da sociedade, contando com a participação de artistas e intelectuais. Aliás, também ocorreram manifestações no Brasil pelas “Diretas Já”, bem como, com os chamados “Caras Pintadas”, à época dos fatos que levaram ao Impeachment do Presidente Collor e em outros momentos, como no ano passado etc, o que muito difere do “terrorismo” que age ocultamente e “não mostra a sua cara”.

[8]  Isso naturalmente não acontece só no Brasil: ... “lojas foram vandalizados e alguns carros incendiados hoje à tarde, em Roma, durante o protesto dos "indignados" que decorre em todo o mundo contra a crise financeira e as medidas de austeridade.” (Protestos italianos começam com violência  - fonte http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=2059782&seccao=Europa – consulta em 03.4.2014 - n.g.)

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[9] A legislação já criminaliza a conduta do causador do dano (Código Penal, art. 163, inclusive com agravantes se usada substância inflamável ou explosiva – se naõ constituir crime mais grave – o com violência ou grave ameaça à pessoa, bem como contra o patrimônio público, da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista (com a ressalva aqui de que a última modificação a respeito foi feita pela Lei 5346, de 1967, ou seja, em plena época da “ditadura militar”, decorrente do Projeto de Lei 583/1967, de autorida do Poder Executivo!), , daquele que cause lesão corporal (Código Penal, art. 129), uso de explosivos (Código Penal, art. 251), incêndio provocado (Código Penal, art. 250) etc

[10] ...”Especialistas em direitos humanos das Nações Unidas enviaram nesta quinta-feira uma carta ao presidente Nicolás Maduro pedindo explicações sobre o uso de violência e a prisão de manifestantes durante os protestos na Venezuela. Eles defendem ainda uma investigação urgente e minuciosa sobre o caso. O texto - assinado pelos relatores especiais Frank La Rue, Maina Kiai, Mads Andenas, Juan Méndez, Christof Heyns e Margaret Sekaggya - pede "o esclarecimento imediato das denúncias de detenção arbitrária e uso excessivo da força e violência contra manifestantes, jornalistas e trabalhadores de meios de comunicação durante a recente onda de protestos no país" e que já deixaram 17 mortos desde o dia 12 de fevereiro.” (“ONU pede explicações à Venezuela sobre violência e prisões em manifestações” - fonte https://br.noticias.yahoo.com/onu-pede-explicações-à-venezuela-violência-prisões-manifestações-145654423.html - consulta 03.4.2014 - n.g.).

[11] ...”As atitudes violentas que ocorreram nas manifestações não se configuram como terrorismo? Não. O dano ao patrimônio público está previsto na lei. E responde sob duas hipóteses, sob o ponto de vista criminal e civil porque tem que reembolsar e pagar por aqueles danos. Isso não se configura objetivamente como terrorismo.” (Advogado João Tancredo, Presidente do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos (DDH); matéria intitulada “Lei antiterrorismo "é quase uma repetição da época da ditadura civil-militar", diz presidente do DHH – fonte http://www.brasildefato.com.br/node/27484 - consulta em 03.4.2014 - n.g.)

[12] “É a ditadura transitória da FIFA” diz presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, sobre PL que corre no Senado em paralelo à Lei Geral da Copa” (fonte http://www.apublica.org/2012/02/pl-quer-punir-terroristas-grevistas-na-copa/ - consulta em 03.4.13)

[13] ...”confunde o crime comum com o terrorismo. E é o que o irresponsável e irracional legislador, sob “o fogo das paixões” (como dizia Beccaria), está prometendo fazer: deve aprovar um projeto (Romero Jucá foi relator) que transforma todo crime comum que cause “terror ou pânico generalizado na população” em terrorismo, esquecendo-se que este exige uma finalidade ou motivação específica (religiosa, política, ideológica, filosófica, separatista etc.)”... (Luis Flávio Gomes; fonte http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/113183864/legislador-faz-terrorismo-com-o-terrorismo - consulta em 03.4.2014)

[14] ...”O relator do projeto, Eunício Oliveira (PMDB-CE), retirou a proposta de pauta porque diz ter visto uma distorção na interpretação da matéria. Ele decidiu apresentar um substitutivo ao texto que vai classificar o ato terrorista com base em tratados internacionais assinados pelo Brasil. “Eu vou apresentar um substitutivo que trata do terrorismo clássico”, disse. “Não tem nada a ver com confusão de rua, greve, passeata. Já tem  lei pra baderna.” (in “Senado segura votação da lei antiterrorismo“ - Em Congresso em Foco – fonte http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/senado-segura-votacao-da-lei-antiterrorismo/ -  consulta em 03.4.2014 -n.g.)

[15]  ...”Um estudo inédito sobre a violência no trânsito, realizado pelo Instituto Sangari por meio da análise de 1 milhão de certidões de óbito em todo o mundo, revelou que o Brasil é o segundo país do mundo em vítimas fatais em acidentes envolvendo motocicletas, com 7,1 óbitos a cada 100 mil habitantes.” (http://motordream.uol.com.br/noticias/ver/2012/05/07/brasil-e-o-segundo-no-ranking-de-vitimas-fatais-em-acidentes-de-motos- - consulta em 02.4.2014)

[16] ...”Desde 2010, os motociclistas já formam a maior parcela das vítimas da violência no trânsito, um peso para a economia e o futuro do Brasil” (http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/motos/saude/violencia-no-transito-numero-de-vitimas-e-mortes-de-motociclistas-em-acidentes-com-a-frota-de-motocicletas-e-problema-de-saude-para-o-brasil.aspx - consulta em 02.4.2014)

[17] CF/88, art. 5º, “§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

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Sobre o autor
Rogério Reis Devisate

Advogado. Defensor Público junto ao TJ-RJ. Associado ao Ibap. Autor dos livros "Grilagem das Terras e da Soberania" (2017) e "Grilos e Gafanhotos - Grilagem e Poder" (2016).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DEVISATE, Rogério Reis. O povo se reúne constitucionalmente.: Sobre os protestos nas ruas e a proposta da lei antiterrorismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3956, 1 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27550. Acesso em: 21 nov. 2024.

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