1. O atual texto constitucional estabelece, como regra, a proibição da acumulação remunerada de cargos públicos. Assim o faz, sob o argumento de combater abusos2, preceito que tem raízes no Decreto de 18/06/1822, de José Bonifácio3.
O texto constitucional também enumera, de forma taxativa4, nas alíneas do inciso XVI, do artigo 375, as hipóteses de exceção à inacumulabilidade: a) dois cargos de professor; b) de um cargo de professor com outro técnico ou científico ou c) de dois cargos ou empregos privativos de profissionais da saúde, com profissões regulamentadas.6 Autorizações desta espécie devem ser interpretadas restritivamente7.
2. Porém, o que quer dizer a Constituição quando menciona ser “vedada a acumulação remunerada de cargos públicos”? Qual o critério jurídico que faz surgir a inacumulabilidade?
Existem duas vertentes interpretativas: a primeira, de que a vedação constitucional decorre da proibição da efetiva percepção de mais de uma remuneração oriunda de cargo público ;e a segunda, de que se veda, pura e simplesmente, a acumulação de cargos, que, por sua natureza, sejam remunerados. Nesta última, pouco importaria se o servidor estivesse, de qualquer forma, afastado de um de seus cargos, não recebendo qualquer remuneração8.
3. Ora, se o artigo 37, XVI, da CF apresenta restrição à acumulação de cargos “remunerados”, a mesma deve ser interpretada restritivamente9, pois no texto constitucional não existem expressões inúteis, sem sentido, de modo que a acumulação ilícita surge apenas na percepção cumulativa das vantagens dos cargos. O raciocínio oposto seria adotar o que preceituava a Constituição de 194610, texto que não mais foi reproduzido.
Portanto, a verificação da aplicação da proibição constitucional se desloca para a análise do efetivo recebimento pecuniário dos cargos acumulados.
4. Este entendimento é secundado por importante parcela doutrinária, como a haurida da obra de Hely Lopes Meirelles:
A proibição de acumular, sendo uma restrição de direito, não pode ser interpretada ampliativamente. Assim, como veda a acumulação remunerada, inexistem óbices constitucionais à acumulação de cargos, funções ou empregos do serviço público, desde que o servidor seja remunerado apenas pelo exercício de uma das atividades acumuladas.11
No mesmo sentir é o posicionamento das administrativistas Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Odete Medauar, a seguir exposto:
É importante assinalar que a vedação só existe quando ambos os cargos, empregos ou funções forem remunerados.12
Duas questões habitualmente afloram nessa matéria. Uma diz respeito à possibilidade de exercício simultâneo de dois postos, percebendo-se uma só remuneração; se a Constituição Federal veda a acumulação remunerada, inexiste impedimento legal à acumulação de cargos, funções ou empregos se não houver duas remunerações.13
Não é outro o posicionamento de Edmir Netto de Araújo, para quem:
[...] é que podem ser acumulados cargos, empregos ou funções desde que o agente seja remunerado por apenas uma das atividades excepcionalmente acumuladas, situação esta que era vedada até a vigência da CF de 1946 (que mencionava somente “cargos”), mas que, a partir da de 1967 (quando se inseriu o qualificativo “remunerada”), deixou de ser óbice constitucional. O texto atual, como se viu, repete a circunstância.14
Igualmente, sob a ótica do Estatuto dos Servidores Civis da União, Ivan Barbosa Rigolin:
Em verdade o que a L. 8.112 visa proibir é a remuneração multiplicada de vários cargos. Não haveria qualquer impedimento em eventual acumulação não remunerada de cargos, se isso fosse possível até mesmo por razão horária.15
5. Diante disso, resta evidente que se o servidor tiver mais de um cargo público, mas este segundo, por sua natureza, não for remunerado, não incidirá a proibição constitucional. Neste sentido, no âmbito do TJRS:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE IMPROBIDADE. ACUMULAÇÃO INDEVIDA DE CARGOS PÚBLICOS. SECRETÁRIO MUNICIPAL DA AGRICULTURA E PRESIDENTE DO CONSELHO DE DESENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO. CARGO NÃO REMUNERADO. INEXISTÊNCIA DE ATO DE IMPROBIDADE. É vedada a acumulação remunerada de cargos públicos (art. 37, XVI da CF). A proibição de acumular, sendo uma restrição de direito, não pode ter interpretação ampla. Inexistem óbices constitucionais à acumulação de cargos, funções ou empregos do serviço público desde que o servidor seja remunerado apenas pelo exercício de uma das atividades. No caso, ficou apurado que o cargo de Presidente do Conselho de Desenvolvimento Comunitário - CODECA não era remunerado. Inexistiu, portanto, acumulação indevida de cargo ou função, o fato do réu exercer a função de Secretário de Agricultura e Presidente do CODECA. Não há ato ímprobo imputado ao réu. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70045002516, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 19/10/2011) [grifou-se]
6. Contudo, naquelas situações em que o servidor deixar de perceber a remuneração de um dos cargos como, por exemplo, mediante licença não remunerada, será lícita a acumulação?
A resposta é afirmativa, sendo lícito ao servidor se licenciar do cargo que ocupa, sem remuneração, para ocupar o novo cargo, não incidindo a reprovação trazida pelo art. 37, XVI, da CF, pois embora a licença16 não provocar o rompimento do vínculo jurídico do servidor com a Administração, não haverá o acúmulo de remunerações, afastando a regra proibitiva.
É o que defende José dos Santos Carvalho Filho, verbis:
Desse modo, é perfeitamente legítimo e equânime que o servidor se licencie do cargo anterior ou ajuste a suspensão do contrato de trabalho, sempre sem remuneração (vencimentos ou salário), e seja empossado no cargo ou emprego da nova carreira. Tal situação em nenhuma hipótese ofenderia o art. 37, XVI, da CF, que alude à acumulação remunerada de cargos. Se o mandamento, que tem cunho restritivo, diz que a acumulação vedada é a remunerada, não pode o intérprete ampliar o âmbito da restrição. Na verdade, impedir a investidura do servidor licenciado ou com contrato de trabalho suspenso, sem remuneração, provoca ofensa ao princípio do livre exercício de trabalho, ofício ou profissão, consagrado no art. 5º, XIII, da CF.17
7. No âmbito do TCE-RS, que fiscaliza e controla os atos de admissão e aposentadoria dos servidores, veja-se que há o alinhamento com o posicionamento aqui esposado, conforme segue:
Acúmulo de Cargos. Consulta. Poder Legislativo de Bagé. Servidor que está licenciado, sem ônus aos cofres públicos, do cargo de provimento efetivo e vem a assumir cargo em comissão. A regra constitucional proibitiva do acúmulo cinge-se ao acúmulo remunerado de cargos. Orientação no âmbito estadual. Se, em uma das posições funcionais detidas pelo servidor não há nem o exercício, nem a remuneração, mas apenas a titularidade do cargo, não ocorre o acúmulo vedado pela Constituição Federal. [grifou-se]18
Perfilhado a este entendimento é o que se constata na jurisprudência do TRF da 4ª Região:
ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO CÍVEL. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS. LICENÇA NÃO REMUNERADA. POSSIBILIDADE. - Estando o servidor no gozo de Licença para Tratar de Interesses Particulares, sem remuneração, na forma do art. 91 da Lei n.º 8.112/90, não há falar na vedação à acumulação de cargos públicos, pois o art. 37 da CF é claro ao proibir a acumulação remunerada. [grifou-se]19
8. Por fim, saliente-se que enquanto se aguarda uma decisão do colegiado do STF, pois até então há uma profusão de decisões monocrática, tanto pela aceitação da tese aqui exposta, como em sentido contrário, cita-se recente decisão do ministro Gilmar Mendes, na qual se entendeu pela possibilidade de acumulação nos lindes aqui apresentados:
Isso porque o texto constitucional somente proíbe a acumulação de cargos e empregos públicos quando houver remuneração de ambos. O fato da recorrida estar usufruindo de licença para tratar de interesses particulares não suspende, interrompe ou extingue o vínculo jurídico funcional com a Administração, mas faz desaparecer o óbice constitucional, na medida em que afastada a percepção de remuneração e, portanto, excluído o fato que enseja a proibição. [grifou-se]20
9. Assim, diante do exposto, demonstrou-se que a acumulação lícita de cargos, afora as hipóteses previstas no texto constitucional, é aquela em que não ocorra a percepção simultânea de remunerações. Também se demonstrou o entendimento, bem como, suas razões, para conceber que não configura acumulação ilícita na hipótese do servidor estiver em licença não remunerada de um de seus cargos.
Notas
2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 282.
3 “[...] pelos quaes se prohibe, que seja reunido em uma só pessoa mais de um officio ou emprego, e venca mais de um ordenado”
4 ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 295.
5 “Art. 37 [...] XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI: a) a de dois cargos de professor; b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico; c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas;”
6 Existem outras exceções, como o caso do Juiz, que pode acumular com um cargo/função de magistério, conforme autoriza o artigo 95, parágrafo único, inciso I, da CF. No mesmo sentido, aos membros do Ministério Público é permitida a acumulação de uma função de magistério (artigo 128, parágrafo 5º, inciso II, alínea “d” da CF).
7 Por exemplo: STF, RE 328.109-AgR, voto do Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 22-2-2011, Segunda Turma, DJE de 11-3-2011.
8 Cite-se, como exemplo, a Súmula 246, do TCU, que prevê: “O fato de o servidor licenciar-se, sem vencimentos, do cargo público ou emprego que exerça em órgão ou entidade da administração direta ou indireta não o habilita a tomar posse em outro cargo ou emprego público, sem incidir no exercício cumulativo vedado pelo artigo 37 da Constituição Federal, pois que o instituto da acumulação de cargos se dirige à titularidade de cargos, empregos e funções públicas, e não apenas à percepção de vantagens pecuniárias.”
9 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 417.
10 “Art. 185 - É vedada a acumulação de quaisquer cargos, exceto, a prevista no art. 96, nº I, e a de dois cargos de magistério ou a de um destes com outro técnico ou científico, contanto que haja correlação de matérias e compatibilidade de horário.”
11 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 417.
12 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 509.
13 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 277.
14 ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 295-296.
15 RIGOLIN, Ivan Barbosa. Comentários ao regime único dos servidores públicos civis. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 271.
16 A licença, também chamada de afastamento, “são períodos em que o servidor deixa de exercer atribuições do seu cargo, função ou emprego, por razões apontadas na lei, podendo perceber ou não perceber seus vencimentos.” (MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 279).
17 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 18 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 584.
18 TCE-RS, Parecer da Auditoria - 70/1997, Orgão: 200 - TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RS, Data do Ato: 07/10/1997, Relator: Judith Hofmeister Martins Costa, Processo: 5976-02.00/97-1, Sessão: 40ª Sessão Plenária de 07 de Outubro de 1997.
19 TRF4, APELREEX 5019140-40.2011.404.7100, Quarta Turma, Relator p/ Acórdão Luís Alberto D'azevedo Aurvalle, D.E. 30/01/2013.
20 STF, ARE 755631, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, julgado em 18/06/2013, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-120 DIVULG 21/06/2013 PUBLIC 24/06/2013. Em sentido contrário: STF, AI 799801 / RS - RIO GRANDE DO SUL, AGRAVO DE INSTRUMENTO, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Julgamento: 08/10/2012, Publicação DJe-208 DIVULG 22/10/2012 PUBLIC 23/10/2012.