Resumo: O presente artigo se propõe a traçar o panorama da atividade judiciária no Brasil, com enfoque para o baixo quantitativo de magistrados como um dos fatores preponderantes para a crise de operacionalidade do Poder Judiciário.
Palavras-chave: Morosidade da justiça. Justiça em números. Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Razoável duração do processo. Baixo quantitativo de magistrados. Direito comparado.
1. Introdução
Conforme dispõe o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988, nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito será afastada da apreciação do Poder Judiciário, traduzindo o direito fundamental dos cidadãos a buscarem a tutela dos seus direitos perante os órgãos estatais investidos da função judicante.
Todavia, a norma constitucionalmente declarada não tem sido suficiente para assegurar, no seu aspecto mais substancial, a almejada inafastabilidade da jurisdição. Isso porque, se o cidadão tem garantido o direito de ingressar com sua demanda em juízo, nem sempre tem a certeza de que obterá, em tempo hábil, um provimento capaz de solucionar o litígio. A morosidade do trâmite processual acaba por impedir, por via oblíqua, o acesso do cidadão ao Poder Judiciário.
Sendo assim, para que se possa ter uma visão do contexto no qual se insere a crise na tramitação dos processos, o presente artigo se propõe a traçar o panorama da atividade judiciária no Brasil, com enfoque para o baixo quantitativo de magistrados como um dos fatores preponderantes para a morosidade da justiça.
2. A Crise de Credibilidade do Poder Judiciário
Na visão do ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Velloso[1], a morosidade da Justiça é o seu mal maior, situação que, segundo pontua, leva alguns doutrinadores a afirmarem até mesmo o seu total esclerosamento.
Para Maury R. de Macedo[2], a crise do Poder Judiciário, inicialmente denominada crise do recurso extraordinário, começou por volta de 1926, há quase 90 anos, caracterizando-se pela perpetuação abusiva do trâmite processual, sendo “fomentada a cada instante pela crescente demanda de jurisdição e pela nefasta atividade do litigante de má-fé.”
No entendimento de Sílvio Nazareno Costa, o acúmulo de processos nos fóruns e tribunais, assim como o generoso número de recursos interpostos contra as decisões judiciárias, passou a ser o maior entrave à efetividade e à celeridade processual, gerando descrédito por parte da população nas instituições judiciárias. Nas palavras do autor:
Uma das razões do descrédito social que atinge o Judiciário é sua reconhecida lentidão. Quando alguém leva sua causa ao Juiz, espera dele uma solução definitiva. Se não imediata – porque todos sabem que isso seria impossível – pelo menos com pouca demora.[3]
Pelo exposto, percebe-se que a morosidade da justiça atinge frontalmente o direito do cidadão à prestação jurisdicional, na medida em que este pressupõe o direito a uma decisão tempestiva, efetiva e justa, predicados sem os quais não é politicamente legítimo o sistema processual de um país. O verdadeiro acesso à ordem jurídica justa desqualifica a justiça tardia, que nega o próprio acesso à justiça. Por essa razão, Cândido Rangel Dinamarco salienta que:
O direito moderno não se satisfaz com a garantia da ação como tal e por isso é que procura extrair da formal garantia desta algo de substancial e mais profundo. O que importa não é oferecer ingresso em juízo, ou mesmo julgamento de mérito. Indispensável é que, além de reduzir os resíduos de conflitos não jurisdicionalizáveis, possa o sistema processual oferecer aos litigantes resultados justos e efetivos, capazes de reverter situações injustas. Tal é a idéia de efetividade da tutela jurisdicional, coincidente com a plenitude do acesso à justiça e a do processo civil de resultados.[4]
A lentidão e a ineficiência da justiça impedem a solução do processo em tempo capaz de prevenir distúrbios sociais, o que, alinhado à descrença na atuação do Poder Judiciário, gerada pela perda de credibilidade perante a população, ocasiona a busca por meios inidôneos de resolução dos conflitos de interesses, principalmente com o retorno à auto-tutela. Preocupada com esse tipo de conseqüência, Daniele Comin Martins afirma que:
Podemos dizer que o decréscimo de eficiência e operosidade que se exige para a satisfação da sociedade mostra a insuficiência do Estado na prestação jurisdicional, incentivando-se o descumprimento de leis e gerando o surgimento de formas extrajudiciais e paraestatais na solução dos litígios, com retorno às Leis de Talião.[5]
E essa perda de credibilidade se reflete em números. Em pesquisa realizada pelo Centro Universitário do Distrito Federal – UDF, concluída no ano de 2008, intitulada “Morosidade da Justiça”, sob a coordenação do Professor João Guilherme de Lima Assafim[6], apurou-se que a maioria dos entrevistados (64%) considera o processo judiciário brasileiro moroso.
Interessante aspecto abordado pela pesquisa refere-se ao seguinte: se o processo judiciário é considerado moroso, qual seria, na opinião dos entrevistados, o lapso temporal ideal para a tramitação dos feitos até a sentença judicial?
Ou melhor, para se atender ao disposto no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal, qual seria o tempo razoável de duração do processo, em primeira instância e nas instâncias superiores? Para 74% dos entrevistados a decisão em primeira instância deveria ser prolatada em menos de 1 ano; por sua vez, 20% consideram razoável o prazo entre 1 e 2 anos; e, finalmente, 3% dos entrevistados apontam 2 a 4 anos como prazo aceitável para a conclusão do processo.
Além disso, a pesquisa abordou o lapso temporal considerado razoável para a conclusão do trâmite processual, até seu trânsito em julgado. Neste viés, 48% dos entrevistados recomendaram o prazo ente 1 e 2 anos; 35% indicaram a quadra entre 2 a 4 anos; 11% sugeriram o encerramento do feito em menos de 1 ano; por último, 3% dos entrevistados afirmaram considerar razoável o prazo entre 4 a 10 anos para a decisão final, após esgotados todos os recursos cabíveis.
Todavia, a observação prática permite verificar que os anseios da população parecem estar longe de serem atendidos pela realidade judiciária brasileira. Daí ser urgente enfrentar o problema da lentidão da máquina judiciária com medidas efetivas, as quais possam dotar o processo de maior rapidez e efetividade em sua conclusão. A crença generalizada na inutilidade da defesa dos direitos perante o Poder Judiciário é situação grave e inadmissível no Estado de Direito, exigindo do legislador atuação eficaz no combate à crise.
3. Panorama da Atividade Judiciária no Brasil
Várias são as causas apontadas como determinantes da morosidade judicial. Dentre outras, é possível apontar o crescimento populacional experimentado pelo Brasil nas últimas décadas, desacompanhado do incremento da estrutura judiciária em ritmo capaz de fazer frente à demanda; a desenfreada produção legislativa do Estado, porquanto geradora de insegurança jurídica e, via de consequência, acarretando a incessante busca pela jurisdição; ao lado disso, o uso abusivo de recursos por parte do Poder Público, na chamada resistência ilegítima do Estado em cumprir as determinações judiciais, o que gera a multiplicação do número de processos em andamento nos fóruns e tribunais do país, contribuindo para a morosidade no andamento dos feitos.
Todavia, no que pertine aos limites e objetivos deste artigo, será abordada tão somente a insuficiência do aparelhamento judiciário como fator determinante da crise, de modo a fornecer ao leitor a leitura de acordo com as estatísticas anualmente elaboradas pelo Conselho Nacional de Justiça, comparando-as ainda aos números de países desenvolvidos.
Nesse sentido, para o Ministro Carlos Velloso[7], existem duas causas principais para a morosidade da tramitação processual, quais sejam, o desaparelhamento dos órgãos judiciários, principalmente dos órgãos de primeiro grau, e o excessivo formalismo que decorre das normas procedimentais vigentes. O primeiro problema caracteriza-se, entre outros, pelo reduzido número de juízes em face da crescente distribuição de processos, bem como pela má qualidade do apoio administrativo destinado aos magistrados. Já o segundo refere-se ao excessivo formalismo decorrente das normas procedimentais brasileiras, fomentando não só a burocratização do judiciário, mas também favorecendo a chicana processual.
De fato, o deficiente número de juízes, alinhado aos milhares de cargos vagos da magistratura, demonstra a insuficiência do aparelhamento judiciário, principalmente quando comparado aos números dos países desenvolvidos.
Lastreado em pesquisa realizada em 1998, Sílvio Nazareno Costa[8] nos traz o índice de juízes por habitante em países desenvolvidos, comparando-os com os números brasileiros: Alemanha – 1 juiz para 3.500 habitantes; França – 1 para 5.600; Estados Unidos – 1 para 9.000; Brasil – 1 para 23.090.
Os números se tornam ainda mais dramáticos quando apurada a realidade da Justiça Federal. Segundo relatório realizado em 2013 pelo Conselho Nacional de Justiça, intitulado “Justiça em Números”[9], cujo objeto era a apuração das estatísticas de operacionalidade do Poder Judiciário nas Justiças Federal, Trabalhista e Estadual, a Justiça Federal em todo o Brasil conta com a força de trabalho de 1.714 juízes federais, do que decorre o índice de 1 juiz federal para 111.239 habitantes.[10]
Por outro lado, em melhor proporção do que a apurada na Justiça Federal, mas com dados ainda preocupantes, apurou o Conselho Nacional de Justiça que a Justiça Estadual, somando-se os magistrados de todas as unidades da federação, conta com 11.960 Juízes de Direito, perfazendo a média de 1 juiz estadual para cada 15.947 habitantes.
Nesse sentido, os elementos fornecidos pelo CNJ, nos quais se englobam ainda os números da Justiça do Trabalho, indicaram a média 8,70 juízes para cada grupo de 100.000 habitantes no Brasil. Este número contrasta, por exemplo, com a média de 17,4 juízes para 100.000 habitantes na União Europeia.[11]
Mesmo com a disparidade apurada, é imperioso reconhecer a qualidade da justiça depende da concorrência de outros fatores, não somente do aumento do número de magistrados.[12] Como consabido, o juiz é um ator que não atua sozinho no processo judicial, dependendo de corpo de servidores habilitados, capacitados e ágeis no andamento processual, sendo imprescindível, portanto, uma boa gestão de recursos humanos nos tribunais. Além disso, inegável que os avanços tecnológicos exigem o incremento de medidas logísticas tendentes ao incremento da celeridade na tramitação nos feitos, frisando-se o advento do processo eletrônico, do que decorre a perene necessidade de investimentos em recursos modernos de tecnologia e informática.
4. Conclusão
Com base nos dados apontados, ainda que a carência de juízes não seja fator determinante exclusivo da morosidade do trâmite processual, ao qual se aliam o aumento no quantitativo de demandas, a maior conscientização da população acerca de seus direitos e, também, os emaranhados de um processo civil anacrônico e fomentador da indústria dos recursos, os números apurados pelo CNJ são suficientes para demonstrar a carência no número de magistrados para fazer frente à demanda de um país que caminha para os 200 milhões de habitantes em poucos anos.
Portanto, além de uma vigorosa reforma processual, que se anseia prenunciada pela tramitação do projeto de lei do Novo Código de Processo Civil, faz-se imperioso o incremento da máquina judiciária para atender ao crescente volume processual que lhe é levado. Não se pode pretender que uma mesma estrutura seja capaz de fazer frente ao aumento da busca do cidadão pela prestação jurisdicional. Sem sombra de dúvidas, o aumento do número de juízes mostra-se como uma das medidas cabíveis para evitar o colapso da máquina, mesmo sabendo que, sozinha, não terá o condão de resolver a crise instalada.
5. Bibliografia
ASSAFIM, João Guilherme de Lima. Morosidade da Justiça. Disponível em: <http://www.portalunicsul.com.br/udf/downloads/pesquisas_juridicas>. Acesso em: 20 out. 2013.
BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial [da] República federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03>. Acesso em: 28 out. 2013.
BRASIL. Lei nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973. Diário Oficial [da] República federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 17 jan. 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/5869.htm>. Acesso em: 02 nov. 2013.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/relatorio_jn2013.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2014.
COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 4. ed., São Paulo: Malheiros, 2001.
MACEDO, Maury R. de. A crise do poder judiciário brasileiro. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 2001.
MARTINS, Daniele Comin. Morosidade da justiça: causas e soluções. In: SZKLAROWSKY, Leon Frejda (Coord). Morosidade da justiça. Brasília: Consulex, 2001.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. Atualização de Aricê Moacyr Amaral Santos. 19. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 3.
VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Temas de direito público. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
Notas
[1] VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Temas de direito público. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 57.
[2] MACEDO, Maury R. de. A crise do poder judiciário brasileiro. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 2001, p. 12.
[3] COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 38.
[4] DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 4. ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 798.
[5] MARTINS, Daniele Comin. Morosidade da justiça: causas e soluções. In: SZKLAROWSKY, Leon Frejda (Coord). Morosidade da justiça. Brasília: Consulex, 2001, p. 53.
[6] ASSAFIM, João Guilherme de Lima. Morosidade da Justiça. Disponível em: <http://beta.udf.edu.br/downloads/pesquisas_juridicas/morosidade_da%20_justica.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2014.
[7] VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Temas de direito público. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 57-58.
[8] COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 53.
[9] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/relatorio_jn2013.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2014.
[10] As estatísticas contidas neste trabalho consideram a população brasileira formada por 190.732.694 pessoas, segundo dados colhidos pelo Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE e não leva em conta eventuais questões atinentes à distribuição territorial dos magistrados por todo o Brasil.
[11] Justiça em números: uma análise comparativa entre os sistemas judiciais brasileiro e de países europeus. Revista Democracia Digital e Governo Eletrônico. Curitiba, Janeiro de 2013. Disponível em: <http://buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/observatoriodoegov/article/download/34234/33117>. Acesso em 10 fev. 2014.
[12] Basta verificar, por exemplo, os números dos Estados Unidos da América, cuja média de magistrados por habitante é de 9 para cada 100.000, segundo apontado pelo cientista político Eduardo Graeff, em artigo publicado na mídia eletrônica do Jornal Folha de São Paulo, disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0307200809.htm>. Acesso em 10 fev. 2014.