Resumo: O presente artigo tem por objetivo estudar o dever de proteção dos direitos fundamentais na esfera jurídico-penal e os seus limites, com ênfase no princípio da proibição da proteção insuficiente como parâmetro de controle de constitucionalidade. Os imperativos de tutela dos direitos fundamentais, deduzidos a partir de uma perspectiva objetiva desses direitos, podem ser exercidos sob as mais diversas formas, inclusive por meio de normas de direito penal. Na Constituição brasileira, os imperativos de tutela penal manifestam-se em mandados de criminalização explícitos e implícitos, que conformam a atuação do legislador. De acordo com o princípio da proporcionalidade em sua vertente de proibição da insuficiência, dotado de dignidade constitucional, é vedado ao legislador, em cumprimento do dever de tutelar penalmente determinado direito fundamental, agir de forma desproporcional e estabelecer proteção insuficiente ou diminuir proteção já existente. Assim, a partir de pesquisa e análise doutrinária e jurisprudencial, conclui-se que podem ser declaradas inconstitucionais normas penais que, por insuficiência, atentem contra direitos fundamentais.
Palavras-chave: Imperativos de Tutela Penal. Princípio da Proporcionalidade. Proibição da Proteção Insuficiente.
Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo estudiar el deber de protección de los derechos fundamentales en la esfera penal y sus límites, con énfasis en el principio de prohibición de la protección insuficiente como parámetro de control de constitucionalidad. Los imperativos de la protección de los derechos fundamentales, deducidos a partir de una perspectiva objetiva de esos derechos, puede ejercerse bajo las formas más diversas, incluyendo a través de la legislación penal. En la Constitución brasileña, los imperativos de la tutela se manifiestan en mandados de criminalización explícitos e implícitos, que dan forma a las acciones de la legislatura. De conformidad con el principio de proporcionalidad como prohibición de la insuficiencia, dotado de dignidad constitucional, se sella a la legislatura, en cumplimiento de la obligación de proteger el derecho fundamental, proceder desproporcionadamente y establecer una protección insuficiente o reducir la protección existente. Así, desde la investigación y el análisis de la doctrina y la jurisprudencia, parece que puede ser declarado inconstitucionales ley penal que, por insuficiencia, atenta contra los derechos fundamentales.
Palabras clave: Imperativos de Tutela Penal. Principio de Proporcionalidad. Prohibición de la Protección Insuficiente.
Sumário: INTRODUÇÃO. 1 Imperativos de tutela penal. 1.1 Deveres de proteção dos direitos fundamentais. 1.2 Constituição Penal brasileira. 1.2.1 Mandados explícitos de criminalização. 1.2.2 Mandados implícitos de criminalização. 2 Proibição da insuficiência da tutela penal. 2.1 As duas faces do princípio da proporcionalidade. 2.2 Inconstitucionalidade da insuficiência da tutela penal. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
No contexto dos estudos da teoria dos direitos fundamentais, discute-se o papel do Estado não apenas como violador, mas também como protetor desses direitos. Ora, a atribuição ao Estado do monopólio da força em um ambiente social onde a autodefesa dos particulares é, em princípio, vedada, tem, como contrapartida, um dever de proteção por parte do Estado, o qual deve garantir a proteção de seus cidadãos contra agressões ou ameaças de terceiros (FELDENS, 2012, p. 87). Ademais, o Estado, para desincumbir-se desse dever de proteção, não pode agir de forma desproporcional e estabelecer uma tutela insuficiente ou diminuir proteção já existente.
O objetivo principal do presente trabalho consiste, portanto, em estudar o dever de proteção dos direitos fundamentais na esfera jurídico-penal, bem como discorrer acerca dos limites do exercício desse dever, com ênfase no princípio da proibição da proteção insuficiente como critério de controle de constitucionalidade, seguindo-se uma linha de análise doutrinária e jurisprudencial.
Diante dessas considerações, na seção 1 deste trabalho, serão apresentadas noções preliminares sobre deveres de proteção dos direitos fundamentais em geral e no campo penal e examinadas as manifestações desses deveres na constituição brasileira. Na seção 2, será analisado o princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e de insuficiência, bem como a questão da inconstitucionalidade da tutela penal insuficiente.
1 Imperativos de tutela penal
1.1 Deveres de proteção dos direitos fundamentais
No âmbito dos estudos da teoria dos direitos fundamentais, destaca-se a formulação da dupla perspectiva dos direitos fundamentais, considerados tanto como direitos subjetivos individuais, quanto como conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos. Em outras palavras, reconhece-se nos direitos fundamentais não apenas a função de defesa do indivíduo em face do Estado, mas também uma perspectiva objetiva, como conjunto de valores objetivos de uma comunidade e imposição de obrigação permanente do Estado de concretização e realização dos direitos fundamentais (SARLET, 2011, p. 141-143 e 146).
Como alerta Sarlet, há consenso sobre a existência dessa perspectiva objetiva dos direitos fundamentais na doutrina e na jurisprudência constitucional européia, porém permanecem controvérsias a respeito de seu conteúdo, significado e implicações (2011, p. 142). Revela-se paradigmática, na jurisprudência constitucional européia, a decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha proferida em 1958 no caso Lüth, na qual se assentou que a função dos direitos fundamentais não se limita à de defesa do indivíduo contra atos estatais (perspectiva subjetiva), estabelecendo-se que tais direitos constituem também decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico, e fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos (SARLET, 2011, p. 143)1.
Portanto, contrapõem-se aos direitos a ações negativas (abstenções) do Estado, como direitos de defesa do indivíduo, os direitos a ações positivas por parte do Estado, ou direitos a prestações (ALEXY, 2011, p. 433). Alexy adota um conceito amplo de direitos a prestações estatais, estendendo-o para além dos direitos a prestações fáticas, envolvendo também direitos a prestações normativas, como a proteção por normas de direito penal ou a criação de normas organizacionais e procedimentais. Assim, divide os direitos a prestações em três grupos: direitos a proteção; direitos a organização e procedimento; e direitos a prestações em sentido estrito (2011, p. 442 e 444).
Concebe, portanto, a exigência de ação positiva do Estado relativamente a direitos fundamentais como um direito subjetivo do indivíduo, e não como norma objetiva. Entretanto, o presente trabalho alinha-se à concepção de ações positivas por parte do Estado como, em parte, deveres de proteção, os quais se relacionam com a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais2.
Na lição de Alexy, como direitos a proteção (concebidos como deveres no presente estudo), compreendem-se os “direitos do titular de direitos fundamentais em face do Estado a que este o proteja contra intervenções de terceiros” (2011, p. 450). Tal proteção pode ter diferentes objetos, como a vida, a saúde e tudo o que merece proteção sob o ponto de vista dos direitos fundamentais, por exemplo, a dignidade, a liberdade, a família e a propriedade; bem como pode se manifestar sob as mais diversas formas, como por meio de normas de responsabilidade civil, normas de direito penal, normas processuais, atos administrativos e ações fáticas (2011, p. 450). Mendes e Branco, por sua vez, aludem a direitos à prestação jurídica, que pode consistir na emissão de normas jurídicas penais ou de normas de organização e de procedimento (2012).
Sarlet menciona, como exemplos de deveres de proteção (ou imperativos de tutela) expressos na Constituição Federal por meio de medidas legislativas no campo dos direitos fundamentais, os artigos 5º, caput (menciona expressamente o direito à segurança), e seus incisos XXXII (proteção do consumidor na forma da lei) e XXVIII (dever de assegurar-se a proteção das participações individuais em obras coletivas), e art. 7º, incisos X (proteção do salário, na forma da lei), XXVII (proteção legal contra a automação) e XX (proteção do mercado de trabalho da mulher) (2008, p. 49-50). Ressalta ainda que essa perspectiva objetiva dos direitos fundamentais manifestada em imperativos de tutela ganha destaque na esfera jurídico-penal, porque a proteção jurídico-penal dos direitos fundamentais é um dos importantes meios pelos quais o Estado realiza o seu dever de protegê-los.
1.2 Constituição Penal brasileira
Compreende-se a noção de Constituição Penal, na lição de Feldens, como conjunto de princípios e regras gerais sobre matéria criminal positivados na ordem constitucional que fixam diretrizes normativas voltadas à organização e ao funcionamento do sistema jurídico-penal (2012, p. 60). A Constituição Penal, portanto, estabelece diretrizes de política criminal, consubstanciadas em mandados e proibições, que conformam o exercício da atividade legislativa no âmbito penal. Dessa forma, “o estabelecimento de crimes, penas e descriminalizações não pode ser um ato absolutamente discricionário, voluntarista ou produto de cabalas” (STRECK, 2007, p. 80).
Diante disso, sustenta Feldens que a Constituição e o Direito Penal compartilham uma relação axiológico-normativa com três níveis de interação: “(i) a intervenção penal constitucionalmente proibida, (ii) a intervenção penal constitucionalmente possível e (iii) a intervenção penal constitucionalmente obrigatória (deveres de proteção, na forma de mandados constitucionais de tutela penal)” (2012, p. 65).
Assim, a Constituição funciona como:
(i) limite material do Direito Penal, erigindo barreiras ao processo criminalizador (limite normativo superior); (ii) fonte valorativa do Direito Penal, funcionando como legítimo paradigma na escolha de bens jurídicos suscetíveis de proteção jurídico-penal (fundamento axiológico); (iii) fundamento normativo do Direito Penal, apontando zonas de obrigatória intervenção do legislador penal (limite normativo inferior). (FELDENS, 2012, p. 65, grifo do autor)
Na Constituição Penal brasileira, a intervenção penal obrigatória manifesta-se em mandados de criminalização explícitos e implícitos.
1.2.1 Mandados explícitos de criminalização
A Constituição como fundamento normativo do Direito Penal, conforme visto na seção anterior, não apenas legitima a atividade legislativa, mas também exige intervenção do legislador por meio de normas penais e, em alguns casos, a exigência é expressa (FELDENS, 2012, p. 73).
Feldens anota, como mandados expressos de tutela penal, além da cláusula aberta contida no artigo 5º, inciso XLI, da Constituição Federal de 1988 (“a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”), os seguintes dispositivos constitucionais: artigo 5º, incisos XLII (racismo), XLIII (tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo, bem como possibilidade de qualificar como hediondos alguns crimes), XLIV (ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático); artigo 7º, inciso X (retenção dolosa do salário); artigo 225, §3º (condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente); e artigo 227, § 4º (abuso, violência e exploração sexual da criança e do adolescente) (2012, p. 76-81). Dos mandados citados, apenas o do artigo 7º, inciso X, ainda carece de expressa referência legal.
Ressalte-se que alguns países europeus também adotaram, em suas constituições, fórmulas semelhantes à do Brasil, como Alemanha, Itália, França, Portugal e Espanha (2012, p. 81).
Convém ainda esclarecer que os mandados explícitos de criminalização não possuem eficácia criminalizadora per se, ou seja, não criminalizam condutas, nem cominam sanções penais, mas estabelecem os bens jurídicos a serem penalmente tutelados ou a conduta a ser incriminada pelo legislador, ou seja, configuram paradigma para o exercício (positivo e negativo) da atividade legislativa incriminadora (FELDENS, 2002, p. 87). Representam, portanto, obrigações de cunho positivo direcionadas ao legislador para que edite norma incriminadora ou, quando a norma já existe, obrigação negativa, pois ao legislador é vedado retirar proteção existente, ou diminuí-la de forma desproporcional, como será explanado na seção 2 deste trabalho.
1.2.2 Mandados implícitos de criminalização
Como defendido em 1.1, a partir de uma perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, desponta a obrigação permanente do Estado em protegê-los. O papel do Estado é “defender a sociedade, a partir da agregação das três dimensões de direitos – protegendo-a contra os diversos tipos de agressões” (STRECK, [2007?], p. 13), e sob diversas formas, inclusive por meio de normas penais.
Sobre o dever de proteção na esfera penal3, leciona Roxin que:
(…) o direito penal serve simultaneamente para limitar o poder de intervenção do Estado, mas protege igualmente a sociedade e os seus membros dos abusos do indivíduo. Estes são os dois componentes do direito penal: o correspondente ao Estado de Direito e protetor da liberdade individual, e o correspondente ao Estado Social e preservador do interesse social mesmo à custa da liberdade do indivíduo. (1998, apud STRECK, [2007?], p. 13)
Ainda em sede de doutrina estrangeira, destaca-se o entendimento de Silva-Sánchez: “aunque el tema es discutido, por mi parte me inclino por la existencia de mandatos (constitucionales) relativos de incriminación, una vez constatada la importância del interés y la insuficiencia de los mecanismos extrapenales” (2001, apud FELDENS, 2012, p. 95, grifo do autor).
Distingue-se também o reconhecimento do dever constitucional de tutela penal na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, nos seguintes termos:
De outro lado, não convence a objeção de que não se possa deduzir de uma norma de direito fundamental garantidora de liberdade a obrigatoriedade do Estado de sancionar criminalmente. Se o Estado é obrigado, por meio de uma norma fundamental que encerra uma decisão axiológica, a proteger eficientemente um bem jurídico especialmente importante contra ataques de terceiros, frequentemente serão inevitáveis medidas com as quais as áreas de liberdade de outros detentores de direitos fundamentais serão atingidas (…). [BverfGE, 39, 1]. (tradução ao português recolhida de MARTINS, 2005, apud FELDENS, 2012, p. 93).
Na doutrina brasileira, pouco tempo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, já lecionava Nilo Batista que “o texto constitucional seleciona situações a serem necessariamente tratadas pelo legislador penal, naqueles casos de bens essenciais à vida, à saúde e ao bem-estar do povo: chama-se a isso imposição constitucional de tutela penal” (1991, apud FELDENS, 2012, p. 95-96). Entretanto, os estudos sobre mandados implícitos de criminalização na doutrina nacional desenvolveram-se de forma mais acentuada apenas no século XXI.
Sarlet entende que a função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela “assume destaque na esfera jurídico-penal, já que um dos importantes meios pelos quais o poder público realiza o seu dever de proteção em relação a direitos fundamentais é justamente o da proteção jurídico-penal dos mesmos” (2008, p. 50-51). Nesse sentido, o Direito Penal apresenta-se como instrumento de proteção dos direitos fundamentais (MARMELSTEIN, 2011, p. 458).
Sobressai também a lição de Streck:
Dito de outro modo, a Constituição Federal da República do Brasil estabelece diretrizes de política criminal a serem, necessariamente, seguidas quando da edição de leis penais no exercício da atividade legiferante. Com base em tal premissa, o legislador não é dotado de absoluta liberdade na eleição das condutas que serão alvo de incriminação e nem, tampouco, na escolha dos bens jurídicos que serão objeto de proteção penal. Em decorrência, também não pode o Poder Legislativo deliberar sobre a descriminalização de normas protetivas de bens jurídicos com manifesta dignidade constitucional. ([2008?], p. 12)
É, portanto, vedado ao legislador, em cumprimento do dever de tutelar penalmente determinado direito fundamental, agir de forma desproporcional e estabelecer proteção insuficiente ou diminuir proteção já existente, conforme será esclarecido na seção seguinte.
2 Proibição da insuficiência da tutela penal
2.1 As duas faces do princípio da proporcionalidade
Compreende-se tradicionalmente o princípio da proporcionalidade como instrumento de controle de excessos do Estado (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012), porém, no contexto de desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais, ao tempo em que se reconhece o dever do Estado de agir positivamente na tutela dos direitos fundamentais, para além de uma abstenção em ofendê-los, despontou a concepção do princípio da proporcionalidade como também vedação da insuficiência da proteção de tais direitos. Abandonou-se, assim, o uso sinônimo de regra de proporcionalidade e proibição de excesso (SILVA, 2002, p. 27).
O princípio da proporcionalidade (Verhältnismässingkeitsprinzip) e a ideia de proibição de excesso (Übermassverbot) em relação aos direitos fundamentais eram considerados no constitucionalismo alemão, ainda que não expressos na constituição, como regras aplicáveis a toda a atividade do Estado em decorrência do princípio constitucional do Estado de Direito (STRECK, 2009, p. 73). Nesse plano da proibição de excesso, o princípio da proporcionalidade atua como um dos principais limites às restrições dos direitos fundamentais (SARLET, 2008, p. 54), impondo ao Estado um dever de respeitá-los, abstendo-se de atos que possam ofendê-los. Apresenta-se, portanto, na atualidade, como um dos principais parâmetros de controle da discricionariedade dos atos do Poder Público (BARROSO, 2012).
A aplicação do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso deve levar em consideração três elementos, tradicionalmente elencados pela doutrina como requisitos ou subprincípios: a) da adequação ou conformidade, no sentido de um controle da viabilidade técnica de alcançar o fim almejado por determinado meio; b) da necessidade, como exigência da opção pelo meio restritivo menos gravoso para o direito objeto da restrição; e c) da proporcionalidade em sentido estrito, que exige a manutenção de um equilíbrio entre os meios utilizados e os fins colimados (ou justa medida, de acordo com a terminologia sugerida por Gomes Canotilho) da medida restritiva, já que mesmo uma medida adequada e necessária poderá ser desproporcional (SARLET, 2008, p. 57-58).
Por outro lado, do reconhecimento do dever de proteção (Schutzplicht) dos direitos fundamentais por parte do Estado decorre logicamente a ideia de que as medidas adotadas pelo poder público não podem ser ineficazes, assim, pode-se afirmar que a exigência da eficácia das medidas integra o próprio conteúdo do dever de tutela (FELDENS, 2012, p. 164). Portanto, de acordo com o princípio da proporcionalidade como proibição da insuficiência (Untermassverbot), cuja dignidade constitucional também foi reconhecida pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha em diversas ocasiões, o legislador, para desincumbir-se do dever de proteção no campo dos direitos fundamentais, deve adotar medidas suficientes para promover uma tutela tida por adequada e necessária (FELDENS, 2012, p. 165).
A proibição da insuficiência, embora decorra do dever de proteção, com ele não coincide, pois, na lição de Canaris, correspondem a dois percursos argumentativos diferenciáveis: a) em primeiro lugar, verifica-se se existe um dever de proteção (imperativo de tutela); b) em seguida, analisa-se como o legislador deve realizar esse dever sem descer aquém do mínimo de proteção exigido pela constituição (FELDENS, 2012, p. 166).
Reconhecido um dever de proteção e o seu respectivo objeto, a aplicação do princípio da proporcionalidade como proibição de proteção insuficiente, segundo leciona Sarlet, com apoio em Christian Calliess, ocorre em três etapas, à semelhança da proibição do excesso, mas com as devidas peculiaridades: a) exame da adequação ou idoneidade, no qual se verifica se a medida adotada ou mesmo prevista para a tutela do direito fundamental é apta a proteger de modo eficaz o bem objeto do dever de proteção; b) em seguida, importa averiguar se existe uma concepção de segurança (proteção) mais eficaz, sem que com isso se esteja a intervir de modo mais rigoroso em direitos fundamentais de terceiros; c) no âmbito da terceira etapa (que corresponde ao exame da proporcionalidade em sentido estrito) é preciso investigar se o impacto das ameaças e riscos remanescentes após a efetivação das medidas de proteção é de ser tolerado em face de uma ponderação com a necessidade de preservar outros direitos e bens fundamentais pessoais ou coletivos (2008, p. 62-63).
Dessa forma, a tutela dos direitos fundamentais como proteção do indivíduo frente ao Estado, e através do Estado, uma vez que o cidadão também tem o direito de ver seus direitos fundamentais protegidos em face da violência de outros indivíduos (inclusive por meio do direito punitivo) (STRECK, [2007?], p. 16), deve ser realizada pelo poder público sem excessos (proibição do excesso) e de forma eficaz (proibição da insuficiência). Pugna-se, assim, por uma proteção integral dos direitos fundamentais, sobretudo na esfera penal, nas palavras de Alessandro Baratta:
(...) ampliar la perspectiva del derecho penal de la Constitución en la perspectiva de una política integral de protección de los derechos, significa también definir el garantismo no solamente no sentido negativo, como limite del sistema punitivo, o sea, como expresión de los derechos de protección respecto del Estado, sino tambiém y sobre todo, como garantismo positivo. Esto significa la respuesta a las necesidades de seguridad de todos los derechos; tambiém, de los de prestación por parte del Estado (derechos económicos, sociales e culturales) y no sólo de aquella pequeña, pero importante parte de ellos, que podríamos denominar de derechos de prestación de protección, en particular contra agresiones provenientes de comportamientos delictuosos de determinadas personas. (2004, apud STRECK, 2009, p. 92).
2.2 Inconstitucionalidade da insuficiência da tutela penal
O Estado, na realização de seu dever de proteção dos direitos fundamentais, pode acabar por afligir desproporcionalmente um direito fundamental, aí se compreendendo também o direito do acusado da violação de direitos fundamentais de terceiros. Nesse contexto, o princípio da proporcionalidade atua, tradicionalmente, como critério de controle de constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais, os quais, nesta perspectiva, atuam como direitos de defesa, no sentido de proibições de intervenção (SARLET, 2008, p. 53-54). Assim, como visto anteriormente, o princípio da proporcionalidade, no plano da proibição de excesso, manifesta-se como um dos principais limites às restrições dos direitos fundamentais.
O dever de proteção, por outro lado, também pode restar prejudicado, inclusive na esfera penal, se o Estado: atua aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos; diminui proteção já existente; ou deixa de atuar (omissão total). “Neste sentido, o princípio da proibição de insuficiência atua como critério para aferição da violação de deveres estatais de proteção e dos correspondentes direitos à proteção” (SARLET, 2008, p. 54). Destarte, a insuficiente atuação do Estado no cumprimento dos deveres de tutela penal constitucionalmente estabelecidos (mandados de criminalização explícitos e implícitos) também enseja controle de constitucionalidade. Assim, nas palavras de Streck e Feldens, não há “qualquer blindagem que 'proteja' a norma penal do controle de constitucionalidade (entendido em sua profundidade, que engloba as modernas técnicas ligadas à hermenêutica, como a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto, o apelo ao legislador, etc)” (2006, p. 35).
A corroborar tal entendimento, destaca-se a lição de Mendes, com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha:
Se é certo, por um lado, que a Constituição confere ao legislador uma margem discricionária para a avaliação, valoração e conformação quanto às medidas eficazes e suficientes para proteção do bem jurídico penal, e, por outro, que a mesma Constituição também impõe ao legislador os limites do dever de respeito ao princípio da proporcionalidade, é possível concluir pela viabilidade da fiscalização judicial da constitucionalidade dessa atividade legislativa. O tribunal está incumbido de examinar se o legislador considerou suficientemente os fatos e prognoses e se utilizou de sua margem de ação de forma adequada para a proteção suficiente dos bens jurídicos fundamentais. (2012, p. 328).
Portanto, podem ser consideradas inconstitucionais medidas legislativas na esfera penal que, por excesso ou insuficiência, atentem contra direitos fundamentais. Silva-Sánchez aduz que seria inconstitucional, por exemplo, punir o crime de homicídio com pena de multa (2001, apud FELDENS, 2012, p. 95).
No Brasil, o STF aplicou o princípio da proporcionalidade como proibição da insuficiência da tutela penal em 2006, no julgamento do RE nº 418.376, no qual se pugnava pela equiparação da união estável ao casamento (art. 226, § 3º, CF) para aplicação do art. 170, VII, do Código Penal no caso de união estável do agente com a vítima de estupro, a qual tinha nove anos de idade. O pleno do STF negou, por maioria, provimento ao recurso extraordinário. O Ministro Gilmar Mendes, em seu voto-vista, lembrou o dever do Estado de proteger a criança, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, CF), e esclareceu que a equiparação da união estável ao casamento prevista no art. 226, § 3º, pressupõe uma relação de convivência e afetividade em que homem e mulher de idade adulta, livre e conscientemente, mantêm o intuito de constituírem família. Aludiu a uma espécie de garantismo positivo defendido pela doutrina, em contraponto ao garantismo negativo (proteção contra os excessos do Estado), e concluiu que reconhecer, na situação em julgamento, uma união estável para fins de incidência do art. 170, VII, do Código Penal, caracterizaria típica hipótese de proteção insuficiente por parte do Estado, em um plano geral, e do Judiciário, em um plano específico.
No julgamento da ADI nº 3.112, em 2007, foi declarada a inconstitucionalidade dos parágrafos únicos dos artigos 14 e 15 (inafiançabilidade) e do artigo 21 (vedação da liberdade provisória) da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003 (Estatuto do Desarmamento). Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes aduziu aos mandados constitucionais de criminalização como manifestação da feição objetiva dos direitos fundamentais e, com apoio em Canaris, manifestou-se no sentido de que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição de excessos, mas também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela. Ressaltou, ainda, que:
Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. A ideia é a de que a intervenção estatal por meio do Direito Penal, como ultima ratio, deve ser sempre guiada pelo princípio da proporcionalidade.
A reserva de lei penal configura-se como reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes): a proibição de excesso (Übermassverbot) funciona como limite máximo, e a proibição de proteção insuficiente, (Untermassverbot) como limite mínimo de intervenção legislativa penal.
Abre-se, com isso, a possibilidade do controle da constitucionalidade da atividade legislativa em matéria penal.
Invocou também a classificação doutrinária e jurisprudencial alemã dos deveres de proteção em: a) dever de proibição (Verbotspflicht) de determinada conduta; b) dever de segurança (Sicherheitspflicht) como dever do Estado de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros; e c) dever de evitar riscos (Risikopflicht) para o cidadão em geral mediante a adoção de medidas de proteção ou prevenção por parte do Estado.
A proporcionalidade como vedação à proteção insuficiente também foi mencionada no voto do Ministro Gilmar Mendes, no julgamento pelo pleno do STF do HC nº 106.212, em 2011, como argumento em favor da constitucionalidade do art. 41 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), em razão da necessidade da proteção da mulher face a sua situação de vulnerabilidade no âmbito das relações familiares. Conforme foi assentado no julgamento, referido dispositivo manifesta-se como mecanismo estatal para coibir a violência no seio familiar, nos termos impostos pelo art. 226, § 8º, da Constituição.
Recentemente, o STF, ao julgar em conjunto a ADI nº 4.424 e a ADC nº 19, em setembro de 2012, declarou a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei nº 11.340, de 2006, e, dando interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, e 16, do mesmo diploma normativo, assentou a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico. Destaca-se o voto do Ministro Luiz Fux, o qual aludiu ao princípio da proibição da proteção insuficiente no campo penal:
Sendo estreme de dúvidas a legitimidade constitucional das políticas de ações afirmativas, cumpre estabelecer que estas se desenvolvem também por medidas de caráter criminal. Uma abordagem pós-positivista da nossa Carta Magna infere dos direitos fundamentais nela previsto deveres de proteção (Schutzpflichten) impostos ao Estado. Como o Direito Penal é o guardião dos bens jurídicos mais caros ao ordenamento, a sua efetividade constitui condição para o adequado desenvolvimento da dignidade humana, enquanto a sua ausência demonstra uma proteção deficiente dos valores agasalhados na Lei Maior.
(...)
Uma Constituição que assegura a dignidade humana (art. 1º, III) e que dispõe que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das suas relações (art. 226, § 8º), não se compadece com a realidade da sociedade brasileira, em que salta aos olhos a alarmante cultura de subjugação da mulher. A impunidade dos agressores acabava por deixar ao desalento os mais básicos direitos das mulheres, submetendo-as a todo tipo de sevícias, em clara afronta ao princípio da proteção deficiente (sic) (Untermassverbot). (grifo nosso)
Portanto, o princípio da proibição da insuficiência também vem sendo considerado como critério de controle da constitucionalidade de medidas legislativas na esfera penal na jurisprudência da Corte Constitucional brasileira.