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Desconstruindo a impossibilidade de criação de direitos e deveres pela regulação infralegal

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08/05/2014 às 13:59
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5. Casos concretos de regulação infralegal.

A fim de exemplificar o aqui defendido, de bom alvitre trazer à tona algumas regras expedidas por agência reguladoras que efetivamente criam direitos e deveres e que, por estarem em consonância com a legislação, não ofendem o princípio da legalidade ou o princípio da separação de poderes.

Em primeiro lugar, cita-se a regulamentação da Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel que assegura, para efeitos de cobrança, a continuidade de chamadas sucessivas feitas a partir de um celular num intervalo de dois minutos. Caso uma ligação feita de telefones móveis seja interrompida por qualquer razão e o usuário repeti-la em até dois minutos, essa segunda chamada será considerada parte da primeira, como se a primeira não tivesse sido interrompida. Não haverá limites para a quantidade de ligações sucessivas. Se as chamadas forem interrompidas diversas vezes e forem refeitas no intervalo de até dois minutos, entre os mesmos números de origem e destino, serão consideradas a mesma ligação8.

Vê-se, portanto, que a ficção das chamadas sucessivas prevista na regulamentação da Anatel claramente cria um direito para os consumidores, antes inexistente, no sentido de poderem efetuar uma segunda ligação, no prazo de dois minutos do término da primeira, para o mesmo destinatário, e ter esta última considerada como continuação daquela para fins de tarifação. Simetricamente, foi criado o dever para as prestadoras de considerar essa ficção para efeitos tarifação e cobrança dos valores.

Ora, esse direito específico dos usuários de telefonia móvel não estão previstos na legislação ordinária, mas apenas na regulação infralegal. A legislação ordinária, aliás, apenas prevê, no art. 3º, inciso I, da Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), que “o usuário de serviços de telecomunicações tem direito de acesso aos serviços de telecomunicações, com padrões de qualidade e regularidade adequados à sua natureza, em qualquer ponto do território nacional”.

Dessa forma, concretizando esses valores gerais aprovados pelo Poder Legislativo, a regulação infralegal criou direitos e deveres plenamente válidos, uma vez que se encontram em consonância com a legislação ordinária. Não poderia a regulamentação, como dito, dispor de forma diferente do contido na legislação ordinária, caso esse tema já estivesse especificamente ali tratado, pois, do contrário, haveria modificação legislativa por meio de regulamento, o que não se admite. Contudo, havendo lacuna legislativa, cabe sim à agência reguladora, em consonância com a legislação ordinária e suas competências, criar direitos e deveres a fim de materializar os valores legais e constitucionais.

Em segundo lugar, cita-se a regulamentação da Agência Nacional de Aviação Civil – Anac que prevê o direito do passageiro a facilidades de comunicação, a alimentação adequada e a acomodação em local adequado no caso de atraso de voo, respectivamente, em períodos superiores a uma, duas e quatro horas9.

Esses direitos, mais uma vez, não estão previstos especificamente na legislação ordinária, que, basicamente com fulcro na Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), se resume a garantir a adequada prestação dos serviços e a reparação dos consumidores no caso de sua má prestação. Na verdade, tais direitos, apesar de representarem reparação, não necessariamente cobrem todos os danos sofridos pelo passageiro. É apenas o mínimo ordinário.

De qualquer forma, tais direitos específicos foram criados, juntamente com os respectivos deveres das prestadoras, pela regulação infralegal. Trata-se de criação que, encontrando-se alinhada com o ordenamento jurídico, não modifica qualquer regramento previsto na legislação ordinária. Nesse caso, o poder normativo das agências atua mais uma vez na lacuna deixada pelo Poder Legislativo.

Em terceiro lugar, cita-se a regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel que prevê a necessidade de atendimento presencial a ser providenciado pelas distribuidoras de energia elétrica aos seus consumidores10. Fica criado, pois, o direito do usuário de ser atendido presencialmente e o dever das distribuidoras de fornecer esse tipo de atendimento em cada um dos Municípios de sua atuação.

Da mesma forma como ocorre no exemplo da aviação civil, a legislação setorial de energia elétrica também não trata de atendimento ao consumidor. Tem-se, então, considerando o direito de informação previsto no CDC e buscando até mesmo viabilizar o exercício dos demais direito, que a regulamentação da Aneel claramente criou o referido direito e dever. De fato, entendeu-se que sem esse canal de atendimento os demais direitos restariam prejudicados.

No mesmo sentido, não há que se falar em ofensa ao princípio da legalidade, uma vez que atua a agência dentro de suas competências legais, na lacuna deixada pela legislação ordinária e em consonância com seus ditames.

Em quarto lugar, cita-se a regulamentação da Anatel que prevê a obrigatoriedade de as prestadoras de telefonia fixa na modalidade local concederem crédito ao assinante prejudicado com interrupção do serviço, determinando que, a partir de período superior a trinta minutos num período de vinte e quatro horas, o valor do crédito deve corresponder a um dia do valor da mensalidade11.

O dever de concessão do crédito em referência decorre logicamente da obrigação de continuidade do serviço contida na própria LGT. A consequência para o descumprimento dessa obrigação, contudo, foi criada pela regulação infralegal, consistindo em direitos e deveres para usuários e prestadoras. Estabelece-se, inclusive, que a partir de trinta minutos de interrupção num prazo de vinte e quatro horas, o crédito deveria corresponder a um dia de mensalidade. Ora, sem a regulamentação, a prestadora poderia argumentar que a concessão de crédito deveria corresponder à exata proporção entre o tempo de interrupção e o mês de assinatura. Contudo, dada a existência da regulação infralegal, criou-se um direito para o consumidor e um dever para a prestadora.

Por fim, cita-se a regulamentação da Anatel que prevê o direito de o assinante requerer a suspensão do serviço de banda larga, uma única vez no prazo de dozes meses, pelo período mínimo de trinta dias e máximo de cento e oitenta dias, sem custos.12 Ora mais um vez tem-se uma possibilidade prevista unicamente na regulação infralegal, com clara criação de direitos e deveres.

Portanto, resta claro que o poder normativo das agências não ofende o princípio da legalidade ou da separação dos poderes se, exercido na esfera de competências do órgão, está em consonância com a legislação ordinária e, indo além, não a modifica.


6. Considerações finais.

Em suma, o princípio da legalidade significa que os regulamentos não podem contrariar as leis ou a Constituição. Não significa, contudo – e essa distinção é fundamental –, que os regulamentos não possam trazer disposições ou regras inovadoras no ordenamento jurídico. Ao contrário, é da essência da regulação que se editem regras novas, que constituam direitos e deveres para os agentes regulados e também para os usuários, desde que não sejam contrárias às leis ou à Constituição.

Essa nova sistemática não ofende o princípio da legalidade. Ao contrário, está nele calcada, porquanto os regulamentos encontram fundamento de validade na legislação ordinária. Ocorre que atualmente, cada vez mais as leis trazem fluidez principiológica, conferindo ao ordenamento jurídico infralegal mais flexibilidade para atuação.

Pode-se dizer, então, que os regulamentos das agências reguladoras podem inovar na ordem jurídica, trazendo novos direitos e deveres aos administrados e regulados, desde que não contrariem a legislação ordinária e a Constituição Federal. De fato, o que é vedado à regulação infralegal é modificação da legislação ordinária, sendo plenamente lícito que as agências reguladoras atuem, por meio do seu poder normativo, nas lacunas deixadas pelo Poder Legislativo para, sim, criar direitos e deveres específicos dentro de sua esfera de competências legais, ou seja, relativos aos respectivos setores de atuação, e desde que em consonância com os valores trazidos pela legislação ordinária.


7. Bibliografia

ARAGÃO, Alexandre dos Santos de. Direito dos Serviços Públicos, Forense, 2ª ed.;

Alexy, Robert. Direitos Constitucionais, balanceamento e racionalidade. Ratio Juris. Vol. 16 n° 2, junho de 2003;

BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Ed. Saraiva. 5ª edição. São Paulo. 2003;

BLENDEL, Rodolfo. Introducción al Estudio del Derecho Publico Anglosajón, Editorial Depalma, Buenos Aires, 1947;

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manuel de Direito Administrativo, 17ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007;

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007;

FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. Ed. Malheiros. 1ª edição, 2ª tiragem. São Paulo. 2000;

GARCIA, Elisenda Marlaret I. Servicios Públicos, Funciones Públicas, Garantia de los Derechos de los Ciudadanos: perenidad de las necesidades, tranformaciones del contexto, in Revista de Administración Pública, vol. 145;

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, ed. Forense, 19ª edição;

MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica Jurídica Clássica. Ed. Mandamentos. Belo Horizonte. 2002;

MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Direito das Telecomunicações e Anatel. Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000;

MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução, 2ª ed., São Paulo: RT, 2003, p. 115-116;

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19ª ed., Editora Malheiros;

SALOMÃO Filho, Calixto. Regulação da Atividade Econômica: princípios e fundamentos jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2001.


Notas

1 Art. 6º A Comissão de Valores Mobiliários será administrada por um Presidente e quatro Diretores, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovados pelo Senado Federal, dentre pessoas de ilibada reputação e reconhecida competência em matéria de mercado de capitais. (Redação dada pela Lei nº 10.411, de 26.2.2002)

(...)

§ 7º A Comissão funcionará como órgão de deliberação colegiada de acordo com o seu regimento interno, e no qual serão fixadas as atribuições do Presidente, dos Diretores e do Colegiado. (Incluído pelo Decreto autônomo nº 3.995, de 2001)

(...)

Art . 8º Compete à Comissão de Valores Mobiliários:

(...)

§ 1º O disposto neste artigo não exclui a competência das bolsas de valores com relação aos seus membros e aos valores mobiliários nelas negociados.

§ 2º Ressalvado o disposto no Art. 28 a Comissão de Valores Mobiliários guardará sigilo das informações que obtiver, no exercício de seus poderes de fiscalização.

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§ 1º O disposto neste artigo não exclui a competência das Bolsas de Valores, das Bolsas de Mercadorias e Futuros, e das entidades de compensação e liquidação com relação aos seus membros e aos valores mobiliários nelas negociados. (Redação pelo Decreto nº 3.995, de 31.10.2001)

§ 2º Serão de acesso público todos os documentos e autos de processos administrativos, ressalvados aqueles cujo sigilo seja imprescindível para a defesa da intimidade ou do interesse social, ou cujo sigilo esteja assegurado por expressa disposição legal. (Redação pelo Decreto nº 3.995, de 31.10.2001)

(...)

Art. 9º (...)

§ 6º (VETADO) (Parágrafo incluído pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001)

§ 6º A Comissão será competente para apurar e punir condutas fraudulentas no mercado de valores mobiliários sempre que: (Parágrafo incluído pelo Decreto nº 3.995, de 31.10.2001)

I - seus efeitos ocasionem danos a pessoas residentes no território nacional, independentemente do local em que tenham ocorrido; e (Inciso incluído pelo Decreto nº 3.995, de 31.10.2001)

II - os atos ou omissões relevantes tenham sido praticados em território nacional. (Inciso incluído pelo Decreto nº 3.995, de 31.10.2001)

2CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manuel de Direito Administrativo, 17ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

3 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução, 2ª ed., São Paulo: RT, 2003, p. 115-116.

4 GARCIA, Elisenda Marlaret I. Servicios Públicos, Funciones Públicas, Garantia de los Derechos de los Ciudadanos: perenidad de las necesidades, tranformaciones del contexto, in Revista de Administración Pública, vol. 145, p. 52.

5 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007

6 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, ed. Forense, 19ª edição, págs. 124/125.

7 In BLENDEL, Rodolfo. Introducción al Estudio del Derecho Publico Anglosajón, Editorial Depalma, Buenos Aires, 1947, p. 57.

8 Regulamento do Serviço Móvel Pessoal – SMP, aprovado pela Resolução nº 477/2007, com dispositivo incluído pela Resolução nº 604/2012:

Art. 39-A. Caso haja chamadas sucessivas, consideradas estas as efetuadas entre o mesmo Código de Acesso de origem e de destino, e o tempo compreendido entre o final de uma chamada e o início da seguinte for inferior ou igual a 120 (cento e vinte) segundos, devem ser consideradas como sendo uma única chamada, sem prejuízo da regra aplicável nos art. 55, III e 65, III.

9 Resolução nº 141/2010:

Art. 14. (...)

§ 1º A assistência material consiste em satisfazer as necessidades imediatas do passageiro, gratuitamente e de modo compatível com a estimativa do tempo de espera, contados a partir do horário de partida originalmente previsto, nos seguintes termos:

I - superior a 1 (uma) hora: facilidades de comunicação, tais como ligação telefônica, acesso a internet ou outros;

II - superior a 2 (duas) horas: alimentação adequada;

III - superior a 4 (quatro) horas: acomodação em local adequado, traslado e, quando necessário, serviço de hospedagem.

10Resolução Normativa nº 414/2010:

Art. 177. Toda distribuidora deve dispor de uma estrutura de atendimento adequada às necessidades de seu mercado, acessível a todos os consumidores da sua área de concessão e que possibilite a apresentação das solicitações e reclamações, assim como o pagamento da fatura de energia elétrica, sem ter o consumidor que se deslocar de seu Município.

Art. 178. A distribuidora deve disponibilizar atendimento presencial em todos os Municípios em que preste o serviço público de distribuição de energia elétrica.

11Regulamento do Serviço Telefônico Fixo Comutado – STFC, aprovado pela Resolução nº 426/2005:

Art. 32. Havendo interrupção do acesso ao STFC na modalidade local, a prestadora deve conceder crédito ao assinante prejudicado.

§ 1º Não é devido crédito se a interrupção for causada pelo próprio assinante.

§ 2º O crédito deve ser proporcional ao valor da tarifa ou preço de assinatura considerando-se todo o período de interrupção.

§ 3º O crédito relativo à interrupção superior a 30 (trinta) minutos a cada período de 24 (vinte e quatro) horas deve corresponder, no mínimo, a 1/30 (um trinta avos) do valor da tarifa ou preço de assinatura.

12Regulamento do Serviço de Comunicação Multimídia – SCM, aprovado pela Resolução nº 613/2013:

Art. 67. O Assinante adimplente pode requerer à Prestadora a suspensão, sem ônus, da prestação do serviço, uma única vez, a cada período de doze meses, pelo prazo mínimo de trinta dias e o máximo de cento e vinte dias, mantendo a possibilidade de restabelecimento, sem ônus, da prestação do serviço contratado no mesmo endereço.

§ 1º É vedada a cobrança de qualquer valor referente à prestação de serviço, no caso da suspensão prevista neste artigo.

§ 2º O Assinante tem direito de solicitar, a qualquer tempo, o restabelecimento do serviço prestado, sendo vedada qualquer cobrança para o exercício deste direito.

§ 3º A Prestadora tem o prazo de vinte e quatro horas para atender a solicitação de suspensão e de restabelecimento a que se refere este

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Sobre o autor
Paulo Firmeza Soares

Procurador Federal em Brasília (DF). Pós-graduado em Regulação de Telecomunicações. Pós-graduando em Direito Administrativo e em Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Paulo Firmeza. Desconstruindo a impossibilidade de criação de direitos e deveres pela regulação infralegal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3963, 8 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28041. Acesso em: 28 mar. 2024.

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