Sempre faço duas perguntas aos meus alunos: “quem é a favor do aborto?” e, em seguida, “quem é favor da legalização do aborto?”. Na grande maioria das vezes, os mesmos que levantam a mão para se mostrarem a favor do aborto, levantam também na segunda pergunta, imaginando, assim como os que não se manifestaram, tratar-se de perguntas idênticas. Não são.
Na primeira, quero perguntar quem é a favor da prática do aborto, quem provavelmente praticaria ou, pelo menos, aprovaria. Na outra, muito diferente, quero saber quem seria favorável à liberdade de quem quer realizar o aborto poder fazê-lo com o amparo da lei, mesmo que ele não aprove a prática. É conceder direito a quem quer ter a conduta, independentemente de concordar-se com ela.
A confusão é compreensível. O assunto aborto é delicado e a maioria evita. Se posicionar é arriscado e temeroso, para muitos. Ou, de antemão, já lançam um argumento truculento, nocivo a uma discussão lúcida, inteligente ou científica. E quase sempre a carga religiosa e/ou hipócrita é a marca deste “argumento”.
É preciso deixar muito claro que a lei não pode sofrer influxo religioso já que vivemos em um Estado laico, sem religião e que garante a liberdade de crença, inclusive de não-crença. Como explicar a uma ateia, por exemplo, que ela não pode fazer um aborto e que o fundamento da lei que proíbe é religioso?
Ademais, fechar os olhos para a realidade, que nos mostra que a prática do aborto é constante, independentemente da proibição, inclusive por alguns que, quando perguntei, não levantaram as mãos em nenhuma das perguntas (hipocrisia) é perigoso e se revela uma omissão. Com efeito, as ricas, por exemplo, podem abortar com segurança, em clínicas especializadas. As pobres, muitas delas, morrem tentando abortar de maneira improvisada. E assim seguimos a lógica brasileira de que quem pode pagar, pode fazer, quem não pode se dana.
Já passou da hora de se ter uma discussão lúcida sobre a legalização do aborto no Brasil, sem interferências de ordem religiosa ou de hipócrita. Já houve um primeiro passo, que foi o julgamento da ADPF 54 no Supremo Tribunal Federal que decidiu pela possibilidade do aborto do feto anencéfalo.
A consagração da laicidade impede tanto que o Estado intervenha ou interfira em questões de cunho eminentemente religioso, bem como proíbe que as decisões estatais sejam proferidas sobre influxos de qualquer crença ou religião. Segundo o ministro Marco Aurélio, relator do citado processo: “Paixões religiosas de toda ordem hão de ser colocadas à parte na condução do Estado. (...) Ao Estado brasileiro é terminantemente vedado promover qualquer religião”. Pecado e ilicitude são coisas diferentes.
Há ainda o exemplo de países desenvolvidos, como os Estados Unidos, onde a prática é permitida em muitos de seus estados. Lá não há uma vulgarização da conduta, nem mesmo notícia de qualquer maldição sobre eles. Com uma eventual legalização consciente, lúcida, bem discutida, garante-se, no mínimo, a autodeterminação, o direito da mulher sobre o próprio corpo e a redução no número de mortes de gestantes que tentam abortar. E também uma diminuição na hipocrisia, o que já seria muito vantajoso.