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Aportes críticos a respeito da exigência legal de condicionar ao advento do trânsito em julgado a execução de multa cominada liminarmente no bojo de ação civil pública (art. 12, § 2º, da Lei nº 7.347/1985)

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08/05/2014 às 16:20
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“Imaginar hoje que o juiz seja apenas 'boca da lei', como no século XVIII pretendera Montesquieu, depois de tudo que se escreveu e de todas as vicissitudes que marcaram o trágico século XX, afigura-se, para a grande maioria de nossos juristas, uma grosseira heresia, fruto de ingenuidade, quando não de uma indesculpável ignorância. Este modo de pensar o Direito Processual Civil talvez seja um dos ardis mais astuciosos a impedir sua evolução. Enquanto formos mantidos na ilusão desse falso progresso, estaremos apaziguados e satisfeitos com os prodígios de nossa modernidade, no campo legislativo e doutrinário” – Ovídio A. Baptista da Silva3


3. A possibilidade de execução imediata de multas fixadas em decisões liminares em sede de ação civil pública

De modo geral, tem-se reconhecido a insuficiência do Código de Processo Civil para tutelar eficazmente demandas metaindividuais, uma vez que estruturado “para atender à prestação da tutela jurisdicional em casos de lesões a direitos subjetivos individuais, mediante demandas promovidas pelo próprio lesado46. Por conta disso, a doutrina passou a defender a existência de um microssistema de tutela jurisdicional coletiva47. Segundo Enoque Ribeiro dos Santos:

“No Brasil, a tutela coletiva apoia-se na observação das normas jurídicas do microssistema de tutela jurisdicional coletiva, que tem como núcleo a LACP (Lei n. 7.347/1985) e o CDC (Lei n. 8.078/1990), que definiram um conjunto de conceitos substanciais para impor celeridade e segurança na órbita desses interesses metaindividuais, provendo tratamento diferenciado e peculiar a institutos como a coisa julgada, litispendência, execução da ação condenatória genérica, entre outros”48.

No concernente à disciplina jurídica das tutelas de urgência e efetivação de obrigação de fazer e não fazer, preceitua a LACP:

“LACP, Art. 4º Poderá ser ajuizada ação cautelar para os fins desta Lei, objetivando, inclusive, evitar o dano ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística ou aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

LACP, Art. 11. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor.

LACP, Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo.

(...)

§ 2º A multa cominada liminarmente só será exigível do réu após o trânsito em julgado da decisão favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que se houver configurado o descumprimento” (grifamos).

Não há como deixar de reconhecer que, no que refere à temática abordada, a Lei nº 7.347/1985 suscitou significativo avanço para o contexto jurídico da época. Segundo Marcelo Abelha Rodrigues49, seu art. 4º, por exemplo, presente desde o texto originário, ofertou um quadro mais avançado para a época precisamente nos seguintes aspectos: i) generalizou, para todas as ações civis públicas, a concessão de tutela antecipatória50; ii) previu a possibilidade de um processo sumário satisfativo, sem a estabilização da coisa julgada material, o que até hoje não encontra previsão expressa no Código de Processo Civil; iii) minimizou a importância da distinção técnica entre tutelas cautelares e antecipatórias, já que previu a possibilidade de concessão de ambas.

Quanto ao art. 12, Marcelo Abelha Rodrigues acentua que as previsões de concessão de liminar satisfativa e possibilidade de fixação de multa por descumprimento igualmente representaram significativo avanço para o contexto jurídico de então51.

Outrossim, ousamos discordar da ideia de que “a multa diária imposta liminarmente não se confunde com aquela cominatória imposta na sentença (à semelhança das astreintes do direito francês)52. Em verdade, ambas as multas constituem meios de coação do devedor com vistas ao cumprimento do comando decisório. Possuem a mesma ontologia e a mesma teleologia. São, desse modo, iniludivelmente, típicas “astreintes”, medida coercitiva inspirada no direito francês. Do contrário, aceitar-se-ia no sistema uma incongruência e tanto: haveria mais efetividade para a multa fixada em sentença (art. 11 da LACP53) do que para aquela fixada in limine (art. 12, § 2º, da LACP54), já que, nesta última – exatamente a produzida no rastro de uma tutela de urgência –, a execução da multa, segundo a lei, estaria condicionada ao trânsito em julgado da decisão que favorece ao autor...

Ou seja, haveria um fatídico desestímulo a concessões liminares, o que, pelo menos diante da relevância das temáticas geralmente abordadas em sede de ação civil pública, acarretaria a exposição de interesses metaindividuais a uma situação de grave vulnerabilidade. Esse tipo de intelecção também constitui inaceitável contrassenso técnico em relação ao atual estado da arte em tema de efetividade da tutela jurisdicional, que, como é cediço, tem buscado priorizar justamente soluções preventivas, para o qual os provimentos liminares decerto têm se constituído como ótimas ferramentas de atuação judicante.

Pois bem. No que diz respeito ao Código de Defesa do Consumidor – outro diploma que integra o “núcleo duro” do que se denomina microssistema de tutela processual coletiva –, operou-se importante regramento quanto ao cumprimento de obrigações de fazer e não fazer:

“CDC, Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

(...)

§ 3° Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.

§ 4° O juiz poderá, na hipótese do § 3° ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 5° Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial” (grifamos).

A grande novidade, aqui, consiste na oferta de uma ampla gama de medidas de apoio a fim de que o juiz possa se desincumbir com maior desenvoltura de sua árdua tarefa de efetivar comandos decisórios. Percebe-se, claramente, que o texto do § 5º, do art. 84, do Código de Defesa do Consumidor, foi quase que fielmente reproduzido no § 5º, do art. 461, do Código de Processo Civil, feito realizado pela Lei nº 10.444/2002.

O regramento deste último dispositivo, entretanto, é bem mais avançado, porquanto expressamente prevê – ou, no mínimo, esclarece – que a aplicação de tais medidas independe de qualquer requerimento da parte interessada, podendo ser objeto de deliberação ex officio por parte do magistrado. Não fosse apenas isso, o próprio regramento expresso da antecipação dos efeitos da tutela (CPC, art. 273) tonificou sobremaneira a disciplina do Código de Processo Civil quanto às tutelas de urgência, havendo, por exemplo, agora, previsão de fungibilidade entre as medidas (§ 7º).

Onde pretendemos chegar? Nesta assertiva: hodiernamente, o sistema do Código de Processo Civil, em alguns pontos alusivos às tutelas de urgência e efetivação de obrigação de fazer e não fazer, mostra-se bem mais aprimorado e eficiente que aquele previsto na Lei nº 7.347/1985 (LACP) e na própria Lei nº 8.078/1990 (CDC). Logo, nesse particular, como medida excepcional em relação ao microssistema processual coletivo e no desiderato de prestar tutela efetiva e adequada às demandas metaindividuais, bem assim à luz do expresso permissivo do art. 19 da referida lei específica55, as referidas disposições do Código de Processo Civil se assomam como fonte direta de aplicação normativa.

Segue, nesse mesmo sentido, a explanação de Marcelo Abelha Rodrigues:

“(...) todo o sistema da Lei n. 7.347/1985 foi pensado para ser, à época, extremamente avançado se comparado ao texto primitivo do Código de Processo Civil. Dessa forma, deve-se aplicar à Ação Civil Pública aquelas regras do Código de Processo Civil que puderem ser mais benéficas a seus objetivos, ou seja, à proteção dos interesses metaindividuais. (…) Ora, se há previsão no sistema do Código de Processo Civil de um modelo que pode ser mais benéfico para os conflitos de massa, não há porque não aplicá-lo, no que couber, à Ação Civil Pública”56.

Mais particularmente quanto ao cumprimento de provimentos judiciais emanadores de obrigações de fazer e não fazer, medidas mais corriqueiras em liminares de ações civis públicas, também assim se posiciona Teori Albino Zavascki, in verbis:

“Ressalvadas as peculiaridades inerentes à natureza transindividual do direito a ser satisfeito, as sentenças proferidas na ação civil pública estão subordinadas, na fase de seu cumprimento, ao regime do Código de Processo Civil, como ocorre com qualquer outra sentença proferida em procedimento comum. (…) Em se tratando de obrigação de fazer ou não fazer ou de obrigação de entrega de coisa, , observar-se-á ao dispostos nos arts. 461 e 461-A do Código de Processo Civil”57.

Mas é preciso avançar um pouco mais, de modo a indagar: haveria alguma disposição da Lei nº 7.347/1985 que, pelo menos a priori, não se compatibilizaria com o regramento acima destacado, impondo, com isso, a sua específica incidência – até mesmo por conta do que prevê o próprio art. 19 da referida lei (“naquilo em que não contrarie suas disposições”)?

Finalmente, nossa linha de raciocínio se encontra com o polêmico art. 12, § 2º, da Lei nº 7.347/1985, que assim prescreve:

"Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo.

(…)

§ 2º - A multa cominada liminarmente só será exigível do réu após o trânsito em julgado da decisão favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que se houver configurado o descumprimento" (grifamos).

Trata-se, como se observa, de peculiar preceito de lei, cujo conteúdo – e a exegese que se lhe deve aplicar – demanda especial atenção aquando da incidência das regras que regem a efetivação de obrigações impostas in limine.

Vale recordar que o § 2º acima transcrito, que condiciona ao trânsito em julgado a exigência da multa cominada liminarmente, integra a redação originária conferida à Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, ou seja, cuida-se de regramento normativo gestado em momento anterior ao estabelecimento da nova ordem constitucional – que, como consignamos alhures, inaugurou um novo tempo no tocante à regência jurídica das demandas coletivas. Apesar dos avanços para a ambiência jurídica de antanho, o fato é que restrição de tal monta significou um incômodo ponto negativo na disciplina então impressa ao tema.

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De início, poder-se-ia entrever, então, alguma incompatibilidade entre esse regramento altamente conservador e o novo panorama constitucional exsurgido em 1988, que, como já assentamos, revelou-se altamente favorável à efetividade jurisdicional, inclusive no tocante a discussões jurídicas de jaez metaindividual. Sucede, porém, que esse tratamento acabou sendo reiterado em legislações outras formatadas já sob a égide da Constituição Federal de 1988, mais precisamente no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990, art. 213, § 3º58) e no Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003, art. 83, § 3º59), diplomas legislativos esses que, por óbvio, versam sobre interesses que suplantam aspectos meramente individuais.

É preciso pontuar, porém, desde logo, até mesmo em face do que outrora firmamos, que os dispositivos ora destacados são estritamente pontuais e, por isso, excetivos. Eis o motivo, portanto, de nossa frontal discordância, no particular, quanto à tese defendida por Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., quando propugnam que aquela regra que condiciona a execução da multa cominada liminarmente ao trânsito em julgado da decisão favorável ao autor (Lei nº 7.347/1985, art. 12, § 2º), reiterada no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 213, § 3ª) e no Estatuto do Idoso (art. 83, § 3º), seja aplicada “por analogia ao processo individual, em razão do silêncio do CPC a respeito do assunto60. Ora, seja porque, bem ao contrário do afirmado, inexiste a invocada omissão, seja porque, indevidamente, erige como regra algo que é iniludível exceção ao sistema.

Como argumentamos em linhas transatas, advém da própria logicidade das coisas crer que o poder de impor multa seja naturalmente acompanhado do poder de executá-la frente ao seu descumprimento. Qualquer diretriz violadora dessa regra precisa vir expressa e inequivocamente pontuada no sistema, o que, vale repetir, não é o caso do disciplinado tanto no Código de Processo Civil (âmbito do regramento processual individual) quanto no Código de Defesa do Consumidor (âmbito do regramento processual metaindividual).

Mas, afinal, qual o fundamento de validade dessa previsão tão restritiva? Que valores a informam e qual seu propósito? Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., ao explanarem sobre o art. 12, § 2º, da Lei nº 7.347/1985, aduzem que:

“Trata-se de norma de profundo conteúdo ético: de fato, se o demandado restar como vencedor da demanda, não seria razoável ter de arcar com uma multa determinada para efetivar um direito que, afinal, se mostrou inexistente. Não é justo que alguém que não tenha razão, no caso o demandante, saia do processo mais rico do que entrou, enquanto o vencedor veja seu patrimônio reduzido sem qualquer justificativa. Por isso, o legislador exige a decisão favorável definitiva àquela que se beneficia com a multa, como pressuposto para a sua execução”61.

Reconhecemos, de fato, alguma razoabilidade na preocupação de evitar com que o vencedor da demanda, ao final, veja-se diminuído em seu patrimônio em razão de uma execução plenamente satisfativa tocada à revelia do resultado final do litígio. No entanto, também não soa minimamente razoável lançar aos ombros de quem recebeu chancela judicial de seu pleito, ainda que através de decisão provisória – principalmente quando em defesa de interesses metaindividuais –, assistir ao descumprimento de ordem judicial liminar e, pávido, ser forçado a internalizar, somente para si, todo o ônus do tempo necessário para a emissão de um juízo final de certeza abonador de sua tese, sem ao menos ter a possibilidade de, enquanto mais uma medida coercitiva, deflagrar a cobrança imediata dessa multa outrora cominada.

Reiteramos que, se no campo de processo individual estivéssemos, esse seria um falso dilema, porque vimos que nada obstruiria esse irromper executivo. Entretanto, tratando-se de ação civil púbica e diante da existência de regramento específico condicionando essa cobrança à existência do trânsito em julgado (Lei nº 7.347/1985), há de se perscrutar uma solução que busque atender, na medida do possível, tanto ao valor efetividade quanto ao valor segurança, em uma sadia linha de equilíbrio apta a dar solução adequada para essa complexa questão62. É que, se, por um lado, o réu tem o direito a um mínimo de segurança jurídica, de outro, gravita a favor do autor que mereceu razão em sua pretensão – pouco importa se em sede meramente liminar – o direito a um “processo sem dilações indevidas63. Afinal, como ensina com propriedade Luis Guilherme Marinoni:

“O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva incide sobre o juiz, obrigando-o a interpretar o regramento processual sob a sua luz. Isso significa que ele não pode chegar a uma conclusão que não lhe permita usar a técnica processual indispensável à tutela do direito. Como o seu compromisso é com o direito material e com o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, a partir daí deve interpretar a legislação na busca da técnica processual adequada”64.

Com efeito, é de conhecimento geral que, no sistema brasileiro, impõe-se submeter qualquer enunciado normativo ao crivo dos valores constitucionais65. Desse modo, qualquer disposição legal que limite ou restrinja a eficácia de tutelas de urgência (em processo individual ou coletivo) também poderá, naturalmente, ser objeto dessa parametrização66, sendo que, nesse particular, vige o princípio da interpretação conforme a Constituição, segundo o qual “entre interpretações possíveis, deve-se escolher a que tem mais afinidade com a Constituição67.

Ora, estamos seguros que a disposição contida no § 2º, do art. 12, da Lei nº 7.347/1985, tout court, não padece de irrefreável mácula de inconstitucionalidade. Essa regra, reiterada em diplomas outros já na vigência da Carta Constitucional de 1988 – daí o porquê de falarmos, aqui, de inconstitucionalidade ao invés de não recepção –, funda-se em compreensível preocupação de ordem ética, prestigiando em medida razoável o patrimônio do devedor em prol da segurança jurídica, almejando esterilizar o processo daquelas hipóteses em que o deflagrar executivo, ao fim e ao cabo, logrará enriquecer a quem, no desfecho processual, certificou-se não ter razão.

De qualquer forma, anuímos com as colocações de Cassio Scarpinella Bueno, quando, partindo de uma ótica constitucional, aduz que:

“A regra [art. 12, § 2º, da Lei nº 7.347/1985] merece interpretação que leve em conta o 'modelo constitucional do direito processual civil'. Na exata medida em que o magistrado perceba que o retardo relativo à cobrança da multa arbitrada para compelir o réu a acatar a ordem por ela emanada, inclusive liminarmente, pode comprometer a 'efetividade do processo', ele pode antecipar seus efeitos típicos e determinar sua cobrança imediata”68.

O que propomos, destarte, defronte desse impasse, é que o § 2º, do art. 12, da Lei nº 7.347/1985, para não ser reputado como reprodutor de regra inconstitucional, mereça exegese que produza norma jurídica consentânea com o princípio da efetividade da tutela jurisdicional. Descartando aquilo que a fria letra da lei parece de pronto nos propor e à luz de uma interpretação constitucionalmente adequada, sugerimos uma análise menos afoita, sensível ao ponto de captar a ideia de que, no fundo, o referido enunciado normativo, longe de proibir a execução imediata, em verdade apenas proíbe execução imediata de cunho satisfativo.

Noutras palavras: o § 2º, do art. 12, da Lei nº 7.347/1985, ao preceituar que “a multa cominada liminarmente só será exigível do réu após o trânsito em julgado da decisão favorável ao autor”, quer significar apenas que, a rigor, a execução dessa espécie de multa, até o advento do trânsito em julgado, não poderá ter caráter de satisfatividade. Ou seja, desde que não haja qualquer deliberação sustando os efeitos da liminar69, a execução imediata da multa é possível, enquanto técnica coercitiva, porém seu processamento de cobrança dar-se-á no compasso de uma execução provisória – ou, no rigor da boa técnica, no compasso de uma execução de título provisório70.

A exegese seria, portanto, idêntica àquela que propusemos para a esfera da disciplina do tema no âmbito do processo civil, máxime porque seria sobremodo inconveniente, na perspectiva do equilíbrio do próprio sistema jurídico, que o regramento processual ligado à execução de provimentos judiciais liminares na esfera do processo individual incorporasse uma disciplina bem mais efetiva que aquela jungida ao processo metaindividual.

E, à evidência, tratando-se de genuína execução de título provisório, nada obstaria, excepcionalmente e dentro das balizas da própria lei, a implementação, em determinados casos concretos, de medidas satisfativas – mas, aqui, reiteramos, já dentro das permissões engendradas cristalinamente na própria lei (CPC, art. 475-O, III e § 2º71).

Mas avancemos algo mais.

Recorde-se que julgar por equidade difere de julgar com equidade. No primeiro caso, visualiza-se o culto liberal de premência da lei em busca de segurança jurídica, proibindo ao julgador, arbitrariamente, afastar-se da lei para fazer valer seu sentimento pessoal de justiça. Sucede, porém, que no paradigma de um Estado Democrático de Direito – ou de um Estado Constitucional72 – e à luz da força normativa da Constituição Federal, importa reconhecer que o agir equitativo é algo mesmo ínsito ao ato de julgar73.

Impõe-se, dessa forma, que toda interpretação e aplicação da lei se dê também – e sempre – com alguma dose de equidade, no sentido de que se transcenda “a justiça abstrata e genérica da lei para alcançar-se a justiça concreta e individualizada do caso74, afinal, “o juiz não é uma máquina silogística, nem o processo, como fenômeno cultural, presta-se a soluções de matemática exatidão. Impõe-se rejeitar a tese da mecanicista aplicação do direito75.

Humberto Ávila enxerga no postulado da razoabilidade três acepções: como equidade, como congruência e como equivalência. A linha intelectiva que se pretende aqui adotar é consentânea com a razoabilidade enquanto vetor de equidade76. E é precisamente nessa toada que esse insigne jurista expõe a distinção entre incidência e aplicação da norma. Eis sua percuciente lição, in verbis:

“Nem toda norma incidente é aplicável. É preciso diferenciar a aplicabilidade de uma regra da satisfação das condições previstas em sua hipótese. Uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas em sua hipótese são satisfeitas. Uma regra é aplicável a um caso se, e somente se, suas condições são satisfeitas e sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência de um princípio que institua uma razão contrária. Nessas hipóteses as condições de aplicação da regra são satisfeitas, masa a regra, mesmo assim, não é aplicada”77.

Eis o ponto: a inconstitucionalidade é fenômeno que não recai sobre o objeto da interpretação (o enunciado legal), mas sobre o produto dela (a norma produzida para o caso concreto)78. Em termos mais simplórios: a inconstitucionalidade é uma mácula que pode recair não apenas sobre o dispositivo normativo, como sói acontecer, mas também sobre o efeito concreto de sua regular aplicação, sendo essa uma realidade jurídica que o jurista não pode desprezar79. E a razoabilidade enquanto vetor de equidade é uma poderosa ferramenta para esse tipo de abordagem.

Deveras, se, por algum motivo, mesmo a execução sem cunho imediatamente satisfativo for insuficiente para atender ao direito a uma tutela jurisdicional adequada do direito material concretamente invocado, nada impede que o magistrado, pontualmente, no específico caso, sem necessidade de pronunciar a inconstitucionalidade, em si, do § 2º, do art. 12, da Lei nº 7.347/1985, apenas reconheça a inconstitucionalidade do efeito concreto de sua incidência diante de determinada demanda, deflagrando, com isso, excepcionalmente, o início de uma execução que, além de imediata, será também intrinsecamente satisfativa – logo, de todo alheia a algumas das amarras contidas no art. 475-O, do CPC.

Não há como fugir do óbvio: na atual quadra da história processual, o anseio por extrair máxima efetividade do sistema deve ser um ideal a perseguir diuturnamente o intérprete. E, aqui, cabe o destaque, uma vez mais, para a abalizada doutrina de Cândido Rangel Dinamarco:

“A afirmação e plena consciência da necessidade de extrair dos provimentos jurisdicionais e do próprio sistema todo proveito que deles seja lícito esperar têm a sua valia na medida em que sejam capazes de conduzir a uma postura mental favorável a essa ideia instrumentalista. Em situações inúmeras e imprevisíveis, coloca-se para o intérprete o dilema entre duas soluções, uma delas mais acanhada e limitativa da utilidade do processo e outra capaz de favorecer a sua efetividade. E pairam ainda no ar muitos preconceitos irracionais que opõem resistência à plenitude da consecução dos objetivos eleitos. É dever do juiz e do cientista do processo, nesse quadro, romper com eles e dispor-se a pensar como mandam os tempos, conscientizando-se dos objetivos de todo o sistema e, para que possam ser efetivamente alcançados, usar intensamente o instrumental processual”80.

Claro que, ao decidir se afastar do regramento legal, incumbe ao magistrado justificar sua decisão e sujeitar seus argumentos ao controle crítico das partes e da sociedade, oportunizando que se faça democrática aferição da razoabilidade de suas colocações e do possível acerto de sua deliberação em tentar concretizar a axiologia constitucional81.

Nem se diga que abraçar essa vertente de ideias implicaria séria afetação da segurança jurídica. Perceba-se que ao preceituar o escopo de alcançar uma sociedade justa (CF, art. 3º, I), o legislador constituinte deixou evidente que a justiça constitui valor que permeia um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Daí se conclui que a segurança jurídica não é o fim do Direito, senão que um de seus instrumentos na busca do justo e do pacificador, de tal forma que, na esteira do que leciona Alvaro de Oliveira:

“Cumpre não identificar (…) o valor da segurança jurídica com a 'ideologia' da segurança, que tem por objetivo o imobilismo social (…) Não mais se busca o absoluta da segurança jurídica, mas a segurança jurídica afetada de um coeficiente, de uma garantia de realidade. Nessa nova perspectiva, a própria segurança jurídica induz a mudança, a movimento, na medida em que ela está a serviço de um objetivo mediato de permitir a efetividade dos direitos e garantias de um processo equânime”82.

Por conta disso, a atividade jurídica há de se pautar na esteira de uma concepção dinâmica de segurança jurídica83, o que também deve permear a dimensão processualística do Direito.

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Sobre o autor
Ney Maranhão

Professor Adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal do Pará (Graduação e Pós-graduação). Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo - Largo São Francisco, com estágio de Doutorado-Sanduíche junto à Universidade de Massachusetts (Boston/EUA). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade de Roma/La Sapienza (Itália). Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Ex-bolsista CAPES. Professor convidado do IPOG, do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA) (Pós-graduação). Professor convidado das Escolas Judiciais dos Tribunais Regionais do Trabalho da 2ª (SP), 4ª (RS), 7ª (CE), 8ª (PA/AP), 10ª (DF/TO), 11ª (AM/RR), 12ª (SC), 14ª (RO/AC), 15ª (Campinas/SP), 18ª (GO), 19ª (AL), 21ª (RN), 22ª (PI), 23ª (MT) e 24 ª (MS) Regiões. Membro do Instituto Goiano de Direito do Trabalho (IGT) e do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA). Membro fundador do Conselho de Jovens Juristas/Instituto Silvio Meira (Titular da Cadeira de nº 11). Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito do Trabalho – RDT (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais). Ex-Membro da Comissão Nacional de Efetividade da Execução Trabalhista (TST/CSJT). Membro do Comitê Gestor Nacional do Programa Trabalho Seguro (TST/CSJT). Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de Macapá/AP (TRT da 8ª Região/PA-AP). Autor de diversos artigos em periódicos especializados. Autor, coautor e coordenador de diversas obras jurídicas. Subscritor de capítulos de livros publicados no Brasil, Espanha e Itália. Palestrante em eventos jurídicos. Tem experiência nas seguintes áreas: Teoria Geral do Direito do Trabalho, Direito Individual do Trabalho, Direito Coletivo do Trabalho, Direito Processual do Trabalho, Direito Ambiental do Trabalho e Direito Internacional do Trabalho. Facebook: Ney Maranhão / Ney Maranhão II. Email: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARANHÃO, Ney. Aportes críticos a respeito da exigência legal de condicionar ao advento do trânsito em julgado a execução de multa cominada liminarmente no bojo de ação civil pública (art. 12, § 2º, da Lei nº 7.347/1985). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3963, 8 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28298. Acesso em: 29 mar. 2024.

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