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Efeitos justrabalhistas da atividade ilícita desempenhada por crianças e adolescentes no Brasil

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17/06/2014 às 18:19
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7 DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE 

Os princípios gerais do direito irradiam-se por todos os segmentos da ordem jurídica, cumprindo o relevante papel de assegurar organicidade e coerência integradas à totalidade do universo normativo de uma sociedade política. (DELGADO, 2009)

Nesse sentido, faz-se necessário observar que o Estado Brasileiro traçou no artigo 5º da Constituição Federal as linhas do Estado Democrático de Direito, nele incluindo o direito à igualdade, onde assim reza: 

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

Segundo Toscano (2004), in “O Princípio da Igualdade”:

A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida de direito, sem que se esqueça, porém, que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal. (grifo meu)

Partindo desse pressuposto, já consagrado, de que a igualdade se opera com a imposição de tratamento desigual aos desiguais, na medida em que se desigualam, fica evidente que a Constituição Federal, ao consagrar a doutrina da proteção integral à criança e adolescente, quis lhes dar tratamento desigual, em razão da sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, tanto que já previu no artigo 228 tratamento desigual, ao considerá-los inimputáveis: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.”.

Tal diferenciação seguiu ratificada pelos diversos diplomas legais, assim como: Código Penal, quando os declarou inimputáveis; Código Civil, quando os considerou relativamente e absolutamente incapazes; Estatuto da Criança e do Adolescente, ao estabelecer prioridade absoluta de atendimento e, por fim, Consolidação das Leis do Trabalho quando previu uma proteção especial ao vedar o labor em horário noturno, e em atividades insalubres ou perigas.

Portanto, inquestionável é a situação em voga, quanto ao tratamento diferenciado que de ser despendido a crianças e adolescentes quanto ao desempenho de atividades laborais ilícitas. Não se deve prestar a estes o mesmo tratamento a que se despende aos maiores e capazes, sob pena de, assim o fazendo, incorrer o operador do direito em violação do princípio da igualdade.

Continua TOSCANO (2004), salientando que:

A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos geneticamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal, quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado.

Sob esse aspecto bem enfatizou LIBERATI e DIAS (2006, p. 101):

É evidente a importância que o Poder Judiciário tem ao dar uma resposta à sociedade acerca de danos experimentados por jovens trabalhadores, como órgão encarregado de solucionar litígios e promover a pacificação social.

(...)

A responsabilidade do magistrado que atua na área da infância e da juventude é muito grande, razão pela qual não pode ater-se apenas à aplicação técnica do direito, pois, em virtude da condição particular de pessoa em desenvolvimento, crianças e adolescentes são dotadas de estados psicológicos peculiares, inerentes a essa idade. Sendo assim, quando chegam a sofrer lesões de índole física ou moral, não podem ser equiparados aos adultos, visto que não possuem o mesmo poder de absorção dos fatos.

Dessa forma, materialmente falando, a igualdade consiste em tratar os desigualmente os desiguais. Logo, patente a necessidade manter um olhar diferenciado à criança e adolescente, quando da interpretação das normas, vez que pessoas reconhecidamente em situação de desenvolvimento físico, mental e psicológico.


8 DOS EFEITOS JUSTRABALHISTAS DA ATIVIDADE ILÍCITA DESEMPENHADA POR CRIANÇA E ADOLESCENTE 

No cenário jurídico atual, doutrina e jurisprudência são unânimes em dizer que somente produz efeitos justrabalhistas o exercício de atividade lícita ou irregular, sendo esta última, a atividade laboral realizada em desrespeito a norma imperativa vedatória do labor em certas circunstâncias, ou envolvente de certos tipos de empregado. Não reconhecem, portanto, a produção de tais efeitos quando do exercício de atividade ilícita, ainda que o executor da mesma seja criança ou adolescente.

Exemplo dessa negativa de reconhecimento de direitos está na OJ 199 da SDI1, do Tribunal Superior do Trabalho, que diz: “É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico.” e nas diversas vozes doutrinárias do nosso país, tal como na de DELGADO (2009, p. 472), que assim leciona: a ordem jurídica brasileira somente confere validade ao contrato que tenha por objeto lícito (art. 145, II, CCB/1916; art. 166, II, CCB/2002).

Complementa ainda o autor: “(...) enquadrando-se o labor prestado em um tipo legal criminal, rejeita a ordem justrabalhista reconhecimento jurídico à relação jurídico-socioeconômica formada, negando-lhe, desse modo, qualquer repercussão de caráter trabalhista. Não será válido, pois contrato laborativo que tenha por objeto trabalho ilícito.” (DELGADO, 2009, p.472)

O mesmo também é repetido por MARTINS (2002, p. 127): “Parece-nos que a responsabilidade trabalhista é a que oferece menor dificuldade. Isto porque o dispositivo constitucional estabelece proibições que objetivam a proteção do menor de dezoito anos, e sua inobservância deve gerar efeitos, pois não se trata de trabalho ilícito.”

Como já asseverado, referidos entendimentos se respaldam na idéia de necessidade de adequação do contrato de trabalho aos elementos jurídico-formais enunciados no direito civilista, que são: capacidade das partes, licitude do objeto, forma prescrita ou não vedada por lei; bem como da idéia de que o exercício de atividade ilícita conspira contra o interesse público, afronta bem social relevante, portanto, indigno de receber a valoração do trabalho e, por conseguinte a tutela justrabalhista. (DELGADO, 2009).

Ocorre, no entanto, que tal entendimento esbarra no próprio ordenamento jurídico vigente, sobretudo no artigo 227, § 3º, inciso II da Constituição Federal, o qual se repete abaixo, que prevê a proteção especial à criança e ao adolescente, inclusive no que diz respeito à garantia dos direitos trabalhistas, conforme já bem refletido no tópico próprio.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

(...)

§ 3º. O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

(...)

II – garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; (grifo meu)

Além disso, como já dito, o ECA elevou a o reconhecimento da criança e do adolescente como sendo pessoa em desenvolvimento à condição de princípio jurídico norteador da interpretação e da aplicação da lei, conforme se vê em seu artigo 6º:

Art. 6º. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento. (grifo meu)

Nesse contexto, observa-se que a Consolidação das Leis Trabalhistas estabeleceu, em seu artigo 8º, que a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais decidirá, conforme o caso, por outros princípios e normas gerais de direitos:

Art. 8.º As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.

Certo é que não há como se interpretar norma trabalhista em desfavor de pessoa pela qual o direito do trabalhista objetiva proteger, bem como em desfavor de pessoa pela qual a Constituição Federal garantiu proteção integral, sobretudo no que tange à garantia dos direitos trabalhistas. Tal assertiva segue corroborada por LIBERATI e DIAS (2006, p. 167) quando assim o dizem: O Direito do Trabalho se desenvolve sob o hábito protetivo, razão jurídica não havendo para se desproteger aquele que tem sua inferioridade potencializada com o fato na menoridade. Não há cotejo justificável à regra crua da lei.

Também há que se considerar que a regra jurídica que objetiva declarar a nulidade de um contrato por ter sido o mesmo celebrado por pessoa absolutamente incapaz ou quando é ilícito o seu objeto, tem como objetivo resguardar a pessoa lesada com o presente contato, não beneficiar aquele que maliciosamente o fez. Assim, também segue entendido por BEVILÁCQUA apud LIBERATI e DIAS (2006, p. 166): Nos contrato bilaterais, se uma das partes é capaz e a outra é incapaz, aquela não pode alegar a incapacidade desta, em seu próprio benefício, porque devia saber com, quem tratava e porque um remédio tutelar instituído em favor do incapaz não poderia ser aplicado em seu detrimento.  

Portanto, diante de tais considerações, vê-se a necessidade de adequação da interpretação atual retro mencionada, sob pena de assim não o fazendo, incorrer o operador do direito em contradição com os fundamentos do Estado democrático de direito - objetivos da República Federativa do Brasil. 

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Outro aspecto a ser observado, que também impõe à aplicação de uma interpretação diferenciada, encontra-se no fato de que inobstante a tentativa de adequação do contrato de trabalho aos elementos jurídico-formais oriundos do Direito Civilista, certo é que, com o fim de salvaguardar a proteção ao trabalhador, coube ao Direito do Trabalho relativizar tais conceitos e aplicabilidade desses elementos, para dar validade ao contrato de trabalho e fazer gerar os seus efeitos.

Por conseguinte, as regras de nulidades previstas no Direito Civil foram modificadas no Direito Trabalhista, sobretudo no que tange à retroação dos seus efeitos, haja vista a necessidade de criação de uma teoria específica de constatação das nulidades daquele ramo jurídico, em face das suas peculiaridades e princípios diferenciados. Assim, o Direito do Trabalho estabeleceu suas próprias regras de nulidade, conforme abaixo.

No que tange ao elemento “capacidade das partes”, acabou-se por aceitar como válido e eficaz o contrato de trabalho celebrado por criança e adolescente mesmo nas hipóteses em que a lei veda a sua pactuação. Nesse aspecto, o faz com base nos fundamentos de prevalência do valor do trabalho, não-enriquecimento sem causa e impossibilidade de devolução do labor já efetivado. (DELGADO, 2009)

Tal entendimento seguiu igualmente demonstrado no dizer de NASCIMENTO apud LIBERATI e DIAS (2006, p. 102):

Se o direito do trabalho se utilizasse aqui dos critérios do direito civil estaria permitindo uma solução injusta. Desse modo, ainda quando o agente é incapaz, os direitos trabalhistas são assegurados ao trabalhador. Três são os principais fundamentos doutrinários que autorizam essa conclusão: Primeiro, o princípio da irretroatividade das nulidades, segundo o qual no contrato de trabalho todos os efeitos se produzem até o momento em que for declarada pela autoridade competente a sua nulidade. Segundo, o princípio do enriquecimento sem causa, segundo o qual o empregador estaria se locupletando ilicitamente do trabalho humano caso pudesse sem ônus dispor do trabalho do incapaz. Terceiro, a impossibilidade da restituição das partes à situação anterior, uma vez que o trabalho é a emanação da personalidade e da força de alguém: uma vez que prestado não pode ser devolvido ao atente, com o que é impossível restituí-lo ao trabalhador, não sendo justo deixá-lo sem a devida reparação. Poderia cogitar-se aqui de meras reparações de direito civil. No entanto seriam de difícil fixação, com o que é mais prático e equânime garantir ao empregado os mesmos direitos, pelo trabalho prestado, assegurados aos demais, nos termos da legislação trabalhista. (grifo meu)

No que tange ao elemento “forma”, no Direito do Trabalho essa regra se manifesta sem a necessidade de qualquer instrumentalização específica obrigatória, de modo que o contrato de trabalho é pacto e não solene, portanto, informal, consensual, podendo ser livremente ajustado, ainda que forma tácita. (DELGADO, 2009)

A relativização fora ainda mais além, alcançando o elemento “objeto lícito”, pois a doutrina acabou de atribuir efeitos justrabalhistas ao trabalho ilícito quando comprovado pelo trabalhador: o desconhecimento do fim ilícito da atividade que realizava; ou quando restasse nítida a dissociação entre o labor prestado e o núcleo da atividade ilícita, a exemplo do servente de prostíbulo. (DELGADO, 2009)

Observe que toda essa teoria fora construída pelo Direito do Trabalho para atender ao Princípio da Proteção do Trabalhador, ou seja, para resguardar ao mesmo a proteção jurídica insculpida pela lei.

Nesses moldes, considerando o reconhecimento, pela doutrina, dos efeitos justrabalhistas à atividade laboral ilícita desempenhada por trabalhador maior e capaz, que desconhecia a finalidade ilícita do seu labor; faz-se imperiosa a concessão da mesma benesse ao trabalhador criança ou adolescente, que exerce atividade laboral ilícita, haja vista o reconhecimento constitucional de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, ou seja, que não alcançara o completo discernimento, tanto que a Lei Maior o tornou inimputável por força do art. 228.

Logo, a produção dos efeitos trabalhistas ao trabalho ilícito desempenhado por criança e adolescente, deriva de uma interpretação sistemática e teleológica das normas postas, donde se extrai a responsabilidade do explorador de criança e adolescente, haja vista de tratar-se o obreiro de pessoa em desenvolvimento, inimputável e que goza de proteção integral do Estado, sobretudo no que tange à preservação da sua dignidade enquanto pessoa humana. Além disso, tal interpretação também tem como base os fundamentos já mencionados de: prevalência do valor do trabalho, não-enriquecimento sem causa e impossibilidade de devolução do labor já efetivado.

Ademais, o próprio artigo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que na interpretação da Lei dever-se-á levar em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos. E a Constituição, por sua vez, autoriza esse tipo de entendimento no art. 5º, § 2º ao dizer: Os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela dotados, ou tratados internacionais em que a república federativa do Brasil seja parte.

Por fim, convém destacar, que a concessão desses direitos trabalhistas a crianças e adolescente não podem ser entendidas como afronta bem social relevante, como tenta crer doutrina e jurisprudência, uma vez que o bem social de maior relevância, no caso, é a proteção integral da criança e do adolescente.

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Sobre a autora
Eliude Santana

Advogada desde 02.06.2008.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTANA, Eliude. Efeitos justrabalhistas da atividade ilícita desempenhada por crianças e adolescentes no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4003, 17 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28326. Acesso em: 28 mar. 2024.

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