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Casamento de pessoas do mesmo sexo: uma análise sob o prisma constitucional

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O PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

Os valores até então sedimentados no ordenamento pátrio relativos à família – essencialmente patrimoniais, religiosos e morais – deram espaço para a afetividade e à realização pessoal como balizas da família e do casamento. Graças ao espaço conquistado na hermenêutica pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, ou seja, a um autêntico movimento de restauração da importância principiológica dos postulados de direito, o direito civil deslocou a relevância de sua codificação para a constitucionalização de seus fundamentos.

Nessa toada, mesmo diante da inexistência de disposições explícitas em código ou em outro diploma legal específico, há substrato normativo suficiente para que se permitam os efeitos jurídicos de uma união civil homoafetiva. Em termos mais claros, pode-se asseverar que a Constituição Federal atualmente proporciona suporte ao próprio casamento homoafetivo.

A respeito dessa verdadeira repersonalização do direito civil, destacam-se as considerações de Marianna Chaves:

Em virtude da constitucionalização do direito civil, observar-se-á que houve superação de tentativas hermenêuticas “ao revés”, cujo intuito era o de compreender a Carta Magna e seus princípios a partir de normas existentes nos diplomas infraconstitucionais, como o Código Civil. A Lei Maior deve nortear todo o sistema jurídico, e não o contrário. Assim, em respeito, inter alia, aos princípios da dignidade humana, liberdade e igualdade, os vínculos homoafetivos merecem ser tutelados tal e qual as relações heterossexuais, em grau de paridade (...). O meio jurídico deve, além de respeitar as normas constitucionais, atender a uma visão mais abrangente da realidade, analisando e discutindo os vários aspectos que emergem dos relacionamentos afetivos, incluído-se os homoafetivos (CHAVES, 2011, p. 34)


A CONVERSÃO DA UNIÃO HOMOAFETIVA EM CASAMENTO

Após a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de reconhecimento dos efeitos jurídicos da união homoafetiva, inclusive sob o prisma da entidade familiar, o próximo passo consiste em esclarecer-se a possibilidade de registro civil do casamento de pessoas do mesmo sexo.

Certa polêmica e divergência verificou-se entre os operadores do direito. Contudo, um raciocínio minimamente comprometido com a coerência sistêmica do ordenamento jurídico certamente nos conduziria à inarredável conclusão de que, quando o STF equivaleu as uniões homoafetivas às uniões estáveis, reprimindo qualquer sorte de discriminação entre elas, a conversão da união homoafetiva em casamento corresponderia a um autêntico exaurimento do propósito constitucional dedicado às uniões estáveis.

Eis o que diz a parte final do art. 226, § 3o, da Constituição:

§ 3o - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Segundo Paulo Roberto Lotti Vecchiatti essa resistência traduz uma “falsa polêmica”, haja vista que:

somente o preconceito (juízo de valor arbitrário) poderia impedir a conversão da união estável em casamento civil pelo simples fato de termos um casal homoafetivo solicitando tal conversão, seja do ponto de vista material, seja do ponto de vista meramente formal, pois temos uma união estável em ambos os casos, donde a união estável deve ser passível de conversão em casamento civil em ambos os casos, seja quando formada por um casal heteroafetivo quanto quando formada por um casal homoafetivo (VECCHIATTI, 2011).

Ocorre que em meio à controvérsia que parecia fazer ressoar no meio jurídico quanto ao casamento de pessoas do mesmo sexo, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ veio a aprovar a Resolução no 175, de 14 de maio de 2013, durante sua 169a Sessão Plenária.

De acordo com a norma, a partir de 16 de maio de 2013, cartórios de todo o País não poderiam mais recusar a celebração de casamentos civis de casais homossexuais sexo ou mesmo deixar de converter em casamento a união estável homoafetiva.

A Resolução, publicada no dia 15 de maio de 2013 no Diário da Justiça Eletrônico (DJ-e) foi festejada por grupos de apoio ao casamento gay e consolida e unifica a interpretação segundo a qual não havia entraves constitucionais ou legais à celebração do matrimônio entre tais indivíduos e ao reconhecimento de todos os seus efeitos.

A título de informação, e dada a manifesta importância do documento, pede-se licença para transcrever sua íntegra, indispensável à continuidade do presente trabalho:

RESOLUÇÃO No 175, DE 14 DE MAIO DE 2013

Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo.

O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições constitucionais e regimentais,

CONSIDERANDO a decisão do plenário do Conselho Nacional de Justiça, tomada no julgamento do Ato Normativo no 0002626- 65.2013.2.00.0000, na 169a Sessão Ordinária, realizada em 14 de maio de 2013;

CONSIDERANDO que o Supremo Tribunal Federal, nos acórdãos prolatados em julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF, reconheceu a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo;

CONSIDERANDO que as referidas decisões foram proferidas com eficácia vinculante à administração pública e aos demais órgãos do Poder Judiciário;

CONSIDERANDO que o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do RESP 1.183.378/RS, decidiu inexistir óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo;

CONSIDERANDO a competência do Conselho Nacional de Justiça, prevista no art. 103-B, da Constituição Federal de 1988;

RESOLVE:

Art. 1o É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.

Art. 2o A recusa prevista no artigo 1o implicará a imediata comunicação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis.

Art. 3o Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.

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Interessante que, quase que predizendo o que viria a ocorrer em um futuro próximo, Paulo Roberto Lotti Vecchiatti chegou a ponderar, em sua obra, o seguinte:

Logo, devido ao reconhecimento pelo Supremo tribunal Federal da união homoafetiva como união estável constitucionalmente protegida e merecedora de “absoluta igualdade” relativamente à união estável heteroafetiva (consoante voto do Min. Ayres Britto), os cartórios de registro civil são obrigados a permitir a conversão da união estável homoafetiva em casamento civil a todos os casais homoafetivos que o desejarem (VECCHIATTI, 2011)

A expedição da Resolução no 175 pelo Conselho Nacional de Justiça certamente trará ainda mais fôlego à discussão já travada quanto ao ativismo do judiciário relativamente ao tratamento de importantes questões sociais a respeito das quais o Poder Legislativo parece vir perdendo espaço, ou ao menos, não vem conseguindo se articular de sorte a fazer prevalecer minimamente seu mister constitucional.

Contudo, ao menos em um primeiro momento, trata-se certamente de um grande salto na regulamentação do tema, ainda mais se considerarmos que, pelo menos em sede doutrinária, a constitucionalização do direito civil acabou por abrir espaço à mitigação da importância dos códigos e dos diplomas positivados na regulação da dinâmica da sociedade.

Apenas a título de registro, a se considerar o lapso que foi necessário para a aprovação do Novo Código Civil, parece-nos que o Poder Legislativo precisa de um verdadeiro trabalho de introspecção para reavaliar a maneira em que vem relegando assuntos de imensurável relevância social.


CONCLUSÃO

Pelo que se demonstrou ao longo do presente trabalho, a Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo paradigma no direito de família, como reflexo das profundas transformações encartadas no Direito Civil, que perdeu espaço como legitimador de relações sociais já há muito consagradas e ansiosas por tratamento adequado.

O reconhecimento do polimorfismo das instituições familiares, tanto pelo Poder Público quanto pelo Poder Judiciário, foi crucial na alteração das concepções jurídicas a respeito do casamento homoafetivo e a sociedade realmente espera dessas instituições resposta aos seus problemas, os quais, sob o ponto de vista da tutela constitucional, não poderiam mais passar despercebidas pelas Cortes superiores de nosso país.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHAVES, Marianna. Homoafetividade e direito:proteção constitucional, uniões, casamento e parentalidade – um panorama luso-brasileiro. Curitiba: Juruá, 2011.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Familias. 8. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, 5o volume: direito de família. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 6.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: famílias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. A Constitucionalidade do Casamento Homossexual. São Paulo: LTr, 2008.

MONTEIRO, Washington de Barros; TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Curso de Direito Civil: Direito de Família. 41. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. v. 2.

MOREIRA, Adilson José. União homoafetiva: a construção da igualdade na jurisprudência brasileira. Curitiba: Juruá, 2011.

NAHAS, Luciana Faísca. União homossexual: proteção constitucional. Curitiba: Juruá, 2011.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, vol.VI:direito de família.8. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 98-100.

Vários autores. Coordenação: Instituto Interdisciplinar de Direito de Família – IDEF. Homossexualidade: discussões jurídicas e psicológicas. Curitiba: Juruá, 2010.

Vários autores. Coordenação: DIAS, Maria Berenice. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Emmanuel Felipe Borges Pereira. Casamento de pessoas do mesmo sexo: uma análise sob o prisma constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3977, 22 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28501. Acesso em: 5 nov. 2024.

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