Filosofia da História do Direito: a criminologia crítica e o legado marxiano

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17/05/2014 às 16:05
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O presente artigo procurou analisar e discutir, do ponto de vista epistemológico, a Criminologia Crítica, sob um viés marxiano, como instrumento de investigação do crime.

Introdução

No campo da Filosofia da História do Direito almejando traçar caminhos teórico-filosóficos para estabelecer uma análise pautada em uma vertente teórica marxiana que surgiu no âmbito do Direito, a “Criminologia Crítica”[1], este artigo tem o objetivo de entender: Quais as características dos comportamentos criminalizados? Quem são os sujeitos e criminalizados pela sociedade? E, finalmente, qual a razão do fracasso histórico do sistema penal brasileiro em conter a criminalidade? A hipótese aqui levantada é a de que, o entendimento das causas desses problemas não podem ser encontrados sem que se considere a filosofia como campo do saber capaz de nos auxiliar na compreensão dessas questões, e mais especificamente, o legado filosófico de Karl Marx. Isso porque, a filosofia é a área do saber que analisa os problemas humanos em sua totalidade e não apenas em seus aspectos particulares, por conseguinte é ela que fornece amparo teórico para compreender, em todos os seus aspectos, o fenômeno da criminalidade.

A Criminologia é um campo do saber jurídico cuja atuação se desenvolve de maneira multidisciplinar, já que ela se utiliza de várias epistemologias como a ética, a filosofia, a história, o próprio direito e as escolas sociológicas[2] para sua fundamentação e, por conseguinte, para a análise do aumento da incidência dos crimes. É um ramo de investigação que visa desvendar o crime problematizando-o, estudando sua origem no conflito social que é onde se relacionam os elementos subjetivos como autor, vítima, testemunhas, instigadores, auxiliadores, etc.

Para se entender o processo de instituição do que é o crime e das políticas criminais recorreremos, a corrente denominada Criminologia Crítica e, a partir dos preceitos de Marx, buscaremos evidenciar a relação dialética existente entre o modo de produção da vida material e o modo de pensar dos homens no sistema capitalista. Importante ressaltar, que o filósofo alemão discorrera em seu Prefácio para a crítica da economia política (1849), sobre esta interrelação infra-superestrutural nos seguintes termos:

na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido (MARX, 1987, pp. 29-30).

Em termos marxianos, isso implica dizer que os problemas investigados pela criminologia têm sua gênese na base material e não na superestrutura capitalista, na superestrutura jurídico-política, por isso o filósofo alemão afirma:

relações jurídicas, tais como forma de estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de ‘sociedade civil’ (bürgerleeche Geselleschaft), seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade burguesa (bürgerleeche Geselleschaft)[3] deve ser procurada na Economia Política (MARX, 1987, p. 29).

Como se vê, estabelecer a análise com fulcro na filosofia e de maneira orientada pela vertente da criminologia crítica exigirá a consideração da relação dialética entre os problemas gerados pelo modo como os homens estabelecem suas relações na produção da vida material, ou seja, pela vida social real e os problemas políticos, jurídicos e espirituais.

Acreditamos que a utilização do método dialético do materialismo histórico será capaz de nos fazer entender o modus operandi das instituições jurídicas e políticas do Estado capitalista e, em especial, a criação da lei penal e o funcionamento do sistema de justiça criminal. Daí o motivo de utilizarmo-nos do método marxiano, que é fundado a partir do princípio da contradição de objetos sociais e no conflito antagônico da relação capital/trabalho assalariado das formações sociais capitalistas. Tal metodologia servirá como instrumento de investigação dos mecanismos de controle social do Estado, estabelecidos pelo sistema legal e efetivados pelos sistemas de repressão judicial, administrativo e policial.

Valendo-se desse princípio metodológico pode-se comprovar a existência de uma natureza seletiva do sistema de justiça criminal, visto que, percebe-se uma seletividade da lei penal voltada para a proteção dos interesses das classes dominantes, e a atuação da justiça penal se concentra na repressão das classes marginalizadas do processo laboral, reforçando a unidade interna entre o modo de produção e as relações políticas de poder do Estado e as formas jurídicas.

É precisamente isso que se pretende demonstrar, ou seja, a importância da análise crítica do problema da criminalidade e a ineficácia das políticas criminais. Isso será possível mediante a investigação das causas da criminalidade que, ao nosso ver tem a sua origem nas relações sociais de produção, apontar perspectivas de revisão/reformulação do sistema penal brasileiro, com vistas a diminuição do índice de criminalidade e por consequência os problemas sociais e políticos oriundos desse fenômeno, tais como a superpopulação carcerária, os homicídios, entre outros.

Nisso residiu a importância desta pesquisa, que uma vez empreendida, poderá servir de fundamento para outros estudos com temáticas sobre a criminalidade e segurança pública, no âmbito da Criminologia Crítica. Soma-se a isso, a possibilidade de contribuir com uma nova forma de análise dos problemas sobre os quais se debruçam essa vertente jurídica, já que os estudos empreendidos a partir da filosofia podem apontar que esses fenômenos sociais não podem ser investigados apenas pelos seus efeitos, mas especialmente, a partir de suas causas e princípios constitutivos.

A Criminologia Crítica se diferencia da criminologia tradicional, porque esta última realiza propostas e indicações técnicas de mudanças normativas da legislação penal com fundamento em disfunções identificadas por critérios de eficiência ou efetividade do controle do crime e da criminalidade, ou seja, ela analise esses fenômenos jurídico-sociais tomando por base os seus efeitos e não suas causas. Nessa perspectiva, a filosofia pode apontar os princípios e fundamentos geradores dos fenômenos tratados por esse campo do saber jurídico criminal e contribuir com uma análise rigorosa e sistematizada desses problemas na seara do Direito e especialmente na supracitada corrente teórica, colaborando para o entendimento de suas causas, que uma vez detectadas poderão ser minimizadas e contribuir com a diminuição do genocídio social advindo do atual sistema penal brasileiro, forjado na relação infra-superestrutural, e, por isso, instituído com a finalidade de manter uma ordem social opressiva e desigual.

A criminalidade e a segurança pública têm mobilizado a opinião pública, por afetar toda a população brasileira independentemente de classe, religião, etnia, sexo, estado civil e cultura. Assim, torna-se premente conhecer, a partir de fundamentos filosóficos, o fenômeno da criminalidade; e compreender as questões que envolvem esse problema generalizado. Assim, para analisar o crime na sociedade contemporânea é necessária uma investigação sistemática, aprofundada e rigorosa tendo vertentes teóricas a filosofia da historia do direito, a criminologia crítica e o legado marxiano.


A Filosofia e a Criminologia

Para realizar a interface entre a Criminologia[4] e a Filosofia devemos conhecer a divisão e classificação didática da Criminologia, que inicialmente foi chamada de Clássica ou tradicional quando a partir de seus estudos creditou ao indivíduo o livre arbítrio, e com isso este passou a ser responsável pelos seus atos. Era um método abstrato-filosófico (pois o contratualismo é uma realidade histórica), definia o crime como um fato jurídico (violação de um direito); destacando que o criminoso possuía livre arbítrio. Tal entendimento era pautado por alguns princípios, entre eles, o da legitimidade do Estado que é o detentor do poder para reprimir a criminalidade, também enfatizou os princípios do bem e do mal, (o comportamento delituoso representa o mal, a sociedade, o bem); da culpabilidade (o fato punível é a expressão de uma atitude interior do sujeito); da prevenção, (a pena não só tem a função de “retribuir”, mas também de “prevenir” o crime, tendo por principio a igualdade por meio da qual a realidade penal se aplica de igual maneira a todos os autores de delitos; do interesse social, (que é o principio do ordenamento penal que protege os interesses comuns a todos). Posteriormente, surgiria, juntamente com a Escola Positiva Italiana, a Criminologia Científica, e com ela o crime passou a ser objeto de investigação científica. O Positivismo é considerado a primeira escola de Criminologia propriamente dita. Com a Revolução Industrial no século XIX, o desenvolvimento do capitalismo e das ciências naturais, bem como o aumento da criminalidade, nasce o estudo científico do crime e, principalmente, do criminoso.

A antropologia de Cesare Lombroso (1835-1909) afirmou a existência do criminoso nato como sendo um ser inferior, atávico, que não evoluiu, com características iguais a uma criança ou a um louco moral, que ainda necessita de uma abertura ao mundo dos valores. Sendo assim, desenvolveu a teoria do “criminoso nato”, segundo a qual uma parte dos criminosos já nascia com uma espécie de disfunção patológica que o levaria, invariavelmente, à prática do crime. Para ele tal disfunção se exteriorizava na aparência e no comportamento do sujeito.

Temos também a sociologia criminal de Enrico Ferri (1856-1929), conhecido com pai da moderna sociologia criminal. Para ele o delito é resultante de diversos fatores: individuais, físicos e sociais. Esse autor entende a criminalidade como fenômeno social. Outro registro importante para a criminologia foi o positivismo moderado de Rafael Garófalo (1852-1934), que apesar de discordar de Lombroso em alguns pontos, reconheceu o significado e a relevância de determinados dados anatômicos. Para ele, o criminoso possui um déficit na esfera moral da personalidade, transmissível de forma hereditária e com conotações degenerativas.

Outra teoria que merece destaque na criminologia foi intitulada Teoria da Anomia, elaborada com base nos estudos dos autores Emilé Durkheim (1858-1917) e Robert king Merton ([1910]-2003), essa vertente enfatiza que o desvio é um fenômeno normal de toda estrutura social. E somente quando são ultrapassados determinados limites, o fenômeno do desvio se torna patológico. A desproporção que pode existir entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios, á disposição dos indivíduos para alcançá-los, está na origem do comportamento desviante.

A criminologia se apresenta diante do universo científico como uma ciência do ser, nesse sentido, não pratica a lógica dedutiva formal do dever ser, em que o resultado é simples somatório de alguns ou múltiplos fatores. Aos estudos iniciais de Garófalo, Lombroso e Ferri, sobre o crime e o comportamento criminoso, foram acrescidos os ensinamentos de Durkheim sobre a normalidade do crime. Da “Escola de Chicago”[5] com suas teorias ecológicas do crime e da criminalidade, vieram a noção de controle social e algumas propostas de intervenção como a “tolerância zero”. Edgar Morin (1921-) com sua teoria dos sistemas complexos, amenizou a polêmica entre os defensores do livre arbítrio e os deterministas. Com os estudos do advogado israelense Benjamim Mendelson, por volta de 1945, a vítima passou a merecer maior atenção dos estudiosos do crime, desmitificando a ideia clássica de que o problema do crime se resumia a uma luta juridicamente balizada entre o Estado e o particular.

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Para realizar o estudo da criminalidade atual e tecer uma análise marxiana do aumento aparente do crime, necessário se faz perceber que o homem conhece a história e é capaz de defini-la na parte e no todo, visualizando a participação do particular no universal na tessitura da história, sem que necessariamente precise ir de encontro às filosóficas perspectivas éticas da contemporaneidade. A citada teoria parece abarcar o instigante problema do contexto de incerteza e angústia, que faz surgir, por vezes, um discurso demagógico propondo como solução para o problema do incremento da criminalidade a elevação das penas para os crimes violentos, por pensar que apenas o aumento das penas e a repressão resolver a questão da criminalidade.

A teoria Criminológica Crítica abarca uma variedade de outras teorias, que apresentam como denominador comum, o foco em processos sociais de larga escala. O conceito de “conflito social” consubstancia o escopo para compreendermos como se estruturam estes processos. Entre elas, destaca-se a teoria do conflito social que confirma seu caráter interdisciplinar apresentando também raízes clássicas na sociologia, reportando-se a autores como Max Weber (1864-1920) e Georg Simmel ([1858]-[1918]), por meio de uma divisão da sociedade em torno de alianças e lutas entre grupos que dispunham de poder político, poder social e prestígio. Autores como Randall Collins (1941-), Ralf Gustav Dahrendorf (1929-2009) e Alfred Lewis Coser ([1913]-[2003]) também estudaram como a assimetria do poder entre grupos em uma sociedade resulta em conflitos por meio dos quais uma minoria é mais influente e luta para manter sua posição.

A Criminologia Crítica tem como referência os escritos de Marx que concebe as fontes do poder como resultantes fundamentalmente do controle dos recursos econômicos, desta sorte, Richard Quinney (1934-) e Young em suas pesquisas procuraram localizar o crime no contexto de uma economia capitalista. Eles entendem que não somente o crime é determinado amplamente pelo comportamento dos poderosos, que criminalizam aquilo que mais ameaça suas posições, mas que o próprio Estado opera para proteger os interesses dos economicamente poderosos[6].

Importante trazer a baila alguns elementos do contexto histórico do surgimento da Criminologia Crítica, destacando que ela surgiu em um período de efervescência política, marcado por movimentos sócio-econômico-culturais de ação radical e reação conservadora, podendo ser identificada no marxismo, quando da tentativa de unir práxis e teoria, tecendo uma crítica ao liberalismo e à neutralidade científica. Nessa concepção, ao analisar a relação entre o crime e a classe dominante percebemos que o sistema jurídico é um instrumento criado para assegurar os interesses da classe dominante por meio do uso da força e da violência, evitando que as classes dominadas se tornem uma ameaça perigosa. Para esta teoria as taxas de crime em muitos Estados podem ser consideradas o reflexo da extensão da coação das classes dominantes na tentativa de se manterem no governo, controlando os meios de produção valendo-se do Estado como seu instrumento de dominação.

A supracitada Teoria defende que os interesses básicos da classe dominante visam preservar a ordem capitalista existente e, para isso, se utilizam do sistema legal para impedir toda e qualquer ameaça à ordem estabelecida. O comportamento individual nesta teoria era considerado uma execução das posições de classe, e a coletividade, em luta, movia a história em que a sociedade capitalista era marcada pelo conflito de interesses das classes antagônicas, assim, por vezes essa corrente marxista apontavam tendências criminosas nas classes sociais baixas e, por outro lado, a classe dominante tentando controlar a criminalidade para manutenção do próprio sistema capitalista.

De acordo com a Criminologia Crítica, o controle do crime no Estado capitalista não está no controle direto do sistema jurídico, mas atua por meio de mecanismos do Estado que tem o papel de defender e sustentar os interesses da classe dominante, tornando o controle do crime uma forma de promoção da sociedade capitalista, constituindo o Estado por vários elementos, tais como: o governo, a administração, os militares, a polícia entre outros. Nesse caso a administração do Estado se dá por sistemas burocráticos e departamentos voltados para a administração das atividades econômicas, culturais e sociais, ficando as forças coercitivas do Estado exercidas pela polícia com atribuição operacional de controlar a violência.

A minoria detentora dos meios de produção é constituída por pessoas que ocupam posições de liderança dentro das instituições que detêm o poder, o controle do crime na sociedade capitalista é exercido por agências escolhidas pela classe dominante para manterem a ordem. Os interesses da classe dominante são assegurados pela prevenção de qualquer desafio à estrutura moral e econômica.

As análises empreendidas nos permitem constatar que para a Criminologia Crítica as armas do controle social estão nas mãos da classe dominante, sendo o controle do crime uma ideia associada a aplicabilidade da prática da lei que é elaborada, articulada e concretizada de acordo com a vontade da classe detentora dos meios de produção.

A Criminologia Crítica possibilita a interpretação do comportamento individual como uma execução das posições de classe, os atores que movem a história são as classes e suas contradições, a coletividade em luta, a relação central que organiza a sociedade capitalista é o conflito inconciliável de interesses das duas classes antagônicas. Assim, aponta tendências criminosas nas classes sociais baixas, enquanto a classe dominante busca controlar a criminalidade no intuito de preservar o próprio capitalismo.

Baseando-se na filosofia da história do direito, podemos traçar uma criminologia crítica capaz de expor o controle do crime no Estado Capitalista, e, nesse sentido a teoria contemporânea indica que a classe dominante não esta no controle direto do sistema legal, mas atua por meio de mecanismos instrumentais fornecidos pelo Estado. Nesse contexto, o papel do Estado na sociedade capitalista é defender os interesses da classe dominante, o controle do crime se torna o maior esquema do Estado na promoção e manutenção da sociedade capitalista. A constituição do Estado por seus vários elementos: o governo, a administração os militares, a polícia, o judiciário, além dos escalões intermediários compõe o corpo burocrático e os departamentos voltados para o exercício econômico, social e cultural, manejando as forças coercitivas, principalmente, o uso das polícias no controle da violência, essas instituições repousam o poder do Estado e é nelas que o poder é manejado pela classe que exerce a liderança dentro de cada instituição forjando-se uma minoria detentora do poder.

De acordo com a teoria da Criminologia Crítica, os trabalhadores também têm interesse na noção de justiça social e querem o retorno concreto pelo seu exercício laboral de forma a terem uma vida digna, dessa forma, se posicionam contrários aos que obtêm uma riqueza por meio da exploração da mais-valia. Para essa corrente criminológica a ideologia burguesa é marcada por tirar proveito afirmando que todos serão recompensados de acordo com sua utilidade e mérito, destacando a punição daqueles que não seguirem as regras, aspirando uma aceitação como se fosse de interesse universal.

O sistema de controle atua por distribuição judicial de recompensas ligadas as punições estabelecidas e estruturadas influenciando a família, e a construção da personalidade do indivíduo, reforçando a cultura no sentido de castigar o desvio e o dissenso, essa cultura contém e reproduz o conhecimento da desumanidade e desemprego, reforçando o estigma da prisão que promoverá o isolamento do indivíduo desviante e impossibilitará sua reinserção social, a criminologia crítica apresenta a contemporaneidade e continuidade dos mecanismos da máquina de controle: origem da conformidade, a minúcia incessante da punição à rebelião na situação de emprego da violência do Estado para controle da ordem social.

O caráter inter e multidisciplinar da filosofia permite pensar a história do direito como o modo de ver, pensar e agir, e mostrar que os fatos e elementos normativos são antagonismos axiológicos e conflitos ideológicos que constroem as relações jurídicas. A partir da perspectiva filosófica proposta, a ciência da história não deve ser dividida em história da natureza e história dos homens. É justamente o argumento de que haja uma dicotomia entre ambas que levará Marx a criticar o sistema hegeliano que por meio da ideologia inverte as relações de vida real, pois, para ele somente a partir da vida real de um povo é possível identificar o desenvolvimento dos reflexos deste processo de vida. Para Marx, estes dois aspectos não podem se separar enquanto existirem homens, posto que, o mais importante é a história dos homens, a “ideologia se reduz ou a uma concepção deturpada ou a uma completa abstração dela. A ideologia é, ela mesma, apenas um dos aspectos desta história” (MARX, 1984, p. 11).

Nos dizeres de Maria Socorro Ramos Militão[7]:

em diversos momentos de sua obra Marx reitera que no lugar dos conhecimentos parcelares – que só reproduzem o esfacelamento do mundo burguês – se faça a reprodução conceitual do todo. Isso porque, para o filósofo alemão, a sociedade não pode ser compreendida pelas visões parcelares do economista, do sociólogo, etc., já que ela é uma totalidade viva e articulada. Uma passagem que ilustra essa defesa da totalidade é aquela em que Marx afirma que a superestrutura não tem história, ou seja, ela não possui uma história própria, autônoma, movida por leis próprias. Assim, por exemplo, a arte não se desenvolve sozinha: movida por forças internas. Ao contrário disso, ela expressa o movimento geral da sociedade, porque se desenvolve numa relação dialética com as transformações ocorridas na vida social, na base material, e não por um desenvolvimento autônomo da literatura.

Por conseguinte, o crime deve ser analisado em suas raízes, a partir do modo como os homens desenvolvem suas relações sociais na produção da sua vida material e não no seu modo de pensar (em seus aspectos ideológicos), já que este é, em última instância, determinado por essas relações sociais. Por conseguinte, o entendimento dos motivos que levam os homens ao crime deve ser buscado na inter-relação dialética entre a estrutura e a superestrutura material.[8]

À luz de uma Criminologia Crítica, é possível entender que a “verdade é o todo” reiterado por seus aspectos contraditórios e históricos da realidade. Assim, para compreender a realidade histórica e seu devir como um processo contraditório, a realidade não se submete a redução de nenhuma de suas partes, ou seja, não pode ser confundida com os seus momentos, posto que é histórica. Assim, também, podemos entender a História do Direito fundamentalmente como a história dos valores que consubstanciaram a estruturação dos conteúdos jurídicos; tornando objeto do conhecimento filosófico do Direito a categoria (Valor) da justiça, entendendo o Direito como um fenômeno histórico-cultural que se apresenta concomitantemente na forma de poder, liberdade e tempo na ordenação das ações humanas para a realização de seus fins na seara do Estado.

O mundo contemporâneo, o Estado e o Direito são marcados e orientados historicamente pelos valores reconhecidos politicamente e positivados pelo sistema jurídico, devendo ser estudados observando-se as instituições como um todo, em suas várias facetas e dimensões histórico-culturais. De certo, o culturalismo Jurídico fornece inúmeros elementos de estudo do desenvolvimento histórico do Direito, vislumbrando-se que o sentido e os valores da cultura condicionam o ordenamento jurídico, o qual é influenciado por sua civilização – entendendo-se esta como uma entidade cultural ampla -, que não estabelece objetivos políticos. Neste aspecto, o Direito considera o Estado como sendo a parte concreta que move a História e agrega valores provenientes da civilização. É ele que a mantem a ordem, a justiça e a soberania e promove uma identificação entre estes elementos. Sobre essa questão, Horta e Ramos (2009) afirmam que, uma vez “tomado por sistema um conjunto ordenado de elementos, a civilização seria (...) o repertório organizado dos seus elementos culturais, o que pressupõe uma consciência avançada de si (...), capaz de ordenar suas próprias partes”[9].

Contudo, ao considerá-lo desse modo, os interpretes do Direito desconsideram o fato de que é a base material, a estrutura, que ergue sobre si mesma uma superestrutura, ou seja, um modo de pensar a luz dos interesses dessa estrutura. Esquece-se que, em termos marxianos, o Estado e o Direito estão na superestrutura, por isso não são fundantes de uma sociedade, mas instituições que dão sustentação jurídica ao modo de produzir a vida material.

Desta maneira, não se pode afirmar que o estudo crítico tem respostas imediatas ao problema criminal, como, equivocadamente, existia na criminologia de base etiológica. Nada obstante seja necessário realizar a (re)construção dos fatos sociais a médio e longo prazos na pesquisa por respostas reais ao problema da criminalidade. Sendo assim, deve-se procurar definir o plano de atuação político-criminal, verificando qual é a sua relação com a criminologia crítica e sua atuação no sistema penal. Para tanto, a política criminal pode ser analisada como os princípios que orientam a ação política de combate a criminalidade. Com o uso dessa técnica será possível dar instrumentos e valores ao legislador/intérprete do direito, justificando politicamente as escolhas estatais no combate ao crime.

Pautando-se nos pressupostos apresentados é possível analisar a realidade brasileira a partir da teoria da Criminologia Crítica, identificando as causas estruturais da criminalidade, a fim de sugerir elementos filosófico-sociais consistes para uma necessária reforma no sistema penal brasileiro capaz de reduzir a superpopulação carcerária. Paira na sociedade o senso comum de que os crimes ocorrem devido a falta de punição, e, por isso normalmente os populares clamam e acreditam na solução por meio de penas graves. Contudo, pesquisas criminológicas apontam que a prevenção dos delitos está relacionada à crença de punição efetiva do Estado. Desta sorte, discussões apontando para diminuição da maioridade penal e constituição de penas mais graves não diminuem os índices da criminalidade.

As penas impondo a segregação do indivíduo criminoso da sociedade poderiam ter uma força coerciva caso o Estado tivesse uma atuação efetiva. Contudo, o Direito penal deverá ser a última ratio e a pena de detenção e reclusão deverá ser imposta em último caso.

Parafraseando (ROXIN, 1998, p.45) a pena deve ser analisada em consonância a outras funções preventivas, sendo assim, para esse autor a prevenção geral e especial seriam instrumentais, para tentar desenvolver no condenado condições de ressocialização, esses pressupostos se justificam por atenderem ao requisito da teoria da pena corresponde à realidade e consiga superá-la deve dar gênese a uma ordem que evidencie um direito penal somente terá força preventiva geral se mantiver a individualidade de quem está sob sua ação.

Para ROXIN, o Direito Penal não se justifica por si só. Ele deve ser meio de se tentar diminuir a intervenção do Estado sobre os direitos individuais. Nesse sentido os atos da sociedade na tentativa de transformar a personalidade do criminoso poderão ser benéficos para a mesma. Sendo assim, a imposição de penas deve ser um último recurso para tentar resolver problemas que as demais searas não solucionaram.

Para (FERRAJOLI, 2002, p. 271) a pena somente se justifica se for menor, menos aflitiva, menos arbitrária que outras reações não jurídicas, que, é lícito supor, se produziriam na sua ausência, e desse modo, o monopólio estatal do poder punitivo é tanto mais justificado quanto mais baixos forem os custos do direito penal em relação aos custos de uma anarquia punitiva É de se salientar, ainda, que aqui novamente se registra a dicotomia de finalidades gerais do Direito Penal. Vê-se - em especial quanto à possibilidade de imposição de penas - que o Direito Penal apresenta uma função preventiva dúplice negativa seja a prevenção geral dos delitos e por outro lado evitar a aplicação de penas arbitrárias, caracterizando uma tensão dialética delimitada no confronto dos interesses coletivos de segurança e os direitos individuais. Essa tensão é positiva para o sistema penal, indicando uma necessidade de equilíbrio de disposições normativas e atuações práticas em torno dos interesses coletivos e individuais.

Parafraseando (GOMES, 1999, p.30) o sistema prisional é um produto caro e reconhecidamente não ressocializa. Devido a superpopulação carcerária a prisão dessocializa, desumaniza de forma cruel cortando o vínculo do indivíduo com a sua família, trabalho, educação, colocando-o em uma escola do crime. Isto posto, é mais do que necessário que se inove o sistema, com a implementação de novas medidas.

Os estudos desenvolvidos pela Criminologia crítica indicam que o grande problema do sistema penal é a superpopulação de presos – que agrava todos os outros problemas. O Brasil, que possui a quarta maior população carcerária do mundo e cujo índice de crescimento do número de encarcerados é o maior verificado atualmente, possui como marca a superlotação generalizada de suas unidades prisionais, acrescido de um sem limite de precariedades institucionais. Hoje, a população carcerária de mais de meio milhão de pessoas, sendo que destas, menos de 1/3 ainda não obteve uma condenação pelo ilícito que lhes é imputado.

Consequência disso é que a suposta função ressocializadora do sistema penitenciário, a qual paradoxalmente seria feita ao largo do convívio em sociedade, torna-se escancaradamente falha: mais de 60% dos presos primários retornam à prisão, o que significa um dos índices de reincidência mais altos do planeta. Com respostas pouco ou nada eficientes na contenção de ilícitos pelo Estado, não é de hoje, portanto, que a estrutura de um sistema criminal calcado no encarceramento das massas vem ruindo.

Em momento algum se questiona a lógica do encarceramento ou suas prováveis consequências: ao contrário, quando estas são evidenciadas em episódios como o de Pedrinhas, ecoa o silêncio das autoridades, como o do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que até o momento sequer se posicionou sobre a situação. Dados da ONU mostraram que dos 550 mil presos do país, 217 mil estão presos em caráter provisório. Soma-se a isso o fato de que boa parte dos detentos condenados ao regime aberto ou semiaberto cumpre a pena em regime fechado, o que contribui –e muito– para o quadro de superlotação dos presídios.

Ao apostar na ostensiva contenção de setores marginalizados, o Estado é responsável pela produção de uma crescente população carcerária, o que inevitavelmente leva a uma também crescente demanda de criação de novos presídios. E não por mera conveniência, a privatização do cárcere surge como solução atrativa para a construção e prestação dos serviços nas unidades. Não à toa o Estado do Maranhão, chefiado por Roseana Sarney, destinou 74 milhões de reais à terceirização ilícita de mão-de-obra nos presídios do estado em 2012.

Além do Maranhão, Estados como São Paulo e Minas Gerais já contam com unidades prisionais geridas pela iniciativa privada. O custo de um preso ou presa varia entre 2 a 4 mil reais mensais para os governos. Custo alto. O Paraná, por exemplo, desistiu do modelo adotado no presídio de Guarapuava ao constatar um aumento de quase 80% nos custos. Expor a questão em termos econômicos é importante para desfazer o mito de que a privatização das unidades prisionais acarreta diminuição de custos para o Estado, mas, para além disso, é preciso atentar para o fato de que a criação de novos presídios ou a privatização não deve ser a diretriz principal no combate à superlotação e ao caos penitenciário brasileiro.

Além disso, a inserção das penitenciárias na lógica de mercado se converge em mais uma forma de desumanização do detento, contribuindo para o quadro de violações de direitos individuais. A grande aprovação da sociedade à severidade punitiva faz da prisão o local em que se materializa não só a punição, como a vingança. E, nas sistemáticas violações aos direitos humanos, torna-se palco de exceção à legalidade.

A invisibilização constante das situações de barbárie presenciadas no cotidiano das cadeias, em que os setores marginalizados seguem sendo o alvo preferencial de nossa política de segurança pública, tem como pano de fundo a demonização de um perfil idealizado do agente criminoso. Quem encarna a figura do "bandido" pertence à parcela da sociedade que só entra no sistema jurídico enquanto réu, reincidente, criminoso; e não como sujeito de direitos.

Negros compõem 60% da população carcerária brasileira, da qual 58% são jovens entre 18 e 29 anos e 77% não passaram do Ensino Fundamental, o que mostra o presídio como verdadeiro mecanismo de detenção e criminalização da população pobre, jovem e negra. Nesse sentido, cabe ressaltar a dificuldade dos mais pobres em ter acesso à assistência jurídica, quadro que também concorre para a ocorrência de rebeliões internas com vistas a exigir melhores condições para o cumprimento das penas.

É preciso salientar, ainda, que o mecanismo de criminalização da população jovem e negra da periferia se expressa também nos altíssimos números de homicídios e violências policiais sofridos por essa parcela da população, como o caso recente ocorrido na periferia de Campinas, em que 12 pessoas menores de 30 anos foram mortas por policiais militares. Tal episódio escancara a incompatibilidade de uma polícia militarizada – ou seja, treinada para combater e eliminar o inimigo – com um Estado democrático de direito.

O sistema carcerário brasileiro é inegavelmente falido, inflado, e incapaz de suportar a grande demanda e de realizar os seus propósitos de ressocialização. Muito pelo contrário, tais ambientes hoje são, na realidade, berços e oportunidades de aperfeiçoamento de esquemas criminosos. Muito embora o cenário seja de esgotamento, o que se observa é uma cruzada cada vez maior por mais encarceramento e um injustificável recrudescimento da máxima segundo a qual "bandido bom é bandido morto".

Questões cruciais como o excesso de presos em caráter provisório, a inconveniência da privatização de presídios e a política de drogas são apenas alguns pontos nos quais deve se debruçar qualquer um que queira propor soluções para o novelo de problemas que a política de encarceramento do Brasil virou.

Por outro lado, o conhecimento de que o cárcere é incapaz de ressocializar, mas capaz de neutralização temporária e de inserção definitiva em carreiras criminosas, não significa que a Criminologia crítica feche os olhos para os problemas do sistema carcerário. Ao contrário de variantes críticas como o neo-realismo, que admite a neutralização e a retribuição justa, ou o idealismo de esquerda, que repropõe a ressocialização para evitar a retribuição,23 a Criminologia crítica considera indispensável a reintegração social do condenado não através do cárcere, mas apesar do cárcere – e a mudança semântica de ressocialização para reintegração social, ao deslocar a atenção do condenado para a relação sujeito/comunidade, não é gratuita: significa reintegrar o condenado em sua classe e nas condições de luta de classes.24 A Criminologia crítica sabe que cárceres melhores não existem – e, por isso, propõe a abolição do sistema carcerário25 –, mas também sabe outras coisas: que toda melhora das condições de vida do cárcere deve ser estimulada, que é necessário distinguir entre cárceres melhores e piores, que não é possível apostar na hipótese de quanto pior, melhor. Por tudo isso, o objetivo imediato é menos melhor cárcere e mais menos cárcere, com a maximização dos substitutivos penais, das hipóteses de regime aberto, dos mecanismos de diversão e de todas as indispensáveis mudanças humanistas do cárcere. III As propostas de reforma da legislação penal O Direito Penal mínimo contém princípios que definem os fundamentos do programa de política criminal da Criminologia crítica, organizados em duas categorias principais: a) princípios jurídicos; b) princípios políticos. Considerando esses princípios, o programa de reforma penal da Criminologia crítica propõe mudanças em duas direções principais: a) no sistema de justiça criminal, um programa de descriminalização e de despenalização radicais; b) no sistema carcerário, um programa de descarcerização radical, com a máxima humanização das condições de vida no cárcere.

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Sobre o autor
Wander Pereira

Pós-Doutorado em Criminologia, Pós-doutorado em História do Direito: Filosofia e Constituição. Doutor e Mestre pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Especialista em Direito e Processo do Trabalho, em Direito Público e Filosofia do Direito. Cirurgião-dentista CRO22510, Advogado OABMG109559 graduações pela UFU. Professor visitante do Pós-Doutorado da UFU. Professor de Direito pro tempore da Faculdade de Direito, da Faculdade de Administração e da Faculdade de Ciências Contábeis, todas da UFU. Professor de Direito nas Faculdades ESAMC e UNIPAC, Professor de Direito na Pós-Graduação da PUC-MINAS.

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