Filosofia da História do Direito: a criminologia crítica e o legado marxiano

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17/05/2014 às 16:05
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1. Propostas de redução do sistema de justiça criminal

1.1. Descriminalização.

O programa de descriminalização da Criminologia crítica é o seguinte: Primeiro, a descriminalização é indicada em todas as hipóteses (a) de crimes punidos com detenção, (b) de crimes de ação penal privada, c) de crimes de ação penal pública condicionada à representação e (d) de crimes de perigo abstrato – sob os seguintes fundamentos: a) violação do princípio de insignificância, por conteúdo de injusto mínimo, desprezível ou inexistente; b) violação do princípio de subsidiariedade da intervenção penal, como ultima ratio da política social, excluída no caso de suficiência de meios não-penais; c) violação do princípio de idoneidade da pena, que pressupõe demonstração empírica de efeitos sociais úteis, com exclusão da punição no caso de efeitos superiores ou iguais de normas jurídicas diferentes; d) violação do primado da vítima, que viabilizaria soluções restitutivas ou indenizatórias em lugar da punição.

Segundo, a descriminalização é indicada nos crimes sem vítima, como o auto-aborto (art. 124, CP), o aborto consentido (art. 125, CP), a posse de drogas (art. 16, L. 6368/76) e outros crimes da categoria mala quia prohibita, sob os seguintes fundamentos: a) violação do princípio de lesão de bens jurídicos individuais definíveis como direitos humanos fundamentais; b) violação do princípio de proporcionalidade concreta da pena, porque a punição agrava o problema social, ou produz custos sociais excessivos, em condenados das classes sociais subalternas, objeto exclusivo da repressão penal.

Terceiro, a descriminalização é indicada nas hipóteses de crimes qualificados pelo resultado, como a lesão corporal qualificada pelo resultado de morte (art. 129, § 3o, CP), sob o fundamento de violação do princípio de responsabilidade penal subjetiva, como imputação de responsabilidade penal objetiva originária do velho versari in re illicita do direito canônico, incompatível com o Estado Democrático de Direito. Quarto, a descriminalização é indicada nas hipóteses do direito penal simbólico, especialmente em crimes ecológicos e tributários, substituídos por ilícitos administrativos e civis dotados de superior eficácia instrumental e social.

1.2. Despenalização.

As propostas de despenalização do programa de reforma penal da Criminologia crítica são as seguintes: a) primeiro, extinguir o arcaico sistema de penas mínimas previsto em todos os tipos legais de crimes, abolido em legislações penais modernas por violar o princípio da culpabilidade e contrariar políticas criminais humanistas: a) viola o princípio da culpabilidade em casos de necessária fixação de pena abaixo do mínimo legal – por circunstâncias judiciais ou legais –, hipóteses em que a pena é ilegal, porque não constitui medida da culpabilidade; b) contraria políticas criminais humanistas fundadas nos efeitos desintegradores, dessocializadores e criminogênicos da prisão;

b) segundo, reduzir a pena máxima de todos os tipos legais de crimes subsistentes, inspirados em concepção de política criminal troglodita anterior a Beccaria, que somente atribuía poder desestimulante do crime à 9 certeza da punição – e não à gravidade da pena, como ainda pensa o legislador brasileiro; c) terceiro, as hipóteses de substitutivos penais ou de extinção da punibilidade devem ser redefinidas na direção da mais ampla despenalização concreta, com o objetivo de evitar os efeitos negativos do cárcere, com ênfase nos seguintes institutos jurídicos: a) o perdão judicial; b) a conciliação; c) a transação penal; d) a suspensão condicional da pena; e) a prescrição, mediante (a) redução dos prazos de prescrição da pretensão punitiva, de natureza arbitrária, (b) desconsideração das causas de interrupção da prescrição retroativa, impossíveis em processos mentais retrospectivos baseados no fluxo imaginário do tempo e (c) institucionalização legal da prescrição retroativa antecipada, por razões de economia processual e de pacificação social; e) extensão legal, por interpretação analógica in bonam partem, da extinção da punibilidade dos crimes tributários pelo pagamento, aos crimes patrimoniais comuns nãoviolentos, nos casos de ressarcimento do dano ou de restituição da coisa;

e) quarto, a despenalização parcial é indicada na hipótese dos crimes hediondos (Lei 9.072/90), mediante cancelamento da ilegal agravação dos limites penais mínimo e máximo dos crimes respectivos, sob os seguintes fundamentos: a) violação do princípio da resposta penal não contingente, pelo qual a lei penal deve ser resposta solene a conflitos sociais fundamentais, gerais e duradouros, com debates exaustivos do Poder Legislativo, partidos políticos, sindicatos e outras organizações da sociedade civil; b) violação do princípio de proporcionalidade abstrata, em que a pena deve ser proporcional ao dano social do crime.

2. Propostas de humanização do sistema penal

2.1. Em primeiro lugar, é indispensável e urgente despovoar o sistema carcerário mediante radical descarcerização realizada por ampliação das hipóteses de extinção, de redução ou de desinstitucionalização da execução penal, em especial nos seguintes casos:

  • promover, em todas as modalidades de livramento condicional, a redução do tempo de cumprimento de pena, pela natureza arbitrária dos prazos legais, assim como a extinção dos pressupostos gerais subjetivos de comportamento satisfatório e de bom desempenho no trabalho, por sua natureza idiossincrática e arbitrária;

  • reformular a remição penal mediante redução da equação de 3 dias/trabalho = 1 dia/pena para 1 dia/trabalho = 1 dia/pena, pela carência de fundamento científico do critério legal, por um lado, e admissão de equivalência entre trabalho produtivo e trabalho artesanal para efeito de remição penal, no caso de inexistência de trabalho produtivo ou equivalente na instituição penal, por outro (art. 126 e §§, LEP);

  • revitalizar o regime aberto, mediante ampliação do limite da pena aplicada para concessão do benefício – de 4 (quatro) para 6 (seis) u 8 (oito) anos, por exemplo –, com correspondentes alterações nos regimes semi-aberto e fechado (art. 33, §2o, a, b, c, CP), para evitar os efeitos negativos da prisão, além da economia de custos;

  • acelerar a progressão de regimes na execução da pena, mediante redução do tempo mínimo de cumprimento de pena no regime anterior – de 1/6 (um sexto) para 1/10 (um décimo) ou 1/12 (um doze avos) da pena, por exemplo –, tendo em vista a natureza arbitrária desses limites mínimos, além de reduzir os efeitos negativos da prisão, por um lado, e excluir o requisito subjetivo de bom desempenho no trabalho (art. 112, LEP) igualmente por sua natureza arbitrária e idiossincrática, por outro.

2.2. Em segundo lugar, garantir o exercício de direitos legais e constitucionais do condenado, como forma de compensação oficial pela injustiça das condições sociais adversas, insuportáveis e insuperáveis da maioria absoluta dos sujeitos selecionados para criminalização pelo sistema penal, mediante prestação dos seguintes serviços públicos: a) instrução geral e profissional, como condição de promoção humana; b) trabalho interno e externo, como condição de dignidade humana; c) serviços médicos, odontológicos e psicológicos especializados, como condição de existência humana.

2.3. Em terceiro lugar, revogar o execrável regime disciplinar diferenciado da Lei 7.210/84, com a redação da Lei 10.792/03, que viola o princípio de humanidade e os princípios constitucionais de dignidade do ser humano e de proibição de penas cruéis.

Essas propostas da Criminologia crítica podem servir de base para um projeto democrático de reforma da legislação penal brasileira, com imediata e necessária redução do genocídio social produzido pelo sistema penal, instituído para garantir uma ordem social desigual e opressiva fundada na relação capital/trabalho assalariado. Mas é impossível concluir sem dizer o seguinte: a Criminologia crítica também sabe que a única resposta para o problema da criminalidade é a democracia real, porque nenhuma política criminal substitui políticas públicas de emprego, de salário digno, de moradia, de saúde e, especialmente, de escolarização em massa – infelizmente, impossíveis no capitalismo.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exposto, pode-se inferir que a criminalidade não pode ser observada pontualmente, analisando somente a incidência do indivíduo no fato típico, ilícito e culpável. O envolvimento de um indivíduo com o crime é uma consequência das mazelas sociais que afligem as classes subalternas, que se encontram subjulgadas pelos exploradores da mais-valia marxiana. É evidente que a grande maioria dos comportamentos criminalizados, à luz da Criminologia Crítica, são aqueles que de alguma forma podem abalar o poder da minoria abastada da sociedade, detentora do capital e exploradora da força de produção das massas, que sem estudo e educação de qualidade, se veem obrigadas a vender sua força de trabalho como única forma de manter sua subsistência. Mas é lógico que tal fato fica mascarado sob a alegação do governo de que determinadas condutas são crime e ensejam uma retribuição porque atentam contra o Estado democrático de Direito.

Mas como falar em um Estado Democrático de Direito, em que as maiorias mal são alfabetizadas? As estatísticas mostram que o acesso a educação básica no Brasil é muito deficiente, e que as populações menos abastadas têm muita dificuldade de acesso ao ensino. Ademais, a população negra, ainda sofre com a segregação apesar das “ações afirmativas” do governo, na tentativa de concertar o problema atacando a “ponta do iceberg”.

Pode-se dizer que os sujeitos criminalizados são em sua maioria negros, que compõem 60% da população carcerária brasileira, da qual 58% são jovens entre 18 e 29 anos e 77% não passaram do Ensino Fundamental, o que evidencia que presídio é uma verdadeira fábrica de criminalização da população pobre, jovem e negra. Vale ressaltar que a falta de condições financeiras enseja uma grande dificuldade do acesso à assistência jurídica, o que também contribui sobremaneira com a deflagração de rebeliões internas visando melhores condições para o cumprimento das penas.

Quanto ao fracasso do sistema penal brasileiro em conter a criminalidade, verifica-se, em um primeiro momento, que o grande problema do sistema penal é a superpopulação de presos – que agrava todos os outros problemas. O Brasil, que possui a quarta maior população carcerária do mundo e cujo índice de crescimento do número de encarcerados é o maior verificado atualmente, possui como marca a superlotação generalizada de suas unidades prisionais, acrescido de um sem limite de precariedades institucionais. Ao invés de procurar resolver o problema da criminalidade, promovendo uma igualdade de condições financeiras a toda a população, possibilitando o acesso igualitário à educação, trabalho, moradia, alimentação e lazer, o governo quer resolver o problema encarcerando os indivíduos transgressores da lei penal, literalmente enfiando os criminosos em um buraco em que a única saída é o real envolvimento com o crime, para que eles possam se defender do submundo que é o sistema carcerário brasileiro, que, apesar das diversas políticas de reinserção do delinquente à sociedade, só ataca o problema no fim, sem poder reparar todo o dano e sofrimento do indivíduo ao longo de sua vida.

Assim, são propostas diversas medidas para que se possa atenuar o problema enquanto a base não é consertada. Entre elas, merecem destaque as propostas de JUAREZ CIRINO TAVARES, no sentido de melhorar e humanizar o sistema carcerário no Brasil, pautado nos ideais da Criminologia Crítica:

A descriminalização dos crimes punidos com detenção, nos crimes sem vítima, de ação penal privada, de crimes de ação penal pública condicionada à representação e de crimes de perigo abstrato, com o fundamento de que tais crimes teriam conteúdo de injusto mínimo, desprezível ou inexistente.

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A despenalização dos crimes com penas mínimas, previsto em todos os tipos legais de crimes, abolido em legislações penais modernas por violar o princípio da culpabilidade e contrariar políticas criminais humanistas. A redução da pena máxima de todos os tipos legais de crimes subsistentes, inspirados em concepção de política criminal troglodita anterior a Beccaria, que somente atribuía poder desestimulante do crime à certeza da punição – e não à gravidade da pena, como ainda pensa o legislador brasileiro. A aplicação de substitutivos penais, como o perdão judicial, a conciliação, a transação penal, a suspensão condicional da pena, a prescrição, mediante redução dos prazos de prescrição da pretensão punitiva, de natureza arbitrária, e desconsideração das causas de interrupção da prescrição retroativa, impossíveis em processos mentais retrospectivos baseados no fluxo imaginário do tempo e, principalmente, institucionalização legal da prescrição retroativa antecipada, por razões de economia processual e de pacificação social.

Por fim, faz-se imprescindível que se promova uma humanização do sistema penal, primeiramente, com o despovoamento do sistema prisional, feito a partir de extinções, reduções ou desinstitucionalizações das execuções penais, promovendo reduções do tempo de cumprimento da pena, reformulação da remição penal, valorizando o trabalho, de forma que 1 dia/trabalho seja igual a 1 dia/pena, revitalização o regime aberto, mediante ampliação do limite da pena aplicada para concessão do benefício – de 4 (quatro) para 6 (seis) u 8 (oito) anos, por exemplo –, com correspondentes alterações nos regimes semi-aberto e fechado (art. 33, §2o, a, b, c, CP), aceleração da progressão de regimes na execução da pena, mediante redução do tempo mínimo de cumprimento de pena no regime anterior – de 1/6 (um sexto) para 1/10 (um décimo) ou 1/12 (um doze avos) da pena, por exemplo.

Deve-se também garantir o exercício de direitos legais e constitucionais do condenado, como forma de compensação oficial pela injustiça das condições sociais adversas, insuportáveis e insuperáveis da maioria absoluta dos sujeitos selecionados para criminalização pelo sistema penal, com a instrução geral e profissional, como condição de promoção humana, trabalho interno e externo, como condição de dignidade humana, serviços médicos, odontológicos e psicológicos especializados, como condição de existência humana.

Tais apontamentos e propostas da Criminologia crítica podem basearem um projeto democrático de reforma da legislação penal brasileira, para que haja uma redução do genocídio social produzido pelo sistema penal, que atualmente se demonstra um instituidor de uma ordem social desigual e opressiva fundada na relação capital/trabalho assalariado.

A Criminologia crítica aponta que a solução para o a criminalidade é a democracia real, uma vez que nenhuma das políticas criminais, por mais realistas e aparentemente capazes de melhorar o problema, são capazes de substituir políticas públicas que demonstrem preocupação do governo com as classes subalternas, como ofertas de emprego, de salários decentes, de moradia bem estruturada, com energia e saneamento básico, oferta de saúde de qualidade, e principalmente, de escolarização básica para que todos sejam capazes de atingir níveis superiores de ensino, e passem a não ter tempo para a prática de quaisquer crimes.

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Sobre o autor
Wander Pereira

Pós-Doutorado em Criminologia, Pós-doutorado em História do Direito: Filosofia e Constituição. Doutor e Mestre pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Especialista em Direito e Processo do Trabalho, em Direito Público e Filosofia do Direito. Cirurgião-dentista CRO22510, Advogado OABMG109559 graduações pela UFU. Professor visitante do Pós-Doutorado da UFU. Professor de Direito pro tempore da Faculdade de Direito, da Faculdade de Administração e da Faculdade de Ciências Contábeis, todas da UFU. Professor de Direito nas Faculdades ESAMC e UNIPAC, Professor de Direito na Pós-Graduação da PUC-MINAS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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