RESUMO - O presente artigo tem por escopo analisar a aplicabilidade da função social do direito de propriedade, especialmente a partir de sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro, através de seu reconhecimento em nível constitucional até, às consequências pelo descumprimento de sua observância. Para tanto, inicialmente será analisado o conceito de propriedade sob a ótica do Direito Civil Constitucional, o qual mitigou o absolutismo oriundo do direito romano, bem como as ideias liberais que nortearam as codificações do século XIX.
PALAVRAS-CHAVES: Direito de Propriedade, Função Social, Direito Civil Constitucional.
INTRODUÇÃO
O Direito Civil, enquanto ramo do direito privado, embora tenha como berço a proteção dos interesses plebeus da Roma antiga, inegavelmente restringiu-se ao longo do tempo a tutelar interesses burgueses.
A ideia romana de um direito de propriedade absoluto influenciou profundamente a codificação europeia oitocentista, a qual imiscuída de uma intuição individualista e patrimonialista, legou-nos uma legislação civil editada sob as hostes de uma sociedade liberal.
O Código Civil de Napoleão de 1804 e o Código Civil Alemão, “Bürgerliches Gesetzbuch”, mais conhecido como o BGB de 1900, demonstram explicitamente os valores preponderantes à época, os quais mais interessados em proteger o patrimônio à pessoa, serviram de supedâneo para a criação da primeira codificação privada do Brasil, o Código Civil de 1916.
Tal diploma legal brasileiro não somente reproduziu a concepção axiológica de sua era, como também se calcou em apresentar o absolutismo e rigidez romanas, quanto ao direito de propriedade.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, e a fixação de fundamentos que norteiam a atividade do Estado Democrático de Direito, especialmente, a dignidade da pessoa humana, o ser humano passou a ostentar posição superior dentro do ordenamento jurídico.
A partir deste momento, o direito privado sofre uma nítida transformação ideológica, reposicionando os interesses do indivíduo e alocando-os em status jurídico superior ao seu patrimônio.
O direito privado abre as portas para uma verdadeira despatrimonialização e repersonalização de suas bases.
Visando assimilar esta variação de entendimento, o direito de propriedade será tratado sob sua perspectiva social, numa visão contemporânea do direito civil.
1. O DIREITO DE PROPRIEDADE: CONCEITOS E TEORIAS
A Carta Magna de 1988 reproduziu a Constituição Brasileira de 1967, que havia elevado a função social da propriedade à categoria de princípio.
Além disto, o direito de propriedade está insculpido no texto constitucional atual sob os mais diversos enfoques, ratificando a noção de que a propriedade deve ser analisada para além de uma visão individualista e subjetivista, ou seja, como direito social.
A visão pluralista da propriedade deita raízes na doutrina italiana, que a compreende não como um instituto único, mas acima de tudo, dotado de uma variabilidade que decorre dos diversos tipos de bens e seus respectivos titulares. Sob esta perspectiva é que temos o direito de propriedade assegurado no artigo 5º da Constituição Federal Brasileira, mas com referências em outros dispositivos constitucionais e até mesmos em outros diplomas legais, de sorte que o termo mais apropriado não seria “propriedade”, mas, “propriedades”.
“a propriedade assegurada em nossa Constituição como um direito individual (art. 153, § 22), cuja função social é declarada como um dos princípios da Justiça Social (art. 160, III), apresenta-se como instituição diferenciada, no sentido de poder variar de conteúdo, conforme o tipo de bem que lhe serve de objeto e a natureza do titular, exatamente por ser uma função social e um dos instrumentos da Justiça Social.”1
Com isto não se quer afirmar que a propriedade privada está desprovida de conteúdo particular. Pelo contrário, a Carta Cidadã a confirma como garantia individual e direito subjetivo, o que reafirma seu objetivo em perseguir as necessidades individuais do proprietário.
Na verdade, a inserção da propriedade entre os direitos e garantias individuais corrobora o conceito legal, trazido pelo Código Civil Brasileiro em seu artigo 1.2282, de que ao proprietário é dado o direito de usar, gozar, dispor da coisa e ainda de reivindicar de quem injustamente a possua. Este conceito conserva a essência do direito de propriedade como atributo privado, impedindo sua desconfiguração.
No entanto, como traçado alhures, a incidência constitucional altera o eixo do direito patrimonial, posto que, ao proteger o direito de propriedade, o legislador não o fará levando em linha de conta apenas o bem da vida de per si, mas tão somente enquanto o seu exercício efetivar os valores constitucionais de justiça social, tutelando plenamente a dignidade da pessoa humana.
Sob um olhar subjetivista, o direito de propriedade também pode ser entendido como a vinculação do proprietário a uma coisa, mas que ensejaria a figuração dos demais indivíduos da sociedade em posição passiva, com um dever de abstenção de violar os atributos do dono.
Neste diapasão, Rao (1999) afirma que o direito subjetivo representa a faculdade ora concedida a determinados indivíduos de agirem conforme os preceitos da norma garantidora, pois, esta tem como finalidade a preservação dos fins e interesses, podendo exigir de outrem, o que lhes for devido segundo a lei.
Assim, verifica-se que o direito de propriedade também pode ser encarado como a constituição de uma relação jurídica, sendo esta entre o proprietário e a demais pessoas. Importante salientar que estes têm o dever jurídico de se absterem da realização de qualquer espécie de ato que venha a ofender o direito daquele (KELSEN, 2000).
A teoria do direito subjetivo de propriedade acabou colecionando várias críticas, principalmente, por não prever qualquer espécie de dever dos proprietários em relação as demais pessoas.
Neste contexto, Duguit (apud Rodrigues, 2000, p.97) ensina que
“(...), todo o indivíduo tem a obrigação de cumprir na sociedade certa função social que decorre do lugar que ocupa. O proprietário, pelo fato de possuir a propriedade, tem de cumprir a finalidade social que lhe é implícita e somente assim estará socialmente protegido, porque a propriedade não é direito subjetivo do proprietário, mas função social de quem a possui”.
Para Monteiro Filho (2007) o proprietário é apenas um instrumento, pois, é por meio dele que se coloca em prática o que se entende ser melhor para o interesse social. O homem não deve viver para concretizar a vontade da lei, mas, sim, deverá proceder desta forma por ser o melhor caminho a se seguir, existindo uma harmonia entre a humanidade.
Segundo Dabin (1952) o direito objetivo acaba por consagrar o próprio direito subjetivo de propriedade, pois, tutela o uso de forma livre, bem como, plena as coisas materiais, sempre em proveito de uma determinada pessoa. Ao se limitar esta liberdade, esta na realidade estabelecendo a presença de encargos, sendo, que segundo Mestre (1932) esta atribuição de deveres ao proprietário não tem a finalidade de transfigurar a propriedade em uma obrigação.
Embora, a concepção da propriedade como direito subjetivo tenha sua importância, parece-nos que atualmente este tema representa uma situação jurídica totalmente complexa.
O presente pensamento teve como seu precursor o italiano Pietro Perlingieri (1982), segundo o qual devem prevalecer os mandamentos constitucionais sobre a propriedade, sendo esta exercente de uma função social.
Segundo Perlingieri (1982), o direito de propriedade representa uma relação jurídica, tanto em sua estrutura como em sua função. Assim, no aspecto estrutural as situações subjetivas acabam por se contrapor, estabelecendo, portanto, um determinado liame objetivo. Em relação ao aspecto funcional, acaba por sintetizar a disciplina trazida pela própria lei como meio de solucionar os conflitos considerados como de interesse.
Surge, assim, a indeterminação do sujeito passivo, sendo este considerado como um aspecto impeditivo para a qualificação do direito de propriedade como uma espécie de relação jurídica.
Neste contexto, Perligieri (1982) retrata que a objeção não é fator relevante, pois, o sujeito que é considerado como o titular de uma situação ativa em relação a propriedade, não faz existir um sujeito determinado, mas, sim, a coletividade, que deverá respeitar a situação, não se inserir na esfera do titular.
Em relação ao perfil estrutural, Perligieri (1982) retrata que a relação de propriedade é na realidade uma ligação entre a situação vivenciada pelo proprietário e os demais que entrem em um conflito com esta, e, assim, acabam por constituírem centros de interesses considerados antagônicos.
Importante salientar que a concepção trazida por Perlingieri não tem o condão de desconsiderar a existência dos direitos subjetivos, pois, estes são na realidade integrantes da situação inerente do proprietário, principalmente em relação as demais situações jurídicas advindas de terceiros, que acabam se caracterizando em relações jurídicas complexas.
Portanto, para Perligieri (1982), as limitações ora impostas ao proprietário, por meio da função social da propriedade, não são apenas um aspecto externo ao conteúdo, mas, sim, algo interno, pois, não se encontra fora da estrutura da propriedade, representando os direitos de propriedade e também o direito individual, fazendo, portanto, parte de uma situação jurídica subjetiva complexa.
Neste diapasão, a propriedade pode ser considerada como o direito exclusivo de usar, gozar e dispor da coisa, sendo, assim, ela conferida e garantida ao seu titular pelo nosso ordenamento jurídico, devendo ser exercido pelo proprietário, sempre se observando os limites e também o cumprimento das obrigações que o mesmo ordenamento lhe imponha para o perfeito cumprimento da função social (ZAKK, 2007).
2. A FUNÇÃO SOCIAL E O DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
Como visto em linhas anteriores, a função social prevista constitucionalmente mitiga o individualismo que marcou o tratamento do direito de propriedade na codificação oitocentista3. No entanto, não altera sua natureza jurídica de direito subjetivo tutelado pelo ordenamento jurídico.
Na verdade, a função social provoca modificações na estrutura e regime jurídico do direito de propriedade, alterando seu conceito e o seu conteúdo.
Prova disto é que, hodiernamente, poderíamos conceituar o direito de propriedade como sendo a faculdade que seu titular possui de usar, gozar e dispor de certos bens, desde que o faça de modo a promover sua função social bem como a dignidade da pessoa humana.
Tal concepção se coaduna com a tese proposta pelo Direito Civil Constitucional.
Assim, verifica-se que o direito a propriedade é inserido com direito individual fundamental e, logo em seguida, como interesse público, devendo se adequar aos fins sociais, orientando, portanto, o seu exercício, bem como, o aproveitamento da propriedade.
Segundo Loureiro (2001, p. 113) retrata que
“o respeito à propriedade e à sua função social constituem, ambos, princípios explícitos – ou positivos – que expressam decisões políticas fundamentais do constituinte, têm fonte no princípio estruturante da dignidade da pessoa humana e são obrigatórios e vinculantes aos seus destinatários”.
O Ilustre autor completa mencionando que
“Não há antinomia porque, como acima visto, a função social integra a própria estrutura da relação proprietária – não é, portanto, algo externo ao instituto – criando deveres de comportamento positivo, ônus, abstenções e estímulos ao titular. Também não há, de resto, critério abstrato e geral para definir, a priori, quando a propriedade cumprirá a sua função social, devendo ser analisado o caso concreto e a concorrência entre os interesses proprietários e os interesses não-proprietários” (LOUREIRO, 2001, p.113)
Assim, conclui-se que, embora se distinga o direito de propriedade de sua função social, em razão das disposições trazidas pela Constituição, ambos se completam, mesmo existindo a necessidade de uma interpretação sobre o tema.
Para Silva (2006) o principio da função social da propriedade não representa uma limitação ao direito de propriedade, pois, é possível verificar que estas limitações apenas dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário, sendo que a função social acaba por interferir na estrutura do direito.
Sob tal perspectiva importa destacara que entender a função social da propriedade como uma espécie de restrição ou entrave ao exercício do direito subjetivo nada mais é que retroceder à concepção obsoleta de que os direitos patrimoniais são absolutos.
Para Rocha (2005) é necessário ver a função social como uma carapaça do conceito jurídico de propriedade, pois, a função social acaba por integrar toda a estrutura da definição no mundo jurídico de propriedade.
Não existe qualquer incompatibilidade entre o dever do proprietário de atender ao bem-estar e o direito de usar, fruir e dispor dos bens, pois a função social apenas condiciona o exercício de direitos inerentes à relação jurídica da propriedade.
Segundo Loureiro (2001, p. 94) a função social não pode ser vista como algo eqüidistante da propriedade, pois, é elemento integrante de sua estrutura. Assim, os limites legais são considerados como intrínsecos à propriedade, sendo, portanto, inerentes do próprio direito e de seu exercício, compondo, portanto, a relação ora existente.
Neste contexto, o melhor entendimento é aquele que retrata que o princípio da função social da propriedade busca equilibrar o interesse público e o privado, sendo que este se sujeita aquele.
Bandeira de Mello (1987, p. 43) pontifica
“Função social da propriedade é tomada como necessidade de que uso da propriedade responda a uma plena utilização, otimizando-se ou tendendo-se a otimizar os recursos disponíveis em mãos dos proprietários ou, então, impondo-se que as propriedades em geral não possam ser usadas, gozadas e suscetíveis de disposição, em contradita com estes mesmo propósitos de proveito coletivo”.
A ideia de coletividade e solidariedade está vinculada ao Principio da Solidariedade insculpido na Constituição Federal de 19884 como objetivo republicano, devendo, portanto, a propriedade ser utilizada com vistas à realização de uma sociedade mais livre, justa, e solidária, procurando o desenvolvimento econômico e também a preservação do meio ambiente.
Neste contexto, a expressão “função” acaba por reconhecer a um determinado indivíduo a faculdade de exercer poderes, sendo que estes não são em beneficio próprio, mas, sempre visando o interesse da coletividade, conforme apregoa Bandeira de Mello (2005, p.21):
“Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-los. Logo, tais poderes são instrumentos ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade ‘deveres poderes’, no interesse alheio”.
De outra banda, repise-se que não se pode afirmar que ao adotar a função social da propriedade, nossa Carta Magna procurou eliminar ou até mesmo restringir a propriedade privada. Nesta esteira, não é permitido que o Estado se apodere, de forma arbitrária, do patrimônio privado, sendo, portanto, dever dele garantir a segurança jurídica necessária para a atuação e investimento dos agentes econômicos.
A função social limitou o poder do proprietário de utilizar de forma livre sua propriedade a uma finalidade social, que é a satisfação, mesmo que de forma indireta das necessidades da população (MONTEIRO, 2002).
Segundo Sundfeld (1987) ao se acolher o princípio da função social da propriedade se pretendeu trazer a direito privado o direito público, condicionando ao poder uma finalidade, onde não se extingue a propriedade privada, mas, se vincula a mesma aos interesses diversos.
Assim, a constitucionalização do direito civil nos garante afirmar que, no que tange ao direito de propriedade, ao proprietário é assegurado o direito de utilizar sua propriedade de forma livre, desde que orientada a uma finalidade econômica útil, evitando-se, portanto, alguns transtornos, como, por exemplo, a especulação imobiliária, abandono, etc.
3. DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Com vistas a uma perfeita compreensão do instituto da função social da propriedade faz-se necessário o exame acurado dos casos concretos em que seu descumprimento enseja a aplicação de sanções aos proprietários, especialmente em razão da má utilização do solo e improdutividade, onde as áreas acabam sendo subutilizadas, caracterizando-se verdadeiros vazios urbanos.
Desta forma, as sanções impostas pelo descumprimento do comando constitucional atinente à destinação social, constitui-se para o titular do direito de propriedade, um papel de princípio geral, valendo dizer que, nestes casos, a autonomia da vontade do proprietário não se pauta no livre-arbítrio.
Assim, para continuar a exercer o seu direito de propriedade sobre o solo, é necessário que o mesmo seja utilizado de forma correta, cumprindo, portanto, a sua função social.
O Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001) nos traz inovações expressivas em matéria de Direito Urbanístico prescrevendo políticas de planejamento urbano, que se constituem em verdadeiras sanções pelo não cumprimento da função social por parte do titular do direito de propriedade. Senão vejamos:
3.1. Edificação ou parcelamento compulsório
Preceitua a Lei 10.257 – Estatuto das Cidades que é obrigação atribuída ao proprietário de construir ou parcelar seu imóvel, devendo-se respeitar os prazos para a apresentação da planta bem como para o término da obra previstos na lei.
3.2. Incidência de IPTU progressivo
A Constituição Federal5 previu no artigo 182 que, no caso de descumprimento da determinação de parcelamento ou edificação compulsórios, o Poder Público municipal poderá promover a cobrança do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo, com o intuito de forçar o proprietário a cumprir a obrigação que lhe foi imposta.
3.3. Desapropriação
Incidindo esta sanção, o proprietário desapropriado terá direito à indenização assim como aquele que é desapropriado por razões de interesse público. A diferença está em que aquele que é desapropriado por razões de interesse público, conforme artigo 5.º XXIV, terá direito a uma indenização prévia, justa e em dinheiro, porque não cometeu nenhuma irregularidade. Já aquele que é desapropriado por razões de não atendimento à função social da propriedade, terá também direito a uma indenização que, no entanto, não será nem justa, nem prévia e nem em dinheiro, devendo ser paga em títulos da dívida pública, (182, §4º, III da CF), resgatáveis em até 10 anos.
Em relação á propriedade rural cumprirá ela sua função social, quando atender simultaneamente as quatro exigências relacionadas no artigo 186. Assim, a propriedade rural cumpre com a sua função social quando o seu uso for racional e adequado, respeitando as questões ambientais, as relações de trabalho bem como as necessidades do proprietário e dos trabalhadores.
Na hipótese de uma só destas exigências não ser cumprida, incidirá desapropriação com indenização paga em títulos da dívida agrária, resgatáveis em até 20 anos, na forma do artigo184.
Frise-se que a desapropriação para fins de reforma agrária não poderá incidir sobre a pequena e média propriedade bem como sobre a propriedade produtiva, nos termos do artigo 185 da Constituição Federal.