7. Crimes omissivos impróprios
Quando abordamos especificamente os delitos omissivos impróprios, é necessário dizer que tais crimes possuem uma tipificação especial, onde a inação deve corresponder a uma norma de comando. No exemplo doutrinário do homicídio de criança por omissão da mãe, não a alimentando dolosamente, diz-se que a consumação do delito somente se dá com o resultado morte.
Porém, integra o tipo de tais delitos a real possibilidade de atuar32 pelo agente, pois não se pode obrigar a alguém que não tenha condições pessoais de agir para evitar o resultado. Exemplifica-se como no caso de um determinado agente que, vislumbrando terceiro em uma lagoa erma, afogando-se, nada faz, pois aquele não saberia nadar.
Neste diapasão, outro não é o entendimento de Bitencourt33, pois para tal autor, os delitos omissivos impróprios ou comissivos por omissão possuem intrinsecamente o dever de evitação do resultado concreto para seus agentes. Mais, na esteira do art. 13, §2º, do Código Penal Brasileiro, tais delitos impõe a abstenção da atividade que a norma típica impõe; a superveniência do resultado típico em decorrência da omissão do agente; e a existência de uma situação geradora do dever jurídico de agir (figura do garantidor).
Revela-se que os tipos dos delitos omissivos englobam todos os elementos ou supostos que estão associados à inação, determinando o dever de agir e o conteúdo de injusto do fato, com o fito de “justificar sua punibilidade34”. Tais delitos refeririam a normas mandamentais35 dirigidas a grupo restrito de sujeitos, que impõe um dever de agir, para impedir que processos alheios ao sujeito venham a ocasionar um resultado lesivo, enquanto que a norma proibitiva dirigir-se-ia a todos aquele que porventura pudessem ser sujeitos do crime.
Ainda, resta observar que o poder de agir seria correlato ao dever imposto ao agente, pois somente ser-lhe-ia imputada responsabilidade se o mesmo sujeito, devendo agir, pudesse faticamente, fisicamente fazê-lo, ainda que com risco pessoal. Exemplifica-se com a coação física irresistível, onde não existe conduta punível, pois o agente não podia agir, não sendo considerado omitente. A evitabilidade do resultado traria para o contexto a relação de causalidade ou relação de não impedimento36, sob a qual não se pode imputar ao sujeito omissão que, realizado juízo hipotético de eliminação, não evitaria o resultado. Já o dever de impedir o resultado refere-se à terceira condição do delito omissivo impróprio, na qual o agente é o garantidor da não ocorrência do resultado, sendo imputado pela sua ocorrência quando se omitir.
Na lição de Zaffaroni e Pierangeli:
No aspecto cognoscitivo, dentro da estrutura típica omissiva do dolo requer o efetivo conhecimento da situação típica e a previsão da causalidade. Quando se trata de uma omissão imprópria, requer ainda que o sujeito conheça a qualidade ou condição que o coloca na posição de garante (pai, enfermeira, guia, etc.), mas não o conhecimento dos deveres que lhe incumbem, como consequência dessa posição. Do mesmo modo, o sujeito deve ter conhecimento de que lhe é possível impedir a produção do resultado, isto é, do “poder de fato” (WELZEL) que tem para interromper a causalidade que desembocará no resultado.37
Por fim, observa-se que a doutrina atual afirma que a criação ou incremento da utilização de delitos omissivos, especificamente os impróprios, vem a ser uma das consequências da nossa sociedade de risco38. O número de omissões jurídico-penalmente relevantes terá tendência para aumentar, em número e em significado, diante das mudanças cíclicas e de grande celeridade, que acabam por criar novos deveres aos cidadãos. Todavia, na mesma proporção, há autores que defendem que nos delitos omissivos impróprios, necessariamente, deveriam ser computadas atenuantes, pois segundo tal doutrina, o apenamento de um delito omissivo não poderia ser idêntico ao de um crime comissivo.
Em que pese não ser pacífico, no âmbito do direito brasileiro poder-se-ia imaginar atenuante genérica para pena de delito omissivo, conforme o Código Penal: “Art. 66 - A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei”.
Segundo Figueiredo Dias:
Apesar da equiparação da omissão à ação nos termos que vimos de assinalar, a verdade é que, segundo as representações sociais prevalentes, sempre que se trata de obstar a verificação de um resultado típico à violação de deveres de ação não se apresenta, em regra, tão grave como a violação das proibições correspondentes. (...)Dito de outra forma, o delito impróprio de omissão, apesar da equiparação típica, surge em regra como dotado de uma menor dignidade punitiva que o delito de ação correspondente, resultante de um conteúdo menos grave de ilicitude e (sobretudo) de culpa.39
8. Tipos Omissivos Dolosos e Culposos
Analisando-se condutas dolosas omissivas, há que se pressupor que existem correntes que pregam pela existência de um “equivalente” ao dolo e há outros que aplicam os mesmos pressupostos dos delitos comissivos para os delitos omissivos.
Para aqueles que creem que não poderia fazer a mesma assimilação dos delitos mediante ação do sujeito, sustenta-se que na conduta omissiva, a omissão não causa o resultado, ou seja, a finalidade do agente não dirigiria a causalidade, porém, para a doutrina pela qual nos norteamos, poder-se-ia falar em verdadeira finalidade nos delitos omissivos, sendo o dolo fundado na previsão da causalidade.
Zaffaroni e Pierangeli explicam que:
A princípio, tenhamos em conta que o resultado (“criança morta”, para o exemplo da mãe não se produz por acaso, mas sobrevém dentro de um processo causal. Se tomamos o esquema da conduta antes esboçado, notaremos que, no caso da tipicidade omissiva, a mãe se propõe o resultado como finalidade. Logo, a partir da representação do resultado (imagina a criança morta) seleciona mentalmente os meios com que alcança-lo e, apercebe-se de que, para que produza esse resultado, não necessita por em marcha um curso causal que nele desemboque, e sim deixar que continue avançando o curso causal que já está em funcionamento (o bebê está com fome e sede). Para que o curso causal avance, é óbvio que deve realizar qualquer conduta, menos a devida (alimentar a criança). Por isso deve propor a si mesma outra finalidade qualquer, como a de tricotar meias, mas a realização da conduta proibida (tricotar meias nessa circunstância) vai claramente incorporada a finalidade de deixar que a criança morra (tricotam-se meias para evitar alimentar a criança), e existe aí um verdadeiro domínio causal, porque há efetiva previsão da causalidade.40
Quanto à culpa, também segundo a doutrina acima referida, seu conceito geral deve ser aplicado aos delitos omissivos, pois seu elemento principal residirá na violação de um dever de cuidado.
Tal violação de dever de cuidado poderá ser observada na apreciação de uma situação típica (viola dever de cuidado quem ouve gritos de ajuda e sequer se digna a averiguar o fato); na execução de uma conduta devida (tentar apagar incêndio jogando mais combustível, ao invés de água); na apreciação da possibilidade física de execução (pessoa que acredita sinceramente que não poderá salvar afogado, pois crê que as águas sejam demasiadamente profundas); e no desconhecimento de sua condição de garante (por erro vencível, médico ignora que seja plantonista do turno, respondendo por fato ocorrido no mesmo).
Ademais, classifica-se a culpa como inconsciente, em delitos omissivos, tais quais os chamados “delito de esquecimento”. São condutas típicas omissivas culposas sem representação (ou omissão culposa inconsciente)41. Por exemplo: fato no qual pai de criança de tenra idade esquece a mesma no interior de seu veículo, estacionado ao ar livre, vindo a descobrir horas depois que sua filha ou filho veio a óbito por desidratação.
Esclarece Figueiredo Dias:
No que se refere ao tipo de culpa negligente, também ele deve ser definido da mesma forma por que o é nos crimes de acção: como atitude interna do omitente, documentada no facto, de descuido ou leviandade perante o dever-ser jurídico-penal. Ainda aqui, pois, a materialidade do tipo de culpa negligente omissivo acrescentada ao conteúdo do tipo de ilícito respectivo reside na atitude interna descuidada ou leviana revelada pelo omitente que fundamenta o facto e, por essa via, nas qualidades desvaliosas da pessoa que no facto se exprimem. (...) o elemento material específico do tipo de culpa negligente traduz-se em que o omitente, para que seja punível por negligência, tem não apenas de violar o cuidado objectivamente imposto, mas ainda não evitar o resultado apesar de aquele se apresentar como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável: só nesta medida se pode afirmar que ele documentou no facto qualidades pessoais de descuido ou leviandade pelas quais tem de responder.42
9. Concurso de Pessoas e Delitos Omissivos
Os delitos omissivos também seriam passíveis de concurso de pessoas, segundo a doutrina, mas tal questão não é pacífica. Segundo Tavares43, tais delitos seriam chamados de delitos de dever, pela denominação de Roxin, pois há uma especialização de seus sujeitos, eis que concretamente estariam diante de uma situação de perigo e, neste passo, estariam obrigados a atuar em face de um dever legal de assistência; ou porque apresentam uma especial vinculação para com a proteção do bem jurídico protegido pela norma.
No entanto, o referido dever não é apontado para toda e qualquer pessoa, mas somente àqueles que estejam aptos a agir e se situam diante de uma situação típica. Depois, infere-se que aqueles que tenham condições concretas de impedir a concretização de um resultado, tenham vinculação especial com a vítima ou para com a fonte produtora do perigo, estejam assim em situação de garantidores da não ocorrência do resultado.
Diante disso, conclui Tavares:
Consoante esse dado, podemos afirmar que nos crimes omissivos não há concurso de pessoas, isto é, não há coautoria nem participação. Cada qual responde pela omissão individualmente, com base no dever que lhe é imposto, diante da situação típica de perigo ou diante de sua posição de garantidor. (...) Alguém está na companhia de outra pessoa e vê terceiro se afogar. Quem está se afogando é filho de uma das pessoas que observam o afogamento. Os dois não só o observam, mas comentam entre si quem irá salvá-lo, ressaltando as incertezas de tal procedimento. Afinal decidem em conjunto que não irão proceder ao salvamento. Embora um tenha aconselhado o outro acerca do que devesse fazer, inexiste no caso participação, porque um deles responderá por crime de omissão de socorro e o outro responderá por crime de homicídio por omissão. Cada um, portanto, responde individualmente pela omissão e seus efeitos, na medida de sua posição em face da proteção do bem jurídico. O pai viola o dever de impedir o resultado, porque era garantidor da vida do filho. O outro viola o dever geral de assistência, porque, como cidadão presente na situação de perigo, tinha que lhe prestar socorro.44
Neste entendimento cada agente e omitente responde pelo seu delito, pois para que haja concurso de pessoas, é imprescindível que os agentes partícipes estejam subordinados aos mesmos critérios de imputação.
Entretanto, a doutrina de Figueiredo Dias45 vai mais além, estabelecendo diferenças quanto ao concurso de agentes. Primeiramente, quando se trata de participação ou coautoria por ação em um crime omissivo, segundo o autor, seria possível em razão de serem válidas também para os delitos omissivos as mesmas regras dos delitos comissivos. Em segundo ponto, para tal doutrina seria impossível participação ou coautoria por omissão em um delito de ação ou de omissão. Diz-se que a possibilidade de intervenção do garante no sentido de afastar-se o resultado típico seria o bastante para caracterizar a autoria.
Assim, reza o doutrinador:
Autor é por isso aqui – só pode ser – aquele que detinha a possibilidade fática de intervenção no (e de domínio do) acontecimento e, apesar de sobre ele recair um dever jurídico de acção (dever de garante), não fez uso de tal possibilidade. Nem as coisas são em princípio diferentes – no que toca à definição da autoria do omitente – quando são vários os coparticipantes no acontecimento, quer todos realizem o tipo por omissão (v.g., o pai e a mãe não chamam o médico ou não acorrem ao hospital para tratamento do seu filho gravemente doente), quer uns por omissão, outros por acção (v.g., quando os pais de uma criança assistem sem intervir aos maus tratos a ela infligidos por outrem). De excluir dessa regra serão apenas, tal como nos delitos de acção, os casos daqueles tipos cuja realização pressupõe, mais que a ausência de uma acção determinada, elementos adicionais relativos ao ilícito típico, por exemplo, uma posição, uma quantidade ou um dever especial. Em casos tais não pode ser autor quem não preenche as exigências adicionais, ainda mesmo que estejam verificados o dever de acção e a possibilidade de intervenção. Tudo o que pode entrar aqui em consideração é uma responsabilização por cumplicidade por omissão, na medida em que se verifiquem os seus pressupostos.