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Porque os Black Blocs não fazem política.

Uma análise a partir da teoria da ação em Hannah Arendt

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Os Black Blocs não fazem política, pois recusam a aparência, o discurso e, em lugar disso, empregam a violência como método de ação. Além disso, a consolidação das instituições democráticas que o Brasil experimenta afasta a possibilidade de se justificar as ações violentas.

Resumo: O presente trabalho tem por escopo analisar as recentes ações dos chamados Black Blocs em manifestações de rua no Brasil e indicar algumas razões pelas quais o referido movimento não exerce atividades tipificadas como políticas. Nossa argumentação se apoiará na teoria da ação da pensadora teuto-americana Hannah Arendt, uma das expoentes da corrente que identifica a política como fórum de deliberação. A conclusão é que, ao recorrer à violência como método de ação, bem como à recusa deliberada em participar dos debates públicos de temas políticos, os Black Blocs não fazem política.

Palavras-chave: Black Blocs; Hannah Arendt; política; esfera pública; violência.     


INTRODUÇÃO       

No mês de junho de 2013 eclodiram em dezenas de cidades do Brasil massivos protestos de rua que surpreenderam a todos os que observam com atenção o cenário político nacional. Os protestos eram dirigidos inicialmente contra o aumento das tarifas de ônibus decretado em várias capitais, notadamente São Paulo e Rio de Janeiro. Logo, os manifestantes ampliaram suas reivindicações para incluir outros temas, como, por exemplo, a melhoria da qualidade dos serviços públicos de saúde e educação, bem como externar sua insatisfação com os gastos bilionários com as obras da Copa do Mundo de 2014.

Inicialmente, os protestos foram pacíficos e contaram com forte adesão da população, mas, após algumas semanas, grupos de Black Blocs passaram a integrar as manifestações de rua e a promover ações violentas contra bancos, prédios públicos, carros, etc. Os métodos de ação violenta adotados pelos Black Blocs e a obscuridade de sua ideologia provocaram acerbos debates entre os diversos comentaristas políticos, sendo que muitos louvaram a intervenção do grupo como uma manifestação legítima de atividade política e outros refutaram tal avaliação, sustentando o contrário, ou seja, a sua ausência de conteúdo político. A morte amplamente televisada e fotografada do jornalista Santiago Ilídio Andrade durante protesto de rua no Rio de Janeiro em 10.02.2014 causou grande comoção nacional e recrudesceu os debates sobre o emprego da violência por manifestantes mascarados.

Há, portanto, uma questão relevante que subjaz ao debate do tema e que consiste na seguinte pergunta: os Black Blocs fazem política?

De modo bastante sintético e obviamente sem pretender esgotar o tema, o presente trabalho objetiva responder a essa indagação cuja natureza se reveste de alta relevância para iluminar as discussões sobre as polêmicas ações desse novo movimento. 

Ao final, a conclusão é a de que os Black Blocs não exercem atividade política quando suas ações são confrontadas com a concepção teórica da pensadora Hannah Arendt.       


1. COMO AS ORGANIZAÇÕES PODEM PROTESTAR EM UMA DEMOCRACIA

            Não parece existir grande dificuldade em aceitar alguns pressupostos como indissociáveis ao funcionamento das democracias contemporâneas. Essa demarcação não é inútil, mas necessária considerando que muitos sistemas políticos admitem a realização de processos eleitorais, o que não impede, todavia, que sejam classificadas como ditaduras ou, quando menos, como autocracias. Assim, países como Cuba e Coreia do Norte realizam, por exemplo, eleições periódicas, mas apenas para eleger membros de um partido único, exigência que elimina a possibilidade de competição eleitoral no sentido schumpeteriano com a alternância de grupos de elites concorrentes no comando do poder político. Cuba e Coreia do Norte são certamente casos mais evidentes ou extremos de ditaduras que realizam simulacros de eleições.

Há, porém, casos mais sutis de manipulação dos processos eleitorais com o objetivo de alcançar legitimidade interna e externa. Neste último caso, a Venezuela desponta como um bom exemplo porque, embora ocorram eleições periódicas e universais, seus resultados são quase sempre contestados pelos partidos de oposição, uma vez que o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), o Poder Judiciário, o Ministério Público e outras instituições são controlados pelo governo chavista, tornando risível a ideia de existência de um adequado sistema de freios e contrapesos.

Portanto, embora sejam extremamente relevantes, eleições são necessárias, mas não são suficientes para caracterizar a existência de uma democracia contemporânea. Além disso, é preciso que considerar que, passadas as eleições, as instituições continuam interagindo entre elas mesmas e com os indivíduos e as organizações da sociedade civil. Grosso modo, se as instituições podem absorver as demandas oriundas dos indivíduos e organizações, oferecendo-lhes respostas razoáveis e dentro dos marcos legais estabelecidos na constituição, pode-se dizer que se trata de instituições democráticas.

Do mesmo modo, as instituições devem ser receptivas às críticas e admitir a existência de uma oposição leal na acepção dahlsiana (2005: 28-37). 

Logo, se admitimos os elementos acima indicados como necessários e também suficientes à existência de uma democracia moderna, então teremos que forçosamente reconhecer que as críticas ou a contestação pública são fundamentais para o atendimento das demandas populares, bem como ao aprimoramento das instituições políticas.

Apesar disso, evidências históricas demonstram que as democracias contemporâneas podem oferecer certos arranjos institucionais que resultaram em tratamentos discriminatórios ou excludentes seja no campo político, seja no campo econômico. O exemplo mais notório de discriminação no campo político em uma democracia consolidada talvez tenha sido a existência de leis raciais no Sul dos Estados Unidos até o final dos anos 1960. Ou seja, cem anos após o fim da Guerra Civil Norte-Americana (1861-1865) leis racistas segregavam os negros nos Estados do Sul, exatamente na mesma região em que se formara a Confederação que lutou contra o fim da escravatura. As leis raciais sulistas ensejaram, no entanto, o advento de um forte movimento pela defesa dos direitos civis, usando métodos não violentos de ação coletiva, e cujo principal líder foi o pastor negro Martin Luther King Jr. Embora Martin Luther King tenha sido assinado em 1968, sua luta acabou sendo bem sucedida porque as leis raciais foram revogadas.

Antes de Martin Luther King, Mahatma Gandhi criou um método de ação política não violenta a que chamou de satyagraha. Como se sabe, Gandhi empregou seu método de não violência para conseguir a independência da Índia do colonialismo inglês. De acordo com Giuliano Pontara (1983: 537),

a doutrina de não violência de Gandhi não é tanto a que prescreve a abstenção da violência, mas, mais exatamente, a que prescreve agir de tal modo que nossa ação leve à maior redução possível da violência ao longo do tempo e em todas as suas formas.          

De qualquer modo, Gandhi manteve-se fiel aos princípios da satyagraha e, a despeito da forte oposição inglesa, em nenhum momento recorreu ou recomendou o emprego de violência aos seus milhões de seguidores. Assim como Martin Luther King, Gandhi foi igualmente assassinado no curso de sua luta, mas seu movimento logrou êxito e a independência da Índia foi obtida sem a ocorrência de uma guerra civil com o colonizador inglês.

Aos conhecidos métodos de ação coletiva não violenta - o antigo movimento pela defesa dos direitos civis e satyagraha de Gandhi - muitos outros foram agregados, alguns dos quais procuram ocupar espaços físicos e midiáticos objetivando chamar a atenção da opinião pública para determinadas causas, bem como constranger governos a recuar da adoção de medidas tidas como impopulares. O movimento Occupy Wall Street, surgido como desdobramento da crise econômica de 2008, utiliza neste sentido um tipo de método que pode ser considerado como válido, porquanto logrou chamar a atenção da opinião pública para os temas que focalizou sem recorrer ao emprego da violência.

Andrew Boyd e Dave Mitchell (2013) chegam mesmo a propor um elenco de táticas, princípios e teorias para realizar mobilizações de massa com o objetivo de pressionar governos a adotar medidas que satisfaçam os interesses populares. É evidente que a democracia representativa deve aceitar e absorver a realização de tais manifestações, bem como estabelecer canais de diálogo efetivo com suas lideranças e, tanto quanto seja possível, atender às demandas que lhe são reclamadas. O próprio advento de tais movimentos contestatórios, à margem ou à revelia dos partidos político e dos espaços criados pelos governos para negociação, deve ser visto como um sinal inequívoco de que a representação política não está, em alguma medida, conseguindo estabelecer uma congruência dialógica com os representados.

De qualquer forma, o que importa salientar é que as organizações aqui mencionadas abdicaram deliberadamente do recurso à violência como método de ação coletiva e adotaram táticas que pressupunham a busca do convencimento da opinião pública para o acerto das bandeiras ou propostas por elas defendidas.


2. O MODUS OPERANDI DOS BLACK BLOCS NO BRASIL

Vale ressaltar inicialmente que o movimento conhecido como Black Bloc não surgiu no Brasil, mas se trata de uma importação tardia de um modelo de ação coletiva já utilizado na Europa Ocidental, mais notadamente na então Alemanha Ocidental. Para o cientista político alemão Wolfgang Kraushaar (2014: 2), do Instituto de Estudos Sociais (HIS) com sede em Hamburgo, “os Black Blocs são claramente um produto do movimento de 1968 criado na cena radical de esquerda em Frankfurt”.

Os Black Blocs se consideram a vanguarda do conjunto dos manifestantes e o grupo que vai protegê-los da ação arbitrária das forças de segurança governamentais. É por esta razão que se colocam sempre à frente das passeatas como se constituíssem sua muralha protetora.

Os Black Blocs usam normalmente roupas de cor preta e, o que é relevante em nossa análise, cobrem as faces com máscaras, de modo a impedir a identificação de cada dos seus membros. Aqui, o aspecto da aparição na Esfera Pública fica inteiramente prejudicado pela ocultação da identidade pessoal. À ocultação deliberada das identidades é acrescida a determinação de negar à opinião pública qualquer informação sobre os objetivos perseguidos pela organização, bem como a identificação de suas lideranças. Até onde pudemos apurar, não se tem notícia de qualquer entrevista dada por uma liderança Black Bloc à imprensa brasileira, ainda quando foi instada a fazê-lo. Como veremos na seção seguinte, a recusa da aparição na Esfera Pública vulnera um dos pressupostos necessários para caracterizar aquele movimento como político à luz do pensamento arendtiano. Curiosamente, não tem sido a pequena a confusão a respeito do tema, havendo quem classifique as ações da organização como uma nova forma de se fazer política, a despeito da impossibilidade prática de identificar seus integrantes, de saber quem são suas lideranças e o que efetivamente defendem.  

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De outro lado, como se sabe, o emprego da violência integra o modus operandi da organização, como ressaltaram, em outubro de 2013, as jornalistas Daniela Lima e Bela Megale na matéria intitulada A vitória da baderna:

Na semana passada, eles (Black Blocs) mostraram que estão mais organizados e mais bem armados. Os pedaços de paus e pedras deram lugar a esferas de aço e coquetéis molotov, agora lançados com estilingues. Os rojões passaram a vir reforçados com bolas de gude e outros objetos, de forma que se transformaram em morteiros lançados contra a polícia. (2013: 61).  

Como foi dito acima, o emprego crescente e indiscriminado de métodos violentos contra civis e paramilitares resultou na morte do cinegrafista Santiago Andrade no centro da cidade do Rio de Janeiro por um rojão que foi solto ao nível do solo por dois jovens Black Blocs, causando grande comoção nacional, uma vez que o fato foi amplamente documentado por imagens e fotografias.

Certamente, o alvo do rojão disparado não era o cinegrafista, mas a Polícia-Militar presente no local. Mas o fato de que um civil veio a morrer, inclusive no exercício da profissão, pelo emprego da violência evidenciou a completa falácia de tal método de ação coletiva. Assim, ao recorrer deliberadamente à violência como método de ação, os Black Blocs fazem igualmente uma escolha por uma ação que não pode ser caracterizada como atividade política no sentido que lhe empresta Hannah Arendt.

Deve ser ponderado que, desde 1988, o Brasil vive sob um regime de crescente institucionalização democrática, realizando eleições livres, periódicas e universais, adotando mecanismos de controle horizontal das instituições públicas, separação de poderes, etc. Embora tenham cometido evidentes excessos, as Polícias Militares devem ser vistas no contexto de forças de segurança que integram o Estado Democrático de Direito e não como instituições meramente repressoras a serviço de uma ditadura, tal como sucedeu no passado durante a vigência do regime militar (1964-1985). É bem possível que os abusos policiais hoje cometidos ainda guardem fortes conexões com esse passado autoritário pela reverberação dos velhos métodos de tratamento dispensado aos manifestantes civis. Notoriamente, as Polícias Militares cumprem muito mal seu papel institucional de proteção da ordem pública com respeito aos direitos da cidadania.

A despeito disso, no entanto, o Brasil dispõe de instituições democráticas submetidas ao poder civil e ao comando da constituição, dentre as quais estão forças de segurança pública. Em suma, as forças de segurança pública devem atuar nos marcos do arcabouço constitucional e passar por forte escrutínio da sociedade civil, de modo a permitir o seu progressivo aprimoramento, bem como combater os próprios abusos cometidos contra manifestantes pacíficos.

Fosse outro o contexto histórico-institucional, ou seja, se estivéssemos submetidos ao jugo de uma ditadura militar feroz e, portanto, com poucas opções para uma saída pacífica rumo à restauração democrática, poder-se-ia eventualmente cogitar do emprego de métodos de ação violenta, visando derrubar o regime tirano. Mas não é este, a toda evidência, o caso do Brasil de hoje, de modo que, também neste aspecto, falta legitimidade à ação violenta dos Black Blocs. 

Outro aspecto que não pode ser ignorado é que as gigantescas passeatas de junho de 2013 ocorreram de forma absolutamente espontânea, ou seja, à margem dos partidos políticos e outras organizações de caráter político. Este fato causou grande impacto, pois sinalizou ao menos uma falta de congruência entre os interesses e aspirações dos manifestantes e as respostas oferecidas pelo sistema de representação política.

Não se quer aqui sugerir que o sistema brasileiro de representação política se encontra falido ou completamente descolado dos reais interesses dos representados, pois esse argumento, sempre sustentado pelos adversários da democracia representativa, há de ser comprovado preferencialmente através de estudos empiricamente orientados. O que se quer ressaltar é que, como bem assinalou Hannah Arendt, a autêntica atividade política se nutre essencialmente da espontaneidade, de modo que os atores políticos recém-chegados promovem a revitalização da Esfera Pública. Sob este referencial teórico, que será mais bem detalhado na seção seguinte, nossa análise é que as grandes manifestações de junho de 2013 foram altamente positivas para a democracia porque oxigenaram o próprio sistema nacional de representação política. No entanto, a crescente presença dos Black Blocks em tais eventos acabou por subtrair o caráter de espontaneidade dos movimentos de massa. Os manifestantes pacíficos foram, pouco a pouco, abandonando as ruas e a presença dos Black Blocs se tornou então bem mais visível, bem como o emprego dos seus métodos de ação violenta. A espontaneidade das multidões nas ruas, que surpreendera e deixara estupefato o Brasil, cedera lugar aos métodos violentos e aos objetivos obscuros de uma organização sobre o qual pouco se sabe.

Os Black Blocs precisam agir em meio às grandes massas, de forma a diluir ou dificultar a revelação de suas identidades. Curiosamente, na medida em que os Black Blocs aumentavam sua presença nas manifestações de rua, bem como o recurso aos métodos de ação violenta, o resultado disso não foi outro senão o isolamento com a consequente revelação dos membros daquela organização, uma vez que os manifestantes pacíficos deixaram as ruas por não quererem suas reivindicações identificadas com atos de violência e vandalismo.

Assim, sem a presença da enorme massa de manifestantes pacíficos sob a qual os Black Blocs se ocultavam, eles tornaram-se, enfim, visíveis. Este foi certamente um dos motivos que, no caso da morte do cinegrafista Santiago Ilídio Andrade no Rio de Janeiro, tornou possível a identificação relativamente rápida dos envolvidos naquele lamentável evento.

Veremos na seção seguinte como Hannah Arendt identifica na emergência do movimento Black Power o emprego de métodos de ação violenta que dissentiam visceralmente do conteúdo político do que ela chamou de rebelião estudantil norte-americana nos anos 1960.              


3. A APARIÇÃO, O DISCURSO E OUTROS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA AÇÃO POLÍTICA EM HANNAH ARENDT

Há, certamente, muitos modos de se definir a atividade política. Em teoria democrática há pelo menos dois grandes campos de estudo, um dos quais reputa a política como um mercado no interior do qual grupos ou partidos disputam os votos do eleitorado, fiel à tradição inaugurada por Joseph Schumpeter no clássico Capitalismo, Socialismo e Democracia (2014), e outra que considera a política como fórum de deliberação. Neste último grande campo, pode ser inserido o pensamento político de Hannah Arendt, conhecida autora que defende a revitalização do Espaço Público.  

Não há, por certo, como comprimir neste ensaio toda a extensão e complexidade do pensamento político de Hannah Arendt, daí porque vamos nos ater aos aspectos que interessam aos objetivos aqui perseguidos.

Para Hannah Arendt, as instituições da democracia representativa devem assegurar espaços institucionais nos quais temas políticos sejam tratados ou discutidos publicamente. Esses espaços podem ser garantidos no interior do governo ou mesmo fora dele desde que, é claro, seja assegurada a participação popular com ampla liberdade de manifestação e deliberação. Tais espaços institucionais foram por ela classificados como “ilhas de liberdade” e constituem sua tentativa de revitalizar a Esfera Pública a partir de vários exemplos históricos, indo da polis ateniense à emergência dos conselhos populares da Revolução Húngara de 1956 sem olvidar os revolucionários americanos de 1776 com a sua criação genial de uma nova estrutura federalista. Hannah Arendt assim descreve a sua concepção de “ilhas de liberdade” como necessárias à preservação da Esfera Pública:

A liberdade, num sentido positivo, somente é possível entre iguais, e a própria igualdade não é, de forma alguma, um princípio universalmente válido, porém, mais uma vez, aplicável apenas com restrições e até mesmo dentro de limites espaciais. Se compararmos esses espaços de liberdade – os quais, se seguirmos a essência do pensamento de John Adams, e não sua terminologia – com a própria esfera política, seremos tentados a imaginá-los como ilhas num oceano, ou como oásis num deserto. Essa imagem, creio, nos é sugerida não apenas pela consistência da metáfora, mas também pelo testemunho da história. (1988: 220).        

Para a constituição do Espaço Público, a pensadora teuto-americana considera que a aparição e o discurso são elementos essenciais da ação política que devem ser garantidos aos seus participantes. Arendt invoca então o exemplo histórico da polis ateniense para demonstrar como até mesmo a Esfera Pública contemporânea só pode ser formada a partir da ação fundada na aparição e no discurso. Arendt explica então como os atenienses da época de Péricles levavam consigo esse sentimento de pertencer a polis e a importância que atribuíam à aparência:

‘Onde quer que vás, serás uma polis’: estas famosas palavras não só vieram a ser a senha da colonização grega, mas exprimiam a convicção de que a ação e o discurso criam entre as partes um espaço capaz de situar-se adequadamente em qualquer tempo e lugar. Trata-se do espaço da aparência, no mais amplo sentido da palavra, ou seja, do espaço no qual eu apareço aos outros e os outros a mim; onde os homens assumem uma aparência explícita, ao invés de se contentar em existir como coisas vivas ou inanimadas. (2008: 211).

Portanto, segundo Arendt (2008: 211), a aparência e o discurso apenas são possíveis na “presença dos outros, pelo fato de aparecerem a todos (...)” ou, dito de outro modo (1988: 78), “na política, mais do que em qualquer outro campo, não temos possibilidade de distinguir entre o ser e a aparência. No mundo das relações humanas, o ser e a aparência são, de fato, uma só e mesma coisa.” 

Além disso, a concepção arendtiana de Esfera Política rechaça a ideia de que a violência possa se constituir em um instrumento válido de se fazer política. Assim, para Arendt (2008: 215), ditaduras privam seus cidadãos da “capacidade humana de agir e falar em conjunto”, sobretudo pelo emprego da violência. Ao analisar a emergência do fenômeno revolucionário, Hannah Arendt (1988: 72; 113-143) distinguiu claramente libertação de liberdade, ou seja, a primeira poderia eventualmente empregar a violência como condição “pré-política” para a necessária libertação do jugo político opressivo, mas seu objetivo final seria – ou deveria ser - invariavelmente a constituição da liberdade, tal como sucedeu na Revolução Americana de 1776. Nesse passo, um equívoco notável dos jacobinos e até mesmo de Karl Marx foi ter convertido a libertação da escassez econômica, e não a instituição da liberdade política, como objetivo final das revoluções, de modo que, na correta avaliação de Arendt (1988: 51) sobre este relevante aspecto, “a abundância (econômica), e não a liberdade, tornara-se agora o objetivo da revolução.”

Importa frisar que, ao tratar da rebelião estudantil nos idos dos anos 1960, Arendt (1985: 11) considerou que se tratava de “um fenômeno global, mas as suas manifestações variam, certamente, de um país a outro, e com freqüência de uma universidade a outra.” E salientou que o conteúdo político da rebelião estudantil perdeu espaço no momento em que entrou em cena a violência empregada pelo movimento conhecido como Black Power. Assim, de acordo com Arendt:

A violência mais séria entrou em cena com o aparecimento do movimento Black Power no campus. Estudantes negros, aceitos em sua maioria sem as qualificações necessárias, consideravam-se a si mesmos e organizavam-se como grupo de interesse representando a comunidade negra. O seu interesse era diminuir os padrões acadêmicos. Eram eles mais cautelosos do que os rebeldes brancos, mas ficou claro desde o princípio (antes mesmo dos incidentes na Universidade de Cornell e no City College em Nova York) que com eles a violência não era questão de teoria e retórica. (1985: 11).   

Por fim, é curial ressaltar a relevância que tem para o pensamento arendtiano a espontaneidade das ações em concerto dos homens na Esfera Pública. Cada recém-chegado ao mundo representa um novo começo, a garantia da continuidade do novo, da espontaneidade e, por extensão, da manifestação da própria liberdade. Assim, para Arendt,

O milagre da liberdade está contido nesse poder-começar que, por seu lado, está contido no fato de cada homem é em si um novo começo, uma vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existe antes dele e vai continuar existindo depois dele. (2007: 41-42).   

Estes são, em síntese, alguns componentes constitutivos do pensamento político arendtiano. Façamos agora um contraponto de tais elementos com o modus operandi dos Black Blocs.  

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Sobre os autores
André Silva de Oliveira

Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco, possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Pará (1984), especialização em Direito Público pela Faculdade do Pará (2005) e mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Pará (2010). Tem experiência na área do Direito Público, Direito Desportivo e Ciência Política, com ênfase em Mídia e Política, Política e Futebol e Teoria Política Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: política e futebol, controle social da imprensa, republicanismo em Hannah Arendt e liberalismo político.

Celso Antonio Coelho Vaz

Doutor e Mestre em Estudos Políticos (Centre de Recherche Politique Raymond Aron/École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS), Paris, França. Professor Associado II na Universidade Federal do Pará – UFPA onde atua no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e no Programa de Pós-Graduação em Direito, bem como na Faculdade de Ciências Sociais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, André Silva ; COELHO VAZ; CELSO ANTONIO, Celso Antonio Coelho Vaz. Porque os Black Blocs não fazem política.: Uma análise a partir da teoria da ação em Hannah Arendt . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3988, 2 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29148. Acesso em: 18 abr. 2024.

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