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Da constitucionalidade do Decreto presidencial nº 4.887/2003

Leia nesta página:

A Constituição não elegeu critério histórico para a definição das comunidades quilombolas e de suas terras, sendo certo que o Decreto contemplou métodos internacionalmente aceitos (autodeterminação) e recomendados pela ciência da Antropologia.

Pende de julgamento no Supremo Tribunal Federal questionamento acerca da constitucionalidade do Decreto Presidencial nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, em função da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239 movida pelo Partido Democratas.

O aludido Decreto tem sua constitucionalidade questionada quanto ao aspecto formal e material.

Quanto ao vício de inconstitucionalidade formal, o fundamento é que o ato pretende regulamentar diretamente o texto da Constituição Federal, mais precisamente o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Diz o dispositivo:

“Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”

Segundo o voto do relator, Ministro César Peluso, o art. 68 do ADCT carece de aplicabilidade imediata, tratando-se de norma constitucional de eficácia limitada (segundo classificação doutrinária de José Afonso da Silva).  Em outras palavras, a norma constitucional em questão necessita de lei que lhe integre o sentido.

É sabido que a função dos decretos é regulamentar a lei.  Exceção à regra, o art. 84, VI, da CF/88, dispõe sobre as hipóteses do chamado decreto autônomo, casos em que o Presidente da República pode expedir decretos independentemente de lei.

O STF, sabiamente, ainda reconhece outra situação excepcional.  Quando, em função de extrema clareza, o dispositivo constitucional seja autossuficiente quanto à definição de seu sentido e alcance, sendo desnecessária a edição de lei.  Nesses casos, admite o STF que o dispositivo constitucional possa ser regulamentado diretamente pela via do decreto presidencial (vide ADI 1590 MC, Relator o Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno).

Pois bem.  Nesse sentido, pedimos vênia para discordar do posicionamento do Ministro-Relator.

Com efeito, não se está diante de norma de eficácia limitada.  O art. 68 do ADCT, não obstante sua localização na Carta Política, está a contemplar verdadeiro direito fundamental à comunidades quilombolas e, portanto, traduz-se em norma de eficácia plena, aplicabilidade imediata.

Reconheceu o legislador constituinte o direito dos remanescentes de quilombos às terras que tradicionalmente ocupam, cabendo ao Estado brasileiro adotar ações positivas para concretizar esse direito.

Para se entender a importância desse reconhecimento, deve-se ter uma ideia do que representava o quilombo para as comunidades que nele viviam originalmente, em especial, a comunidade negra (escravos fugitivos, alforriados, recém libertos, etc).

As leis abolicionistas do final do século XIX, apesar de aparente “benevolência” ao prever a libertação dos sexagenários ou a condição de livres dos recém-nascidos, nos dão boa mostra quão falsa era essa liberdade e quanto sofrimento os libertos passavam nas cidades.

Conforme os termos da Lei nº 2.040 de 28/09/1871, a Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco, os filhos de escravas nascidos a partir da data da lei seriam considerados livres.  Contudo, seus pais continuariam escravos.  As crianças, assim, ou ficariam sob os cuidados dos senhores (que poderiam utilizar sua mão-de-obra) ou seriam entregues ao governo.  A Lei do Ventre Livre também continha normas aplicáveis aos libertos, estabelecendo que ficassem por 5 anos sob inspeção do governo, sendo obrigados a contratar seus serviços.

Disposição semelhante havia na Lei 3.270 de 28/09/1885 (Lei dos Sexagenários), ou seja, mesmo após a libertação, os libertos deveriam se submeter a 5 anos de trabalhos forçados, sequer podendo se ausentar do município onde tiver sido alforriado.  Caso se ausentasse, seria considerado “vagabundo” e apreendido pela polícia para ser empregado em trabalhos públicos ou colônias agrícolas.

A formação dos quilombos foi necessária para que essa massa de pessoas pudesse encontrar seu lugar no mundo, para que pudessem viver com dignidade, segundo seus costumes e normas.  Não somente negros, mas também índios, brancos marginalizados, condenados, perseguidos.  Portanto, extrai-se desse contexto histórico a grande importância que os territórios quilombolas têm para as comunidades que tradicionalmente os ocupam.

É baseado em todo esse contexto que se conclui que o art. 68 do ADCT contempla direito fundamental, que não carece de lei formal para lhe dar concretude.  Suas disposições já se fazem concretas e seu comando é claro: as terras tradicionalmente ocupadas pelos remanescentes de comunidades quilombolas lhes pertencem em caráter definitivo.

Fazendo-se uma interpretação sistemática do conjunto normativo, vemos que a Constituição Federal, em seu art. 216, § 1º, impõe ao Poder Público, em colaboração com a comunidade, a proteção do patrimônio cultural brasileiro, inclusive mediante o instituto da “desapropriação”.  Mais adiante, o art. 68 do ADCT reconhece aos remanescentes de quilombolas o direito à propriedade definitiva sobre as terras tradicionalmente ocupadas, devendo o Poder Público providenciar os títulos.

Em que pese o dispositivo constitucional transitório ser claro e gozar de aplicabilidade imediata, podendo ser mesmo regulamentado diretamente por decreto presidencial, podemos utilizar, como reforço de argumento, que o Decreto nº 4.887/2003 extrai seu fundamento de validade da Lei nº 7.668/1988.

A Lei nº 7.668/1988, por meio da qual foi autorizada a criação da Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura e com a finalidade de promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira, estabeleceu que compete à Fundação “realizar a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação”, sendo também “parte legítima para promover o registro dos títulos de propriedade nos respectivos cartórios imobiliários”.

A obviedade avulta.  A Lei nº 7.668/1988 dá contornos concretos ao que dispõe a Constituição Federal no § 1º do art. 216 e no art. 68 do ADCT.  E na sequencia, o Decreto Presidencial nº 4.887/2003 define e detalha o procedimento por meio do qual o Poder Público promoverá a demarcação e a titulação das terras quilombolas.

É bem verdade que na ementa do aludido decreto afirma-se que ele “Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, afinando-se com a tese de que a norma constitucional tem eficácia imediata e clareza suficiente para prescindir de lei.

Entretanto, devemos levar em consideração que o Decreto nº 4.887/2003 revogou expressamente o Decreto nº 3.912, de 10 de setembro de 2001, que regulamentava a matéria anteriormente.  O regulamento anterior foi editado pelo Presidente da República da época, “no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 14, inciso IV, alínea "c", da Lei no 9.649, de 27 de maio de 1998, e no art. 2o, inciso III e parágrafo único, da Lei no 7.668, de 22 de agosto de 1988”, conforme consta no preâmbulo.

Ora, ambos os decretos disciplinam a mesma matéria, qual seja, os procedimentos para identificação dos remanescentes das comunidades quilombolas e para o reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação de suas terras.

Para aqueles que advogam a ideia de que o art. 68 do ADCT é norma de direito fundamental e como tal possui aplicabilidade imediata, o Decreto nº 4.887/2003 é formalmente constitucional, pois é desnecessária a edição de lei para delimitar o sentido da norma constitucional.  Por outro lado, acaso se considere que o dispositivo constitucional transitório depende de lei formal para que tenha eficácia, não se pode negar que essa lei já exista no mundo jurídico, tendo em vista a existência da Lei nº 7.668/1988.  Logo, não há que se falar em inconstitucionalidade formal.

Quanto à inconstitucionalidade sob o aspecto material, o voto do Ministro Peluso se assenta em dois fundamentos: primeiro, que o art. 68 do ADCT elegeu critérios históricos para definir as comunidades remanescentes de quilombos, ao passo que o Decreto nº 4.887/2003 contempla critérios metajurídicos; segundo, que o Decreto permite que os próprios interessados se autodefinam como remanescentes quilombolas, indiquem seus próprios territórios e participem desde o início do procedimento administrativo, sem que os terceiros titulares das terras tenham igual tratamento.

Também aqui ousamos discordar.  Afinal, quando a Constituição diz que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”, não se constata a eleição por tal ou qual critério.

Na verdade, o critério histórico foi utilizado equivocadamente no Decreto Presidencial nº 3.912/2001, que restringia o reconhecimento às terras que “eram ocupadas por quilombos em 1888” e “estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988”.

Por sua vez, o Decreto nº 4.887/2003 estabelece que “Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.

Está claro que a redação do Decreto nº 3.912/2001 terminaria por inviabilizar o reconhecimento e a demarcação de terras quilombolas, vez que seria extremamente difícil para as comunidades interessadas demonstrar fatos que remontam ao final do século XIX, isto é, há mais de cem anos atrás.  Como se exigir de uma população que simplesmente ocupou determinada área que apresente provas seculares dessa ocupação.  Beira o impossível.

Como argumentamos acima, o art. 68 do ADCT contém norma de direito fundamental, ao qual deve ser dada a máxima aplicabilidade.  Nesse sentido, querer adotar critério meramente histórico para a definição das comunidades quilombolas é tornar letra morta o dispositivo constitucional.

A adoção da autodefinição dos interessados como remanescentes quilombolas segue a mesma linha adotada em casos semelhantes, como, por exemplo, na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho:

“Artigo 1o

1. A presente convenção aplica-se:

a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;

b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.

3. A utilização do termo ‘povos’ na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional.”

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Vemos que a Convenção, além de eleger a consciência da identidade como fundamental para o reconhecimento do grupo, também elenca outros critérios: sociais, culturais, econômicos, históricos e étnicos.  O reconhecimento de uma população minoritária para fins de garantir-lhes direitos não é tarefa simples.

Devemos entender o quilombo como uma manifestação cultural, com valores e costumes próprios, com modos de produção e economia próprios, bem como com uma relação dos membros com o território ocupado peculiar.

O Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, ao proferir seu voto-vista no julgamento da Arguição de Constitucionalidade nº 5005067-52.2013.404.0000 (também acerca do Decreto nº 4.887/2003), citou trechos do parecer do Procurador-Geral da República, dado na ADI nº 3.239:

“25.O requerente ainda aponta a existência de inconstitucionalidade em relação ao art. 68 do ADCT, pois o Decreto n° 4.888/2003, em seu art. 2o, elege o critério da autoatribuição (autodefinição da própria comunidade) para identificar os remanescentes das comunidades de quilombos. De acordo com o requerente, 'resumir a identificação dos remanescentes a critérios de autodeterminação frustra o real objetivo da norma constitucional, instituindo a provável hipótese de se atribuir a titularidade dessas terras a pessoas que efetivamente não tem relação com os habitantes das comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão do país'.

[...]

28.Assim, o critério da auto-atribuição é considerado pela Antropologia como o parâmetro mais razoável para a identificação das comunidades quilombolas. Os estudos realizados pelo antropólogo F. BARTH5 chegam à conclusão de que a identificação de grupos étnicos não depende mais de parâmetros diferenciais objetivos fixados por um observador externo, mas dos 'sinais diacríticos', é dizer, das diferenças que os próprios integrantes das unidades étnicas consideram relevantes. Como assevera ELIANE CANTARINO O'DWYER, 'essa abordagem tem orientado a elaboração dos relatórios de identificação, os também chamados laudos antropológicos, no contexto da aplicação dos direitos constitucionais às comunidades negras rurais consideradas remanescentes de quilombos, de acordo com o preceito legal'. Assim, 'em vez de emitir uma opinião preconcebida sobre os fatores sociais e culturais que definem a existência de limites, é preciso levar em conta somente as diferenças consideradas significativas para os membros dos grupos étnicos'. Nesse caso, 'apenas os fatores socialmente relevantes podem ser considerados diagnósticos para assinalar os membros de um grupo, e a característica crítica é a auto-atribuição de uma identidade básica e mais geral que, no caso das comunidades negras rurais, costuma ser determinada por sua origem comum e formação no sistema escravocrata'.”

 A definição da comunidade remanescente de quilombolas, seus membros e seus territórios, cabem à ciência.  Porém, não a ciência jurídica.  Tratando-se de comunidades humanas, devemos nos socorrer necessariamente da Antropologia.  E é esta mesma ciência que aponta a autodeterminação dos interessados como a melhor forma de identificação das comunidades quilombolas.

O art. 68 do ADCT consagra o direito dos quilombolas à propriedade das terras que tradicionalmente ocupam.  Coube ao Decreto nº 4.887/2003 regulamentar qual o procedimento administrativo a seguir para a identificação da comunidade quilombola e para a demarcação e titulação de suas terras.  Não existe inconstitucionalidade material, assim como também não era inconstitucional o revogado Decreto nº 3.912/2001.  O que há entre os regulamentos é uma divergência metodológica, estando os critérios definidos pelo decreto vigente mais condizentes com as normas internacionais (Convenção nº 169-OIT) e com a ciência da Antropologia.

Também não subsiste a alegação de inconstitucionalidade em função de que não se garante aos terceiros titulares das terras idêntica participação no procedimento administrativo.

Ora, conforme afirmado acima, a autodeterminação é a forma mais correta para identificar a comunidade quilombola e seu território.  Essa autodefinição será complementada com estudos antropológicos, para só então os terceiros interessados integrarem o procedimento.  Não faz sentido a participação dos terceiros titulares das terras no primeiro momento, o da autodeterminação, exatamente por que o mesmo não possui identificação com o grupo, por não fazer parte da comunidade.

Apenas após a complementação com estudos antropológicos tem lugar sua participação, com oportunidade para analisar toda a instrução do procedimento, expondo e defendendo seus interesses.  Ou seja, o terceiro integra o procedimento em momento em que lhe é possível analisar todas as circunstâncias colhidas e em momento anterior à efetiva desapropriação.  Por conseguinte, quanto a esse tocante, também é absolutamente constitucional o Decreto nº 4.887/2003.

Concluindo, o Decreto Presidencial nº 4.887/2003 não padece de vício de inconstitucionalidade.  Seja do ponto de vista formal, pois o art. 68 do ADCT consagra direito fundamental, possuindo aplicabilidade imediata, dispensando edição de lei, e mesmo que se admita que o dispositivo constitucional é norma de eficácia limitada, temos que o decreto extraia seu fundamento de validade da Lei nº 7.668/1988.  Seja do ponto de vista material, já que a Constituição Federal não elegeu critério histórico para a definição das comunidades quilombolas e de suas terras, sendo certo que o Decreto contemplou métodos internacionalmente aceitos (autodeterminação) e recomendados pela ciência da Antropologia.  Menos ainda podemos falar em inconstitucionalidade material por desrespeito ao devido processo legal, posto que existe oportunidade para que os terceiros afetados pelo reconhecimento da comunidade quilombola participem do procedimento administrativo de identificação, demarcação e titulação das terras, antes de qualquer medida que agrida seu patrimônio, o que derruba qualquer argumento que pretenda macular de inconstitucionalidade o Decreto nº 4.887/2003.

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Sobre o autor
Antonio de Pádua Oliveira Júnior

Procurador Federal em Cuiabá (MT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA JÚNIOR, Antonio Pádua. Da constitucionalidade do Decreto presidencial nº 4.887/2003. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4071, 24 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29367. Acesso em: 19 abr. 2024.

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