5. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E O DEVER DE PROTEÇÃO DO ESTADO
O Poder Público por intermédio de seu ordenamento jurídico tem o dever de proteção de forma a garantir a tão alardeada “proteção integral” da criança e do adolescente. A intervenção do Estado no contexto familiar tem caráter complementar, devendo assegurar políticas sociais básicas, programas de assistência social, orientação e apoio familiar, proteção jurídica, serviços de prevenção e atendimento às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, etc. conforme estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 3º, 4º e 7º[25], na Constituição Federal, de 1988, em seus artigos 226 e 227[26], bem na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1989, em seu preâmbulo proclama que a infância tem direitos a cuidados e assistência especiais. Reconhece a família como grupo fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem estar de seus membros, e em especial das crianças (recordando-se que segundo a Convenção, considera-se como criança o ser humano com menos de 18 anos de idade – art. 1º.), as quais devem receber toda proteção e assistência necessárias. Em se tratando especificamente da questão da violência, determina a citada Convenção:
Artigo 19.
1. Os Estados-partes tomarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto estiver sob a guarda dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.
2. Essas medidas de proteção deverão incluir, quando apropriado, procedimentos eficazes para o estabelecimento de programas sociais que proporcionem uma assistência adequada à criança e às pessoas encarregadas de seu cuidado, assim como outras formas de prevenção e identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior de caso de maus-tratos a crianças. acima mencionadas e, quando apropriado, intervenção judiciária.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 129, prevê uma série de medidas que devam ser aplicadas aos pais ou responsáveis que violem os direitos dos infantes e jovens.
A possível efetividade do artigo 129 está a exigir a criação de programas de promoção à família, de tratamento e orientação a alcoólatras e toxicômanos, e ainda exige as condições necessárias para que se possa realizar, quando necessário, o tratamento psicológico ou psiquiátrico, caso em que, mais uma vez, será necessária a conscientização e mobilização da sociedade civil na conquista desses serviços, imprescindíveis para que o Estatuto da Criança e do Adolescente produza seus efeitos no mundo fático, que não o abstrato e “perfeito” das normas jurídicas.
Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais ou responsável:
I – encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;
II – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;
III – encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;
IV – encaminhamento a cursos ou programas de orientação;
V – obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua freqüência e aproveitamento escolar;
VI – obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado;
VII - advertência;
VIII – perda da guarda;
XI – destituição da tutela;
X – suspensão ou destituição do poder familiar.
A atual legislação busca uma mudança profunda na conduta dos pais que agridem seus filhos, o que nos conduz a uma mudança cultural, objetivando obter êxito através dos instrumentos previstos na própria legislação de proteção à criança e ao adolescente.
A prevenção pode ser considerada a parte mais importante da legislação. A norma por si mesmo não tem força para mudar uma conduta individual e social. É necessário um consenso geral na aceitação. A norma, fundamentalmente, é educativa e tende a obter a aceitação das pessoas para evitar as medidas coercitivas. Devemos fomentar a sensibilização e proporcionar a formação e capacitação sobre como prevenir a violência intrafamiliar, através de programas educativos que sensibilizem e conscientizem a população sobre a importância de se prevenir e combater a mesma, bem como promover ações e programas de proteção social as vítimas da violência.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, através de suas medidas protetivas pretende criar uma nova cultura familiar, enfrentando o problema que hoje se apresenta como um dos mais graves em nossa sociedade e que nos leva a uma desintegração ou mesmo na descrença neste importante núcleo societário.
Num primeiro momento cabe à família, principalmente aos pais, garantir o cumprimento das funções básicas de assistência material, moral, cultural e jurídica a quem têm direito as crianças e adolescentes face ao seu processo de desenvolvimento. Neste contexto, compreende-se que a intervenção estatal na ordem familiar tem caráter complementar, ou seja, na falha do mecanismo familiar, torna-se necessária a intervenção do Estado para suprir as necessidades básicas da criança e do adolescente.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, parte do pressuposto de que o Estado será capaz de promover assistência social em geral. Porém, quando olhamos para a realidade presente, muitas vezes percebe-se que norma e fatos não coincidem. Segundo Silva, isto ocorre quando os fatos não reproduzem no real o enunciado da norma, como por exemplo os programas de proteção à família previstos na Constituição Federal, em seus artigos 203 e 204 para os que deles necessitarem serão executados e coordenados pelos municípios. Essa é uma norma constitucional. Analisando a realidade, porém, constatamos que nem todos os municípios organizam ou se preparam para organizar tais programas. E muitos dos que eventualmente fazem, fazem-no de forma irregular[27].
Deixando o Estado de cumprir seu papel, poderá ser responsabilizado pelo não cumprimento das normas que ele mesmo traçou. O Estado deve ter como principal finalidade a garantia da dignidade da pessoa humana, a obrigação de garantia e realização dos direitos fundamentais. “A Constituição de qualquer Estado que se diga democrático de direito deve ter essa mesma orientação, ou seja, não só garantir, mas também realizar os direitos fundamentais[28].”
6. ALGUMAS REFLEXÕES
A família é a base fundamental para o desenvolvimento do ser humano, pois é nela que a criança vai se inteirando consigo mesma e com os outros. Desde os primeiros momentos da vida, através de um vínculo regular e contínuo com as pessoas que a constituem, a criança se comunica com o ambiente que deve oferecer-lhe todos os estímulos necessários para um desenvolvimento adequado, daí a importância do afeto, do aconchego familiar para que a criança possa crescer e se estruturar de forma sadia e equilibrada.
Uma criança que nasce dentro de um ambiente familiar violento e desequilibrado, que não respeita seus direitos fundamentais de pessoa em desenvolvimento, é uma criança que carece de elementos constitutivos fundamentais.
A violência que ocorre no interior das quatro paredes de uma casa é sentida pela criança e pelo adolescente como uma guerra, pois os agressores estão próximos, e o mais paradoxal é que tal violência se estabelece no lugar onde espera acolhida, proteção e respeito.
A criança que sofre violência no seio de sua família, na maioria das vezes terá sérias conseqüências no decorrer de sua vida, quando adolescente e adulto. Ela poderá internalizar valores e normas distorcidos da realidade, tornar-se extremamente agressiva, amarga e, infelizmente, com enormes possibilidades de vir a ser portadora de uma estrutura de personalidade “anti-social”.
Na realidade, essa criança terá uma enorme tendência a repetir o que viveu, o que experienciou no ambiente familiar, afinal estes são os registros que lhe foram passados. Uma criança que foi vítima de violência doméstica poderá repetir esse modelo, tornando-se uma mãe ou pai violentos.
A personalidade do indivíduo refere-se ao modo relativamente constante de perceber, pensar e agir do mesmo. Esse “todo” peculiar a cada um é, de fato, marcado por valores, crenças, habilidades, atitudes, desejos, emoções, o modo de comportar-se. Assim sendo, não temos como separar a personalidade do indivíduo das experiências de sua infância, dos ensinamentos recebidos, dos estímulos do meio em que vive.
Lamentavelmente, apesar de várias décadas de evolução da humanidade, dos notáveis avanços tecnológicos, de verdadeiros milagres no campo da genética, na cura de doenças, no aprimoramento da democracia, na igualdade entre os sexos, não conseguimos evoluir no sentido de protegermos nossas crianças de todos os tipos de violência a que estão submetidas, principalmente a violência doméstica, a que nos parece mais preocupante, considerando ser justamente no lar o ambiente apropriado para que a criança possa desenvolver-se, sentir-se segura e amada, é o local em a que maltratam e a espancam.
Há que se observar, de igual modo, que a legislação que protege a criança e o adolescente de qualquer tipo de violência e abuso é primorosa, mas ainda encontra-se distante a sua efetiva aplicabilidade.
Para que os direitos fundamentais de toda criança, de todo adolescente não se restrinjam à norma, faz-se necessário que ocorra uma mudança estrutural e de mentalidade da sociedade, pois, o problema da violência não é fruto somente de questões vinculadas à economia e seus fracassos, ela está também relacionada com a falta de solidariedade, do egoísmo, da quebra de valores e da busca desenfreada de bens materiais. Chegamos em um estágio de nossas vidas em que não mais valorizamos o ser e sim o ter, e neste contexto vamos nos perdendo enquanto filhos, mães, pais, enfim, como seres humanos.
Isto posto, entendemos que se faz urgente recuperar o humanismo e impedir que toda a nossa construção civilizatória se volte contra si mesma, portanto, é imperioso que conquistemos a nossa real humanidade, reconhecendo a si mesmo e ao outro.
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Notas
[3] GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Violência de pais contra Filhos: a tragédia revisitada. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1998. p.76.
[4] Idem, ibidem, p.76.
[5] Idem, ibidem, p. 78.
[6] ROURE, Glacy Q. de. Vidas silenciadas: a violência com crianças e adolescentes. Campinas: Unicamp, 1996.
[7] SANTOS, Hélio de Oliveira. Crianças espancadas. Campinas: Papirus, 1998.
[8] SANTOS, H. de O. Op. Cit.
[9] GUERRA, Viviane N. Azevedo. Violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas. São Paulo: Cortez, 1988.
[10] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. V. 5. Rio de Janeiro: Forense, 1989.
[11] BEVILÁQUA, Clóvis. Direito de Família. Rio de Janeiro: Rio Editora, 1976.
[12] BOCK, Ana M. Bahia et al. Estudo das psicologias. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
[13] LACAN, Jacques. Os Complexos familiares. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
[14] FREUD, S. A teoria da análise infantil. In: O tratamento psicanalítico de crianças. Rio de Janeiro: Ímago, 1971.
[15] BOCK, A. M. Op. cit., p. 239.
[16] TRINDADE, Jorge. A delinqüência juvenil: uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
[17] SATTLER, Marli Kath. De quem é a responsabilidade na violência intrafamiliar. Barbarói. Santa Cruz do Sul, n. 7, p. 1-23, set. 1997.
[18] DSM IV (1995).
[19] KOLB, Lawrence. Psiquiatria clínica. São Paulo: Interamericana, 1990.
[20] KALINA, Eduardo e KOVADLOFF, Santiago. Drogadição: indivíduo, família e sociedade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996.
[21] KAPLAN, H. I, SADOCK, B. J. Psicoterapia. Baltimore: Williams & Wilkins, 1981.
[22] WINNICOTT, D.W. Privação e delinqüência. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
[23] TRINDADE, J., p. 112.
[24] GOLDEMBERG, Gita W. A Violência doméstica e a “Lei do Pai”. In: Átler Ágora, n. 3, Florianópolis, 1995.
[25] Artigo 3º - “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais a pessoa humana, sem prejuízo integral de que trata esta lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”.
Artigo 4º - “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alienação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”
Artigo 7º - “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.”
[26] Em seu artigo 226, a Constituição normatizou que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
O artigo 227 dispõe que: “É dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
[27] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
[28] MARINHO, Nelson Janot. Construindo a cidadania. São Paulo: PUC-Editora Saraiva, 1996.