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Argüição de descumprimento de preceito fundamental:

análise à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

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I - Introdução

1 – A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental no Sistema Jurídico Brasileiro

A Constituição Federal de 1988 ampliou o sistema de controle de constitucionalidade, dentre outros modos, com a criação da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, com a amplitude de legitimados para propor a ação direta de inconstitucionalidade e com a previsão da argüição de descumprimento de preceito fundamental, no seu artigo 102, parágrafo único.

A inclusão da argüição de descumprimento de preceito fundamental foi uma inovação trazida pela atual Carta Política, vez que nunca tinha figurado nas outras Constituições que a precederam. O constituinte de 1988, portanto, introduziu uma novidade no ordenamento jurídico brasileiro.

Com a Emenda Constitucional nº 03/93, que instituiu a ação declaratória de constitucionalidade ocorreu um acréscimo de parágrafos ao artigo 102 da Carta Magna, e a argüição de descumprimento de preceito fundamental passou a ser tratada em seu artigo 102, §1º, verbis:

Art. 102, § 1º."A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei".

O constituinte originário apenas estabeleceu como competente para julgar a argüição o Supremo Tribunal Federal, deixando ao legislador ordinário a tarefa de fixar os contornos da lei de regulamentação.

A argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevista na Constituição Federal, não é uma norma constitucional auto-executável ou auto-aplicável. Na classificação adotada por JOSÁ AFONSO DA SILVA a argüição é uma norma constitucional de eficácia limitada ou reduzida, necessitando de uma norma que lhe dê operatividade. [1]

Tanto é uma norma que não tem aplicabilidade, que o Supremo Tribunal Federal rejeitava as argüições de descumprimento de preceito fundamental que lhe eram submetidas, por lhes faltar uma lei regulamentadora, exigida pela Constituição Federal. [2][3]

A falta de regulamentação do artigo 102, §1º da Constituição Federal, levou o Judiciário a manifestar-se sobre a argüição em processos distintos, em que os autores insistiam em provocar do Supremo Tribunal Federal uma resposta, ignorando o caráter de norma limitada a uma lei regulamentadora. [4]

Antes da regulamentação do art. 102, § 1º da Constituição Federal pela Lei nº 9.882/99, CLÉMERSON MERLIN CLÉVE, propôs um esboço de como poderia ser a norma que daria efetividade à argüição de descumprimento de preceito fundamental:

"Caberia, em princípio, à lei (i) definir os preceitos processuais protegidos pelo meio processual, (ii) caracterizá-los como mecanismo supletivo (cabimento no caso de inexistência ou insuficiência de outro meio processual – recurso ou ação) e, finalmente, (iii) exigir a exaustão das vias ordinárias (sob pena de "inflação de ações" e de "banalização" do instituto). Por outro lado, dotando-se de efeitos vinculantes todas as decisões de mérito da Excelsa Corte em processo objetivo, seria o caso de a lei exigir, ainda, como pressuposto, a inexistência de manifestação anterior do Supremo sobre a questão". [5]

A regulamentação do art. 102, §1º da Constituição Federal vinha sendo discutida há muito tempo no cenário jurídico nacional, tendo sido, inclusive, tema de debates na revisão constitucional de 1994, que discutiu a possibilidade de criação de um incidente de inconstitucionalidade no Brasil. Na ocasião, não foram aprovadas as propostas apresentadas.

Neste intervalo de tempo, vários projetos de lei foram apresentados, de forma a instituir o incidente de constitucionalidade, com a regulamentação do artigo 102, §1º da C.F.

Talvez a característica principal em quase todos estes projetos de reforma da Constituição fosse a necessidade da introdução da argüição de descumprimento de preceito fundamental ser regulada por uma emenda constitucional.

Com a Portaria nº 572/97, foi o projeto de regulamentação formulado por uma comissão de juristas, composta por Celso Ribeiro Bastos, Gilmar Ferreira Mendes, Arnoldo Wald, Ives Gandra Martins e Oscar Dias Corrêa. Tendo o projeto de lei sido aprovado com substitutivo do Deputado Prisco Viana, e convertido na Lei nº 9.882/99.

GILMAR FERREIRA MENDES, comentando o teor da regulamentação do art. 102, § 1º da Carta Magna, pela Lei nº 9.882/99, preleciona:

"O novo instituto, sem dúvida, introduz profundas alterações no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.

Em primeiro lugar, porque permite a antecipação de decisões sobre controvérsias constitucionais relevantes, evitando que elas venham a ter um desfecho definitivo após longos anos, quando muitas situações já se consolidaram ao arrepio da "interpretação autêntica" do Supremo Tribunal Federal.

Em segundo lugar, porque poderá ser utilizado para – de forma definitiva e com eficácia geral – solver controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito ordinário pré-constitucional em face da nova Constituição que, até o momento, somente poderia ser veiculada mediante a utilização do recurso extraordinário.

Em terceiro, porque as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal federal nesses processos, haja vista a eficácia erga omnes e o efeito vinculante, fornecerão a diretriz segura para o juízo sobre a legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico, editados pelas diversas entidades municipais. A solução oferecida pela nova lei é superior a uma outra alternativa oferecida, que consistiria no reconhecimento da competência dos Tribunais de Justiça para apreciar, em ação direta de inconstitucionalidade, a legitimidade de leis ou atos normativos municipais em face da Constituição Federal. Além de ensejar múltiplas e variadas interpretações, essa solução acabaria por agravar a crise do Supremo Tribunal Federal, com a multiplicação de recursos extraordinários interpostos contra as decisões proferidas pelas diferentes Cortes estaduais". [6]

ANDRÉ RAMOS TAVARES, analisou assim a argüição de descumprimento de preceito fundamental, ante a regulamentação da Lei nº 9.882/99:

"verificar-se-á que a argüição é cabível sempre, e absolutamente sempre, que se observar a violação de preceito constitucional de natureza fundamental. E não oferece maior resistência o argumento de que em muitos casos já haveria uma ação própria, que é a ação direta de inconstitucionalidade (por ação, por omissão e mesmo a interventiva), com o que se teria uma superposição desnecessária de dois institutos com finalidades idênticas.

A possibilidade de utilização de duas ações diversas que pretendem alcançar uma mesma finalidade, dentro da chamada jurisdição constitucional, de há muito já existe no Direito pátrio. Assim, a duplicidade não seria argumento com força obstar a compreensão aqui propugnada para o novel instituto.

Não obstante admitir-se a possibilidade de que mais de uma ação preste-se ao mesmo objetivo, a verdade é que, com a introdução da argüição, para ela desviam-se todos os descumprimentos de preceitos fundamentais da Constituição. (...)

Assim, no que respeita aos preceitos constitucionais fundamentais, o objeto da ação genérica foi totalmente absorvido pela argüição, e isto pelos motivos doravante abordados." [7]

A íntegra da Lei 9.882/99, em especial o parágrafo único do artigo 1º; o § 3º do artigo 5º; o artigo 10, caput, e seu §3º; e o artigo 11, que regulamentou a ADPF foi objeto de impugnação via Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 2231, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, impetrada perante o Supremo Tribunal Federal.

Um dos motivos da interposição de citada ADIn foi que, segundo o entendimento dos impetrantes, somente a Constituição Federal poderia instituir hipóteses de controle abstrato de constitucionalidade. A lei ordinária não deteria esse poder. Assim, restaria caracterizado o vício formal de constitucionalidade de supramencionada lei, por alargamento da competência do Supremo Tribunal Federal via norma hierarquicamente inferior à Carta Política.

Ocorre que até a presente data o Supremo Tribunal Federal não proferiu qualquer decisão em sede liminar ou de mérito, estando os autos conclusos ao Ministro Néri da Silveira.

Assim, tem-se que a argüição de descumprimento de preceito fundamental acrescentou-se às demais formas de controle de constitucionalidade, visando a preservação da supremacia da Constituição, sendo a única norma constitucional a definir competência do Supremo Tribunal Federal que não era auto-aplicável.

2 – Conceito de Preceito Fundamental

A delimitação do conceito de preceito fundamental encontra posições díspares na doutrina, que não possui uniformidade no entendimento do que seriam os preceitos fundamentais e quais preceitos justificariam uma ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental.

No tocante ao posicionamento dos Tribunais, até o presente momento, não temos manifestações jurisprudenciais que possam clarear o assunto, vez que o Supremo Tribunal Federal nas ações de descumprimento de preceito fundamental postas em litígio, que já somam hoje o número de 16 ações, não proferiu nenhum julgamento de mérito, ficando as decisões até agora limitadas ao não conhecimento da demanda por falta de pressupostos processuais ou condições da ação.

Assim, cabe oferecer um apanhado do entendimento doutrinário pátrio do que seriam os preceitos fundamentais objetos da ação em estudo.

Na concepção de JOSÉ AFONSO DA SILVA, os preceitos fundamentais são, além dos princípios fundamentais, todas as prescrições que dão o sentido básico do regime constitucional, como são, por exemplo, as que apontam para a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e especialmente as designativas de direitos e garantias fundamentais" [8]

Para GILMAR FERREIRA MENDES, o conceito de preceitos fundamentais não é uma tarefa fácil:

"É muito difícil indicar, a priori, os preceitos fundamentais da Constituição passíveis de lesão tão grave que justifique o processo e julgamento da argüição de descumprimento.

Não há dúvida de que alguns desses preceitos estão enunciados, de forma explícita, no texto constitucional.

Assim, ninguém poderá negar a qualidade de preceitos fundamentais da ordem constitucional aos direitos e garantias individuais (art. 5º, entre outros). Da mesma forma, não se poderá deixar de atribuir essa qualificação aos demais princípios protegidos pela cláusula pétrea do art. 60, § 4º, da Constituição: princípio federativo, a separação dos poderes, o voto direto, universal e secreto." [9]

Alguns autores sustentam que o artigo 102, § 1º da Constituição ao preceituar "descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição", abriu a possibilidade de encontrarmos preceitos fundamentais fora da Constituição, pois se é decorrente da Constituição, não necessariamente deverá estar contido nela. E remetem ao disposto no § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, que admite a existência de outros direitos e garantias além daqueles expressos na Constituição "decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados (ou dos tratados internacionais firmados)".

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MARIA GARCIA interpreta assim a idéia de preceito fundamental:

"o termo decorrente (decursivo, derivado, conseqüente, segundo o Dicionário Aurélio) faz concluir, primeiramente, pela possibilidade de localização do preceito externamente à Constituição. Porquanto, se é decorrente da Constituição não deverá estar, necessariamente, contido na Constituição. Não expressamente. E, neste particular, obrigatória se torna a lembrança do disposto no § 2o do art. 5º, o qual admite a existência de ´outros direitos e garantias´, além daqueles expressos na Constituição, ´decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados´ (ou dos tratados internacionais firmados) " [10]

Em síntese, não existe um consenso na doutrina sobre o conceito e o real alcance dos preceitos fundamentais. As controvérsias começam com a localização dos preceitos na Constituição, existindo autores que entendam como preceitos aqueles situados dentro da Carta Magna, outros autores já afirmam que a Constituição não foi taxativa e que portanto, os preceitos podem ser encontrados fora da Constituição, desde que decorrentes dela, e finalmente, há autores que entendem estarem os preceitos dentro e fora da Constituição.

Parece certo que a conceituação precisa do que são os preceitos fundamentais que podem ser objeto da ação de descumprimento de preceito fundamental nos venha a ser dado pelo Supremo Tribunal Federal.

De acordo com o entendimento de OSCAR DIAS CÔRREA, um dos integrantes da Comissão que elaborou o anteprojeto da Lei de regulamentação da argüição de descumprimento de preceito fundamental:

"Cabe exclusivamente e soberanamente ao STF conceituar o que é descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição, porque promulgado o texto constitucional é ele o único, soberano e definitivo intérprete, fixando quais são os preceitos fundamentais, obediente a um único parâmetro – a ordem jurídica nacional, no sentido mais amplo. Está na sua discrição indicá-los". [11]

O Ministro CARLOS VELLOSO, em recente ensaio, assim se manifestou:

"Na há dúvida de que não será objeto da argüição a lesão a qualquer norma constitucional. A lesão a qualquer norma constitucional será objeto da ação direta de inconstitucionalidade. A norma constitucional objeto da argüição de descumprimento é a que compreende prescrição constitucional fundamental. Todavia, é preciso deixar claro, também, que preceito fundamental é expressão que abrange mais do que princípios fundamentais (C.F., arts. 1º a 4º)." [12]

Em uma construção doutrinária modesta, elaboramos um conceito de preceitos fundamentais: abrangeriam eles os princípios fundamentais da Constituição Federal (art. 5º, art. 34, art. 60), bem como aqueles princípios maiores que sobrevivem à todas as Constituições, e dão origem aos princípios fundamentais, como a liberdade e a igualdade.

Preceitos fundamentais, então, serão aqueles fundamentos, as fontes, onde uma Constituição se origina e a razão porque ela se mantém. São os preceitos fundamentais que estruturam a Constituição, sem eles, nada assegura a permanência da Constituição no mundo jurídico.

Enquanto tais preceitos forem assegurados, a Constituição será plena e aplicável; quando eles são violados, surge o caos, e uma revolução se instala para a criação de uma nova Constituição, que se comprometerá em assegurá-los.

Preceitos fundamentais, portanto, devem ser encarados como os alicerces que sustentam uma Constituição no mundo jurídico, a sua estrutura, faltando-os, o texto constitucional não passa de uma mera lei, que pode ser substituída por outra.

3 – Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e o Direito Comparado

Temos no direito comparado alguns tipos de institutos que servem de parâmetros aos autores nacionais ao dissertarem sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Os dois institutos mais importantes são o recurso constitucional alemão e o recurso de amparo espanhol.

JOSÉ AFONSO DA SILVA ao analisar a argüição de descumprimento de preceito fundamental chega à conclusão de que o instituto da argüição de descumprimento fundamental teria uma natureza semelhante ao recurso constitucional alemão (verfassungsbeschwerde). [13]

CLÈMERSON MERLIN CLÉVE em sentido contrário, afirma que o recurso constitucional alemão não pode ser simplesmente transportado para o ordenamento jurídico brasileiro, pois o recurso extraordinário se presta à mesma finalidade. Dessa foram, a argüição de descumprimento de preceito fundamental possuiria uma finalidade muito menor do que aquela abrangida pelo recurso constitucional alemão. [14]

No ensinamento de KONRAD HESSE sobre o recurso constitucional alemão:

"um recurso constitucional só é admissível se o recorrente não pôde eliminar a violação de direitos fundamentais afirmada por interposição de recursos jurídicos, ou de outra forma, sem recorrer ao Tribunal Constitucional Federal" [15]

GILMAR FERREIRA MENDES explica sinteticamente o teor do recurso constitucional alemão:

"Assim, ao contrário do que se verifica em outras ordens constitucionais, que limitam, muitas vezes, o recurso constitucional aos casos de afronta aos direitos fundamentais, optou o constituinte brasileiro por admitir o cabimento do recurso extraordinário contra qualquer decisão que, em única ou última instância, contrariar a Constituição.

Portanto, a admissibilidade do recurso constitucional não está limitada, em tese a determinados parâmetros constitucionais, como é o caso da verfassungsbeschwerde na Alemanha (Lei Fundamental, art. 93, n.4ª), destinada, basicamente, à defesa dos direitos fundamentais.

Assinale-se, porém, que, mesmo nos sistemas que admitem o recurso constitucional apenas com base na alegação de ofensa aos direitos fundamentais, surgem mecanismos ou técnicas que acabam por estabelecer uma ponte entre os direitos fundamentais e todo o sistema constitucional, reconhecendo-se que a lei ou ato normativo que afronta determinada disposição do direito constitucional objetivo ofende, ipso jure, os direitos individuais, seja no que se refere à liberdade de ação, seja no que diz respeito ao princípio da reserva legal." [16]

Na Alemanha, o recurso constitucional é voltado para a defesa dos direitos fundamentais, possuindo, apesar disso, certos mecanismos que permitem ligar esses direitos fundamentais ao resto da Constituição.

Na Espanha, têm-se como equivalente à argüição de descumprimento de preceito fundamental, na opinião dos doutrinadores nacionais, o Recurso de Amparo, e apesar da sua denominação de recurso é ele um procedimento especial, processo independente, que tem por objetivo proteger os direitos fundamentais e as liberdades públicas reconhecidas pela Constituição (ex: princípio da igualdade, à integridade física, ao direito à vida), e pode ser interposto por qualquer pessoa, natural ou jurídica, desde que invoque um legítimo interesse, pelo Defensor do Povo ou pelo Ministério Público, devendo-se acrescentar que para ser invocado, devem ser esgotadas todas as vias judiciais cabíveis. Portanto, o Recurso de Amparo Espanhol não é um recurso, mas sim uma perfeita ação autônoma.

É interessante ressaltar que, no direito espanhol, apenas cabe o recurso de amparo quando não existir mais nenhum recurso cabível contra o ato ofensivo, quando todos os outros recursos tenham sido esgotados.


II – Natureza Jurídica da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

1 – Modalidades de argüição

A argüição de descumprimento de preceito fundamental pode apresentar-se sob duas modalidades: a autônoma ou direta e a incidental ou indireta.

A argüição sob a forma autônoma está contida no art. 1º, caput, da Lei nº 9.882/99:

"Art. 1º. A argüição prevista no § 1º do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público". [17]

A argüição autônoma tem natureza de ação, que pode ser proposta para reparar lesão decorrente de um ato do poder público, seja este ato federal, estadual ou municipal.

A argüição sob a modalidade incidental ou indireta está contida no parágrafo único do artigo 1º:

"Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:

I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição." [18]

Este segundo caso revela a natureza incidental ou indireta da argüição de descumprimento de preceito fundamental, pressupondo a existência de controvérsia sobre lei ou ato normativo, de todos os órgãos políticos autônomos, bem como dos anteriores à Constituição.

2 – Natureza jurídica da argüição

Em relação à natureza jurídica da argüição de descumprimento de preceito fundamental, o legislador ordinário estabeleceu o seu caráter subsidiário ao instituir:

"Art. 4º (...)

§1º Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade." [19]

Ousando discordar do legislador que regulamentou a Lei de argüição, não nos parece que o constituinte originário quis fazer da argüição de descumprimento de preceito fundamental uma mera ação subsidiária, utilizada apenas no caso em que nenhuma outra ação pudesse ser aplicada.

Não teria sentido o constituinte instituir tal ação no mesmo patamar constitucional das outras ações e reservar a ela uma função de subsidiariedade em relação às demais formas de controle de constitucionalidade.

A argüição de descumprimento de preceito fundamental foi instituída pelo constituinte originário no sentido de proteger os preceitos fundamentais, o que deve ser analisado é o fato de que as outras ações de controle de constitucionalidade podem estar sendo usadas para proteger tais preceitos, mas com a regulamentação da ADPF não existe mais sentido em lançar mão de uma ação geral quando existe uma ação específica e apta a proteger os preceitos fundamentais.

Se a argüição foi criada para proteger os preceitos fundamentais, então são as outras ações de controle de constitucionalidade que serão subsidiárias a ela em relação aos preceitos fundamentais, e não o contrário, porque as outras ações não tem por objeto específico tais preceitos, mas sim uma série de outros atos normativos e leis em geral contrários à Constituição.

Seguindo esta linha de argumentação, discordamos do caráter subsidiário apresentado pelo legislador ordinário em relação à ADPF, porque não se visualiza que tenha sido esta a idéia do constituinte originário.

Assim, fazemos um apanhado na doutrina sobre o entendimento dos autores brasileiros acerca do natureza da ADPF e buscamos na jurisprudência o que foi apreciado sobre o assunto.

ANDRÉ RAMOS TAVARES não crê no caráter de subsidiariedade da argüição e preleciona:

"A argüição, portanto, não é instituto com caráter "residual" em relação à ação direta de inconstitucionalidade (genérica ou omissiva. Trata-se, na realidade, de instrumento próprio para resguardo de determinada categoria de preceitos (os fundamentais), e é essa a razão de sua existência. Daí o não se poder admitir o cabimento de qualquer outra ação para a tutela direta desta parcela de preceitos, já que, em tais hipóteses, foi vontade da Constituição o indicar, expressamente, que a argüição será a modalidade cabível, o que exclui as demais ações." [20]

GILMAR FERREIRA MENDES, nos traz o seu entendimento, afirmando que a natureza subsidiária da ADPF deve ser encarada sob o prisma das outras ações de controle concreto de constitucionalidade:

"Assim, tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da argüição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional. Nesse caso, cabível a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, ou, ainda, a ação direta por omissão, não será admissível a argüição de descumprimento. Em sentido contrário, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, isto é, não se verificando a existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla e geral e imediata, há de se entender possível a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental." [21]

O Relator da ADPF, Ministro ILMAR GALVÃO entendeu que a ação seria inviável quando existisse qualquer outra ação, seja ela de controle concentrado ou difuso, diminuindo, assim, o campo de incidência da ADPF. [22]

Parece-nos recomendável, para a sobrevivência da ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental no sistema de controle de constitucionalidade, que ao firmar sua jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal não interprete de forma literal o § 1º do art. 4º da Lei 9.882/99, pois, caso contrário, sempre existirá outras ações aptas a questionarem a violação de um direito, ficando a ADPF como letra morta, restringindo-se a sua aplicação tão somente para os casos de controle de normas municipais e pré-constitucionais, desde que outras ações não sejam mais apropriadas para as hipóteses citadas.

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Sobre o autor
Luiz Henrique Sousa de Carvalho

procurador do Estado de Goiás, professor de Direito da Universidade Salgado de Oliveira

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Luiz Henrique Sousa. Argüição de descumprimento de preceito fundamental:: análise à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2948. Acesso em: 22 nov. 2024.

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