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Argüição de descumprimento de preceito fundamental:

análise à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

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III - O objeto da ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

A Lei nº 9.882/99, que regulamentou a argüição de descumprimento de preceito fundamental estabeleceu como seu objeto:

"Art. 1º A argüição prevista no § 1º do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.

Parágrafo único. Caberá também a argüição de descumprimento de preceito fundamental:

I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.

II – (vetado)" [23]

Para GILMAR FERREIRA MENDES:

"De certa forma, a argüição de descumprimento vem completar o sistema de controle de constitucionalidade de perfil relativamente concentrado no Supremo Tribunal Federal, uma vez que as questões que até então não podiam ser apreciadas no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade), serão objeto de exame no âmbito do novo procedimento". [24]

Sob o disposto no caput do artigo 1º não pairam incertezas, pois é um retrato fiel da Constituição Federal, traduzindo o pensamento do constituinte originário.

As polêmicas surgem na doutrina em relação ao parágrafo único do art. 1º, cuja redação vai além do estabelecido pela Constituição, permitindo-se a observação de dois extremos, onde o constituinte originário foi econômico com as palavras e o legislador ordinário foi mais ousado ao introduzir alterações bruscas no sistema de constitucionalidade.

Talvez por ocasionar tão profundas modificações, tenham se levantado contra a Lei 9.882/99 pesadas críticas, taxando-a de inconstitucional. Os reclamos não ficaram dispersos apenas nos textos doutrinários, mas foram bater à porta do guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, mediante a propositura da já mencionada ADIN nº 2231-8.

Tendo em vista o franco posicionamento doutrinário no sentido da inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 1º, buscamos na jurisprudência algumas decisões que podem nortear qual será a posição do Supremo Tribunal Federal em relação ao assunto. É conveniente frisar que algumas decisões apontadas são entendimento pacífico naquela Corte, enquanto outras se mostram apenas como posições isoladas, mas não menos defendidas.

O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que as normas municipais só podem ter sua constitucionalidade verificada mediante o controle difuso, sendo necessária a propositura de recurso extraordinário para a sua apreciação. [25]

O controle direto não é atualmente admitido, mas tal fato pode ser justificado por não possuírem, tanto a ação direta de inconstitucionalidade, como a ação declaratória de constitucionalidade, previsão legal para a inclusão de tais normas no controle de constitucionalidade abstrato.

Talvez agora, com a inclusão expressa das normas municipais como passíveis de uma ação de constitucionalidade, a ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental, o Supremo Tribunal Federal modifique o seu entendimento e aceite apreciar as normas municipais em sede de controle abstrato de constitucionalidade.

Sem adentrar no mérito de ser o parágrafo único da Lei 9.882/99 inconstitucional ou não, é relevante observar que em relação ao controle de normas municipais, se declarada constitucional a argüição de descumprimento de preceito fundamental esta será de grande valia, em razão de ser muito grande o número de leis e atos normativos municipais contestados perante o Supremo Tribunal Federal em sede de recurso extraordinário.

Ponto interessante diz respeito ao controle abstrato de constitucionalidade em relação às normas pré-constitucionais. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal entende ser cabível apenas o controle por via incidental, aplicando-se os princípios de direito intertemporal, sendo a aferição de constitucionalidade destinada apenas às normas pós-constitucionais.

A ADIn nº 02, relatada pelo Ministro Paulo Brossard, com a ementa abaixo transcrita, ilustra bem o posicionamento da Suprema Corte:

"EMENTA. CONSTITUIÇÃO. LEI ANTERIOR QUE A CONTRARIE. REVOGAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE. IMPOSSIBILIDADE.

A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição; inconstitucional, na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária.

Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinqüentenária.

Ação direta de que não se conhece por impossibilidade jurídica do pedido". [26]

Pode parecer difícil que o Supremo Tribunal Federal reveja seu posicionamento e inclua as normas pré-constitucionais entre as normas legitimadas a sofrer um controle de constitucionalidade.

Isto porque, todo um sistema teria de ser modificado, novas bases teriam de ser construídas, gerando assim uma instabilidade jurídica a que o Supremo Tribunal Federal talvez não queira ocasionar.

Mas, é oportuno lembrar que, na ADIn nº 2, o Ministro Sepúlveda Pertence defendeu a tese da inconstitucionalidade superveniente das normas pré-constitucionais em conflito com a Constituição em vigor, tendo seu voto sido acompanhado por mais dois ministros, os Ministros Marco Aurélio e Néri Da Silveira. Assim, é conveniente relembrar uma máxima jurídica: "voto vencido hoje, vencedor amanhã".

Os defensores da inclusão das normas pré-constitucionais e das normas municipais no controle de constitucionalidade possivelmente argumentarão que o Supremo Tribunal Federal, em ambas as hipóteses, declarou faltar-lhe competência, tendo em vista uma previsão expressa da Constituição Federal.

Ao que, os críticos dessa ampliação, certamente responderão que não há uma previsão expressa na Constituição, porquanto competência também não há, usurpando o legislador ordinário as funções do constituinte originário ao ampliar algo que não deveria ser ampliado.


IV - Legitimados para propor a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental

O Artigo 2º da Lei nº 9.882/99 aponta como legitimados para propor a ação de descumprimento de preceito fundamental os mesmos sujeitos aptos a propor a ação direta de inconstitucionalidade.

A ação de descumprimento de preceito fundamental manteve os mesmos legitimados estabelecidos pela Constituição Federal e estendidos pela Lei da ação direta de inconstitucionalidade, para o caso de controle concentrado pela via da ação direta.

Podem propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade:

I - o Presidente da República;

II - a Mesa do Senado Federal;

III - a Mesa da Câmara dos Deputados;

IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou a Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal;

V - o Governador de Estado ou o Governador do Distrito Federal;

VI - o Procurador-Geral da República;

VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;

VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;

IX - Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional." [27]

É importante elucidar se vigora em relação à ação de descumprimento de preceito fundamental a necessidade de pertinência temática que o Supremo Tribunal Federal entendeu como condição objetiva para a legitimidade ativa ad causam das ações ajuizadas por Mesa de Assembléia Legislativa dos Estados e do Distrito Federal, por Governador de Estado e do Distrito Federal, Confederação sindical e entidade de classe de âmbito nacional, em sede de controle normativo abstrato.

Em regra, nos processos de controle de constitucionalidade não existem partes e nem lides, pois trata-se a ação de descumprimento de preceito fundamental de um processo objetivo, sendo as partes apenas formais.

Na lição de J. J GOMES CANOTILHO:

"Não obstante se ter falado de legitimidade processual activa e de legitimidade processual passiva, o processo abstracto de controlo e de normas não um processo contraditório, no qual as partes "litigam" pela defesa de direitos subjectivos ou pela aplicação de direitos subjectivamente relevantes.

Trata-se fundamentalmente, de um processo objectivo sem contraditores, embora os autores do acto normativo submetidos a impugnação possam ser ouvidos (daí a utilidade de se falar em legitimidade processual passiva)." [28]

Os legitimados passivos da ação de descumprimento de preceito fundamental seriam os Órgãos, Entidades ou Autoridades chamadas ao processo para prestarem informações sobre um ato de sua autoria que lesionou ou ameaçou de lesão um preceito fundamental.

Proposta a ação de descumprimento de preceito fundamental, o legitimado não poderá mais dela desistir, pois o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal traz em seu artigo 169, §1º, uma norma proibitiva:

" Art. 169. O Procurador-Geral da República poderá submeter ao Tribunal, mediante representação, o exame de lei ou ato normativo federal ou estadual, para que seja declarada a sua inconstitucionalidade.

§1º. Proposta a representação, não se admitirá desistência, ainda que afinal o Procurador-Geral se manifeste pela sua improcedência." [29]


V - Efeitos da ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental

A lei da ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental, no rastro das ações declaratória de constitucionalidade e direta de inconstitucionalidade, estipulou em seu artigo 10, § 3º que a decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público". [30]

Este dispositivo tem a finalidade de dar às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal a condição de comandos legais, que deverão ser obedecidos pelos demais Tribunais, seja de que grau for, e também aos demais órgãos dos outros poderes.

Uma particularidade do efeito vinculante é do de tornar a decisão extra partes, isto porque, a decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal deverá ser observada aos casos análogos, em que litigam partes distintas, obrigando-as.

O que se discute na doutrina é o veículo pelo qual o efeito vinculante e a eficácia erga omnes foram colocados, isto porque, a ação declaratória de constitucionalidade teve o seu efeito vinculante introduzido mediante uma emenda à Constituição [31], não sem antes suscitar sérias discussões a respeito de sua constitucionalidade.

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Relembramos que, durante a tramitação do projeto que introduziu a Emenda Constitucional nº 03/96 no ordenamento jurídico, a questão do efeito vinculante na ação declaratória de constitucionalidade foi muito debatido, tendo os opositores do efeito destacado alegado que, a medida era inconstitucional, por afrontar o princípio da separação dos poderes, o contraditório, o devido processo legal, o duplo grau de jurisdição, o juiz natural e uma série de outros argumentos.

Observe-se que os mesmos argumentos utilizados naquela oportunidade são novamente levantados pela doutrina em face da ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental, mas o que torna tudo mais polêmico é o fato do efeito vinculante e da eficácia erga omnes da ADPF não ter sido introduzido por um processo de elaboração legal mais complexo, que seria a emenda constitucional, mas sim por uma lei infraconstitucional, lei ordinária, com processo de tramitação relativamente menos elaborado.

Os críticos dos efeitos da ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental inovam em relação aos argumentos que apontavam em relação à ação declaratória de constitucionalidade, acrescentando agora ao rol de motivos, uma inconstitucionalidade material.


VI - Conclusão

Regulamentou-se a argüição de descumprimento de preceito fundamental para suprir no ordenamento jurídico brasileiro algumas lacunas no sistema de controle concentrado de constitucionalidade, visando assim a possibilidade de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal de algumas matérias, como as normas pré-constitucionais e as normas municipais, que antes só era possível por outras ações de controle difuso (exemplos: Recurso Extraordinário e Reclamação).

A regulamentação da lei da argüição de descumprimento de preceito fundamental talvez tenha pecado ao se distanciar da idéia que o Constituinte Originário tinha em mente quando a inseriu no texto constitucional, isto porque, tratar da argüição como uma ação subsidiária talvez implique em retirar grande parte de seu âmbito de incidência, colocando-a em uma posição inferior às outras ações no sistema de controle de constitucionalidade.

A argüição de descumprimento de preceito fundamental, se bem aplicada, poderá resolver todos os casos que envolvam preceitos fundamentais, e isso significa retirar do campo da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade tais preceitos, que hoje são defendidos por essas ações.

Uma ação que se compromete a defender os preceitos fundamentais, que são tão importantes na vida política de um povo, que os autores nacionais acham difícil conceituar, talvez pela sua magnitude, não poderá ser colocada em um patamar inferior ao das demais ações de controle de constitucionalidade, mas sim em igual nível ou até mesmo superior.

É evidente, também, que a partir do momento que a doutrina e a jurisprudência fixarem um conceito de preceitos fundamentais, a argüição passará a ter uma importância no direito brasileiro de grandes proporções, porque se for admitido que só ela poderá defender os preceitos fundamentais, que são os pilares da Constituição Federal, então esta ação se constituirá na mais importante das ações de controle de constitucionalidade.

Além de que, a argüição se mostra a mais democrática das ações de controle de constitucionalidade, ao permitir que qualquer cidadão do povo dirija-se ao Ministério Público, fiscal da lei, e solicite a propositura de uma ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental.

As demais ações só admitem a propositura por entidades de representação do povo, como os partidos políticos com representação no Congresso Nacional, por exemplo.

E quem mais legitimado que o cidadão, requerendo ao fiscal da lei, para pedir a propositura da argüição de descumprimento de preceito fundamental? Porque se a Constituição é elaborada para o povo, ninguém é mais interessado em manter seus basilares do que o próprio detentor do poder constituinte.

Em que pese ter sido, de um lado, a ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental, criada para proteger a governabilidade, na medida em que concentrou poderes no Supremo Tribunal Federal, esvaziando a competência dos demais juizes e tribunais, de outro lado, é inegável que trouxe inovações de forma a tutelar direitos constitucionais do cidadão em face do Estado.

Um outro dado significativo em relação à argüição é o seu efeito vinculante e sua eficácia erga omnes, porque se os preceitos fundamentais são tão primordiais, esses efeitos tornam-se essenciais, ao não permitir que a Constituição seja sistematicamente violada por decisões conflitantes, pondo em perigo toda a estrutura constitucional.

Enfim, a argüição de descumprimento de preceito fundamental deve ser encarada como uma ação capaz de proteger todo o ordenamento jurídico, permitindo um controle abstrato mais efetivo da constitucionalidade, uma vez que alcança as normas pré-constitucionais e municipais, protegendo os preceitos fundamentais e, assim, protegendo o próprio direito a partir do momento que protege os preceitos fundamentais, protegendo assim, o próprio direito.

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Sobre o autor
Luiz Henrique Sousa de Carvalho

procurador do Estado de Goiás, professor de Direito da Universidade Salgado de Oliveira

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Luiz Henrique Sousa. Argüição de descumprimento de preceito fundamental:: análise à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2948. Acesso em: 4 nov. 2024.

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