Em Portugal, as infrações administrativas em razão dos ilícitos administrativos são chamadas contra-ordenações. A contra-ordeonação situa-se entre a infração penal e a infração administrativa propriamente dita, misturando elementos de uma e de outra, porém sem com elas se identificar absolutamente. A infração é de natureza administrativa, mas o tratamento a ela conferido está mais para o Direito Penal.
O Direito Penal não consegue comportar tantos e tão variados ilícitos e sanções sem ficar sujeito a perder a sua força impositiva e, consequentemente, vulgarizar-se[1]. Ademais, os tribunais em Portugal não se mostravam em condições de processar e julgar o enorme número de infrações que surgiam, muitas delas com poucas ou nenhuma dignidade jurídica suficiente em termos de gravidade e de repercussão étnico-jurídica para serem apreciadas diretamente pelo poder judiciário.
Diante de tal quadro, a partir de 1950 propagaram-se, na Europa, os movimentos de descriminalização em busca da purificação do Direito Penal[2], o qual deveria tratar apenas e tão somente dos ilícitos que estivessem relacionados aos bens jurídicos sociais fundamentais e que, por conseguinte, apresentassem grande nocividade social.
Segundo Nuno B. M. Lumbrales[3], o regime geral das contra-ordenações surgiu com o movimento de descriminalização que visava eliminar da legislação penal a incriminação de infrações de menor relevância, a fim de diminuir o volume de trabalho dos tribunais, mas mantendo os direitos do arguidos assegurados pela garantia do recurso judicial, à semelhança do que sucede no Direito Administrativo.
Busca-se, assim, evitar a descaracterização e subalternização do Direito Penal, pois a maior parte dos crimes ambientais, por exemplo, decorre da desobediência às prescrições de autoridades administrativas, o que coloca o Direito Penal em uma situação de acessoriedade administrativa, já que o Direito Penal não intervém autonomamente, dependendo do Direito Administrativo[4].
O direito contra-ordenacional, também denominado “de mera ordenação social”, nasceu em Portugal inspirado no modelo alemão das ordnungswidrigkeiten, por via do Decreto-Lei n.o 232/79, de 24 de Julho, face à necessidade de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal[5].
Conforme consta na exposição de motivos do Decreto-Lei n. 433/82, de 27 de outubro, “o direito criminal deve apenas ser utilizado como a última ratio da política criminal, destinado a punir as ofensas intoleráveis aos valores ou interesses fundamentais à conveniência humana, não sendo lícito recorrer a ele para sancionar infrações de não comprovada dignidade penal. Também o novo Código Penal, ao optar por uma política equilibrada da descriminalização, deixa aberto um vasto campo ao direito de ordenação social naquelas áreas em que as condutas, apesar de socialmente intoleráveis, não atingem a dignidade penal. Mas são, sobretudo, as necessárias reformas em domínios como as práticas restritivas da concorrência, as infracções contra a economia nacional e o ambiente, bem como a proteção dos consumidores, que tornam o regime das contra-ordenações verdadeiramente imprescindível. Só ele, com efeito, viabilizará uma política criminal racional, permitindo diferenciar entre os tipos de infracções e os respectivos arsenais de reacções”.
No curso da descriminalização, o legislador português optou por transpor muitos dos ilícitos considerados de menor relevância, seja por estarem relacionados a parcelas da ordem social que não eram tidas como fundamentais, seja por dizerem respeito estritamente à ordem administrativa, para um outro ramo do direito que não o penal. O sistema sancionador ficou restrito a duas esferas: a penal, minimalista e fechada, a qual expurgou inclusive as contravenções de sua seara e a esfera administrativa sancionadora, pluralista e heterogênea, a qual foi reorganizada para enfrentar tantos os ilícitos penais ou contravencionais agora descriminalizados, bem como as sanções administrativas propriamente ditas[6]. Assim, foi criado no direito português um novo tipo de sanção, a coima, que é menos grave que a sanção penal ou contravencional, pois não pode ser revertida em pena de prisão.
A diferença entre o crime e a contra-ordenação é que a antijuridicidade do primeiro está ligada à lesão de bens jurídicos, enquanto que a do segundo à mera desobediência administrativa.
Em razão da já mencionada crise do poder de polícia do Estado, em Portugal não se fala que a aplicação das sanções contra-ordenacionais decorrem do poder de polícia. Dr. Antônio Sequeira, Inspector Geral do IGAOT, afirma[7] que, embora não fosse de todo errado dizer que as contra-ordenações são aplicadas em razão do poder de polícia, melhor seria não usar esta expressão, pois em Portugal ela está mais associada a questões de segurança nacional. É mais adequado tratar como poder de autoridade da Administração.
Miguel Nogueira de Brito[8] afirma que não são do âmbito do direito de polícia as sanções administrativas em sentido próprio, tal como a punição do ilícito contra-ordenacional, pois tal sanção não teria relação direta e necessária com a atividade de controle de perigos, inerente ao poder de polícia.
Diogo Freitas do Amaral[9] trata as contra-ordenações rapidamente dentro do capítulo sobre o poder administrativo, não dentro do poder de polícia.
De toda sorte, Diogo Freitas do Amaral[10] ensina que o Poder Executivo sempre foi considerado por todos, e até pelos tribunais, como sendo titular de um poder sancionatório administrativo que se caracteriza por pertencer à Administração Pública, ser exercido por meio de sanções aplicadas por ato administrativo, ser atuado através de um procedimento administrativo, ter por objeto o castigo de ilícitos menos graves do que os crimes, ter por efeito a aplicação de sanções menos graves do que os crimes e, enfim, ser um poder administrativo submetido ao controle judicial dos tribunais, que por via de regra são os tribunais comuns e não os tribunais administrativos, em homenagem ao princípio tradicional de que aqueles, os tribunais comuns, são a jurisdição natural das questões sobre a liberdade e a propriedade.
A contra-ordenação tem por característica a aplicação da coima como sanção. A coima nada mais é que uma sanção pecuniária que não pode ser convertida em pena de privação/restrição de liberdade[11].
O procedimento administrativo sancionador português em matéria ambiental rege-se basicamente pela Lei de Bases do Ambiente (Lei n. 11/87, de 07 de abril), Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais (Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto) e, subsidiariamente, pelo Regime Geral das Contra-Ordenações (DL 433/82, de 27 de outubro). O Regime Geral das Contra-Ordenações, por sua vez, determina a aplicação subsidiária, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, das normas do Código Penal.
Notas
[1] PRATES, Marcelo Madureira. Sanção Administrativa (...), op. cit., p.145.
[2] Ibidem, p. 145.
[3] LUMBRALES, Nuno B. M. Sobre o conceito Material de Contra-Ordenação. Lisboa: Universidade Católica, 2006, p. 99.
[4] SILVA, Vasco Pereira da. Verde Cor de Direito: lições de Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2002, p. 278.
[5] CASANOVA, Nuno Salazar; Claudio Monteiro. Comentários à Lei-quadro das contra-ordenações ambientais. Disponível em: <http://www.uria.com/documentos/publicaciones/1740/documento/art04.pdf?id=2137>.
[6] PRATES, Marcelo Madureira. Sanção Administrativa (...), op. cit., p. 146.
[7] Informação obtida em visita ao IGAOT.
[8] BRITO, Miguel Nogueira de. Direito Administrativo de Polícia. In OTERO, Paulo; GONÇALVES, Pedro (Coord.). Tratado de Direito Administrativo Especial. Volume I. Coimbra: Almedina, 2009, p. 427.
[9] AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de (...), op. cit., p. 286.
[10] Ibidem, p. 285.
[11] PEREIRA, Antônio Beça. Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas. Coimbra: Almedina, 2009, p. 26.