Estoura mais um escândalo na gestão pública. Policiais, fotos, declarações, servidores presos, gravações de negociatas. Os jornalistas, ávidos, perguntam pelo valor desviado, como em uma matematização do impacto daquela situação, valorizando o delito pelos seus valores e não pelos indícios de descontrole, em um hábito comum na comunicação social pátria.
Nas atividades de gestão, em diversas situações, o erário, a chamada “viúva”, se vê lesado com danos ocasionados por desvios, superfaturamentos, usos indevidos e um sem numero de atividades de uma criatividade ímpar e que floreiam os anais da gestão pública em diversas esferas. Para esse mal, pensou-se um remédio...
Na busca de recuperar os recursos do Erário nessas situações, surgiu um instituto denominado de Tomada de Contas Especial-TCE. No plano federal, a TCE tem amparo no Art. 71. da Constituição Federal de 1988, quando diz que cabe ao controle externo: “ julgar as contas (...) daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;” e também no contido na Lei nº 8.443/1992, a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, em seu “Art. 8° Diante da omissão no dever de prestar contas, da não comprovação da aplicação dos recursos repassados pela União, na forma prevista no inciso VII do art. 5° desta Lei, da ocorrência de desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos, ou, ainda, da prática de qualquer ato ilegal, ilegítimo ou antieconômico de que resulte dano ao Erário, a autoridade administrativa competente, sob pena de responsabilidade solidária, deverá imediatamente adotar providências com vistas à instauração da tomada de contas especial para apuração dos fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano.”
Constituindo a TCE medida de exceção, aplicada quando esgotadas as ações na via administrativa, trata-se de uma ação instaurada pelo gestor por moto próprio ou por determinação dos órgãos de controle, diante do indício de dano ao Erário, visando identificar o quanto foi desviado e por quem, de modo a instruir o julgamento pelos Tribunais de Contas, a quem compete, no nosso ordenamento jurídico, definir o mérito, determinando de forma cogente o ressarcimento do dano.
Cabe ao gestor administrativo a instauração da TCE e as normas vigentes, sabiamente, ainda que não estabeleçam competências concorrentes dos órgãos de controle na linha da avocação da instauração de TCE, indicou mecanismos cogentes que permitam a correção e a provocação do gestor envolvido, quando esse é leniente na instauração da TCE, para que estas não dormitem em gavetas da Administração.
Assim, a TCE não se confunde com a apuração disciplinar ou com inquéritos policiais, dado que a sua função precípua não se atém a punição dos envolvidos e sim ao ressarcimento do Erário, mesmo que colateralmente os Tribunais de Contas, nas suas funções judicantes, apliquem punições no julgamento dos processos. Esses instrumentos tem finalidades distintas, podem ser abertos no mesmo fato gerador e podem colaborar entre si, subsidiando–se mutuamente pelos seus achados e conclusões, ainda que independentes.
Cabe ressaltar também que uma boa TCE sustenta um bom processo judicante e de recuperação de ativos, e tem-se na observância do contraditório e da ampla defesa não só um respeito aos direitos fundamentais, mas também um instrumento operacional de apuração e na audição das vozes dos atores, na busca de uma verdade material que permita um ressarcimento mais efetivo.
O ressarcimento pela via da TCE percorre um longo caminho, desde a percepção do desvio e as medidas administrativas preliminares na busca do ressarcimento amigável, até a instauração propriamente dita, com certificação do controle interno e julgamento pelo Tribunal de Contas, com a decorrente propositura de ação de cobrança no âmbito da advocacia pública e a consequente execução de bens.
Um ciclo longo, de atores diversos e necessários, dado que a TCE figura como uma miniatura de um processo de contas ordinário, que enfrenta no seu decorrer não só os gargalos naturais da burocracia estatal, mas também a natural interveniência de representantes dos acusados, em trâmites recursais que fazem, no plano concreto, que estas ações de cobranças, etapas derradeiras, muitas vezes alcancem apenas os herdeiros até o limite dos patrimônios transferidos, em um cenário de baixo retorno de recursos desviados, demandando nesse fim um largo período de tempo, favorecendo a sensação de impunidade dos que desviam, ainda que exista um visível esforço dos atores envolvidos na otimização dos processos em seu âmbito de atuação.
Assim, o retorno de recursos padece de questões temporais, da demora do processamento, e de valoração, no sentido de retornos a menor do que o potencial detectado de dano e ainda, de um provisionamento futuro do recurso ressarcido em um contexto totalmente diverso do momento do dano. Por exemplo, se um estudante vai cursar seu doutorado em outro país e não retorna, quando da volta dos recursos a União, que financiou a sua bolsa, já nos encontramos em outro contexto tecnológico e as demandas iniciais jazem alteradas, retribuindo esse retorno para outra conjuntura. O fato é que precisávamos, no país, de profissional com aquela qualificação naquele momento e não logramos êxito.
Temos que ter em mente que a TCE se inscreve no contexto de um mecanismo eminentemente de exceção, previsto nas delegações naturais do setor público, na qual gestores ou designados na execução direta ou por meio de parceiros em convênios, recebem recursos para um determinado fim público e pela ausência de prestação de contas ou pela deficiência na execução de objetos pretendidos e suas correspondentes finalidades, estes agentes delegados se vêem instados a restituir os valores recebidos para a fonte original inutilizando todo um ciclo de delegação e execução.
Por isso, uma visão saneadora permeia o processo de TCE, possibilitando, pelo retorno do recurso ou a apresentação de prestação de contas, a sua extinção pela perda de objeto. A TCE não é um fim em si mesmo, pois se destina, em um contexto, diríamos assim, mais litigioso, ao resgate dos recursos mal empregados, visando remediar os efeitos danosos daquela gestão. Mas, a TCE não pode ser nosso prato principal, pois a gestão necessita se antecipar aos riscos, de modo a prevenir ocorrências danosas.
Com esse fim, os governos dos diversos entes tem utilizado de outros expedientes de caráter preventivo, no âmbito de cadastros públicos, que apontam pessoas físicas e jurídicas que deram causa ao dano, atuando pela via da transparência e do impedimento de recebimento de novos recursos, visam aumentar a credibilidade do sistema pelo impedimento da continuidade de uma relação com aqueles que apresentaram problemas. Esses cadastros são alvo de grande judicialização e mormente as alegações jurídicas clássicas de seus detratores, apresentam-se como instrumentos de excelência na prevenção de recorrências na atuação de agentes que já demonstraram a sua baixa capacidade de gerir recursos públicos.
Entretanto, o aspecto preventivo necessita de mais... Faz-se mister um avanço nos controles internos, face aos riscos percebidos, em especial na firmatura de parcerias e no acompanhamento da execução destas, rompendo o velho modelo de volumosos processos de prestação de contas, para iniciativas que tenham um viés mais estratégico, que com auxílio da TI, que permita uma análise de prestações de contas mais expedita, com ações de fiscalização mais céleres e pontuais e que retroalimentem os sistemas no sentido de impedir novos acordos e novos aprovisionamentos de recursos, buscando também pelas ações de georeferencimento e com o apoio do controle social, identificar também o adimplemento dos objetivos pactuados.
Diante do desvio, do escândalo, da ação criminosa, a dimensão de reposição do Erário é valorosa, mas é necessário avançar sobre esse paradigma e pensar nos mecanismos que permitirão surgir aquele desvio e que podem alimentar outros, passíveis de serem impedidos, evitando a sangria antes que ocorra, dadas as dificuldades de recolher o leite derramado.
Queremos, como cidadãos, que o dinheiro volte... Mas queremos mais ainda que ele não saia. Essa questão nos lembra que esse assunto necessita vir a baila, pois temos a responsabilidade geracional de pensar sobre esses processos de ressarcimento de recursos mal empregados, para com criatividade e bom senso, otimizá-los, para que respeitem sim os direitos fundamentais dos arrolados, mas que tenham em mente também que aquele recurso privou um outro grupo de seus direitos sociais e que o tempo, inexorável, vai destruindo a credibilidade pela impunidade, em prejuízos imateriais a gestão pública, instância de oferta de direitos sociais aos cidadãos, inclusive aqueles de maior vulnerabilidade.