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O uso das medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal:

cabimento e substitutividade à prisão

22/06/2014 às 11:30
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As medidas cautelares têm aplicação semelhante à da prisão de natureza cautelar, demandando, para sua validade, a observância do binômio necessidade-adequação, fundamentação idônea, estrita observância das previsões legais e as demais situações exigidas para que tenha vez a restrição do direito.

1. Introdução

No dia 4 de maio de 2011 foi publicada a Lei 12.403 que, dentre outras providências, altera dispositivos legais do Código de Processo Penal relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória e demais medidas cautelares.

A inovação em questão teve como objetivo principal a adequação da lei à regra jurisprudencial já pacificada no âmbito do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual a prisão de natureza processual tem caráter excepcional e não deve ser utilizada de modo a se revestir de verdadeiro pleito antecipatório da pena que eventualmente será aplicada e meio “apto” a entregar à sociedade a satisfação punitiva que anseia quando da ocorrência de um delito.

Por outro lado, também não se pode olvidar que, a depender da situação concreta, a prisão é medida demasiadamente exagerada, entretanto, deixar de se acautelar de alguma forma o agente do fato pode tornar ineficaz a aplicação da lei penal e mesmo a conveniência da instrução criminal.

A Lei 12.403/11 alterou o art. 319 do CPP no sentido exatamente de atender a este anseio, eis que prevê a aplicação de medidas de natureza cautelar, diversas da prisão, para serem aplicadas em estrita observância do binômio adequação-proporcionalidade, para que não se utilize de medida extrema, mas para que também não se deixe de acautelar situações que merecem algum tipo de restrição cautelar com o único fim de proteger o próprio processo.

Sendo assim, analisaremos a questão no sentido do cabimento dessas medidas, observados seus pressupostos e fundamentos, bem como seu caráter subsidiário para com a prisão preventiva.


2. Medidas Cautelares –Art. 319, CPP – Medidas de Restrição de Direitos – Exigências

O art. 319, do Código de Processo Penal, trouxe uma novidade legislativa que buscou atender a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, bem como atender, em primeiro lugar, o sentido constitucional do princípio da presunção de não culpabilidade, eis que não se pode “antecipar” a pena eventualmente aplicada aos acusados em geral sem que se tenha o trânsito em julgado ou, antes dele, que haja fundado receio de que, em liberdade, possa o acusado prejudicar o processo.

Vale observar que o artigo 319, do CPP, esta posicionado no título IX, do CPP, onde se encontram previstas as medidas de natureza estritamente cautelar que visam o bom andamento do processo e a proteção do direito de punir do Estado, até mesmo para que não haja uma movimentação desnecessária de toda máquina estatal sem que, ao final, se possa de fato cumprir as previsões legais atinentes à punição daquele que comete um delito.

A palavra cautelar surgiu do latim caveo, que significa estar em guarda[1]. Daí há de se depreender que o processo cautelar tem a função de guardar, assegurar, proteger, vigiar o processo. Mas devemos nos perguntar: como se pode assegurar o processo sem ao menos a existência de uma pretensão material? Esta questão pode ser respondida levando-se em conta a função de assegurar que é imanente à tutela cautelar.

Quando falamos em assegurar devemos nos remeter à ideia de que a qualquer momento aquilo que pretendemos discutir (pretensão) pode sofrer danos de difícil reparação, pois é natural, de modo que, é extremamente preciso buscar um meio de proteger o objeto, no caso o processo, das ameaças iminentes do cotidiano. Então, se o evento é futuro e por isso ainda não se encontra instaurada a ação que irá discutir a pretensão em si, porém sua efetividade corre sérios riscos, urge a necessidade de se resguardar os meios que servirão de subsídios para o andamento da ação principal. A este instrumento de proteção dá-se o nome de ação cautelar.

Como é amplamente sabido, para que se possa definir pela necessidade de acautelamento de determinada situação, seja processual, seja relacionada a bens da vida penalmente tutelados, é preciso que se faça uma análise primária do binômio adequação-proporcionalidade, onde se define o grau de compatibilidade entre a situação concreta e a medida que se pretende impor, valendo lembrar que tal análise deve ser feita de forma estrita, haja vista estarmos falando de medidas de restrição de direitos.

Essa posição inclusive foi firmada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, conforme se pode ver a partir do seguinte excerto de julgado:

4. Observado o binômio proporcionalidade e adequação, necessária, devida e suficiente, diante das particularidades do caso concreto, a imposição de medidas cautelares diversas à prisão[2].

Essa determinação também está contida no art. 282, do Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: 

I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; 

II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.

A novel doutrina acerca do tema se coloca exatamente no sentido de que as medidas cautelares do art. 319, do CPP, têm cabimento quando caberia a prisão preventiva, isto é, a análise dos fundamentos deve ser a mesma, diferenciando-se a aplicação de uma ou outra apenas com base na proporcionalidade.

A nova legislação deixa bastante claro que qualquer medida cautelar pessoal somente pode ser decretada se demonstrada, concretamente, a sua real e efetiva necessidade, para tutela de algum bem jurídico do processo ou da sociedade. Os fundamentos que antes se aplicavam apenas para a prisão preventiva (art. 312 do CPP), agora são ampliados para toda e qualquer medida cautelar pessoal. Assim sendo, não há qualquer distinção de finalidade entre a prisão preventiva e as demais medidas cautelares: todas buscam proteger a tríplice finalidade indicada (para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e para evitar a prática de infrações penais). Somente se presentes tais fins – que representam a própria cautelaridade de qualquer medida é que se poderá decretar uma medida cautelar. Em outras palavras, todas as medidas cautelares buscam a mesma finalidade de proteção aos interesses do processo ou da própria sociedade[3].

Passada essa análise, chega-se à regra mais importante aplicável a todas as medidas cautelares, sem qualquer exceção, consideradas aqui, aquelas contidas no título IX no Código de Processo Penal, dentre elas a prisão e as medidas cautelares diversas da prisão.

Tal regra diz respeito ao fumus boni iuris e o periculum in mora, que resultam, respectivamente, na plausibilidade da tese alegada e no perigo da demora no provimento jurisdicional tanto para o próprio acusado, quanto para o processo em si. Em matéria penal, tais requisitos devem ser reconhecidos como o fumus comissidelict e o periculum libertatis.

Falar em fumus commissi delicti se traduz numa possível ocorrência de fato delituoso punível, o que demanda que a persecução deva ser instaurada para que a “fumaça” da ocorrência do delito se torne uma certeza e, ao final, possibilite a formação da culpa com o trânsito em julgado da eventual condenação aplicada.

O requisito acima exposto, que tem natureza puramente cautelar, não deve ter a mesma força do que exigido para a condenação, mas também não deve ter a mesma força dos indícios colhidos até então, sendo necessário que sejam carreados elementos que se coloquem como suficientes para a restrição cautelar que se entenda necessária para o momento da persecução penal.

Aliado a este requisito, deve também estar presente o denominado periculum libertatis, que não diz respeito ao tempo, mas sim na ponderação entre a permanência do suposto agente no convívio com a sociedade e a proteção que deve ser entregue a esta pelo Estado.

Nas palavras da Aury Lopes Júnior, “o fator determinante não é o tempo, mas a situação de perigo criada pela conduta do imputado[4]”. E conclui dizendo que “o perigo não brota do lapso temporal entre o provimento cautelar e o definitivo. Não é o tempo que leva o perecimento do objeto[5]”.

Assim como as prisões cautelares têm natureza cautelar, também a tem as novas medidas cautelares previstas no art. 319, do CPP, trazidas pela alteração promovida pela Lei 12.403/11. Previstas no mesmo título, por óbvio que seja, devem inclusive seguir as mesmas regras cautelares previstas para todos os institutos do Título IX, do CPP.

A partir disso, vale observar com mais detalhe a dicção do art. 319, do CPP, que possui o seguinte teor: “Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão”.

Observe-se que o próprio caput do referido dispositivo legal coloca as novas medidas previstas em seus incisos no patamar de medidas cautelares diversas da prisão. Isto é, devem ser aplicadas quando se mostrar desarrazoada a aplicação do encarceramento cautelar, mas não por isso deixam de ter essa natureza e não deixam de ser medidas suficientes para o adequado acautelamento do direito de punir do Estado, sem que signifique a antecipação da pena que poderá ou não ser imposta.

Em outras palavras, apenas deve ter lugar a aplicação das medidas cautelares do art. 319, do CPP, quando teria lugar a prisão preventiva e, por uma opção atual de política criminal, foram previstas outras medidas que mais se amoldam ao ordenamento constitucional vigente.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem sinalizado exatamente neste sentido, conforme se pode observar da decisão que concedeu a liminar em habeas corpus pleiteada, cujo excertos ora são citados:

Desse modo, é plenamente possível que estejam presentes os motivos ou requisitos que justificariam e tornariam cabível a prisão preventiva, mas, sob a influência do princípio da proporcionalidade e a luz das novas opções fornecidas pelo legislador, deverá valer-se o juiz de uma ou mais das medidas indicadas no artigo 319 do CPP, desde que considere sua opção suficiente e adequada para obter o mesmo resultado – a proteção do bem sob ameaça – de forma menos gravosa. Vale dizer, cabível a prisão preventiva, não há dúvida de que poderia magistrado decretá-la, pondo a salvo, assim, o bem ameaçado pela liberdade do agente. No entanto, em avaliação criteriosa, cuja iniciativa não deve juiz olvidar, poderá ele entender que, para a mesma proteção ao bem ameaçado pela liberdade do agente, é adequado e suficiente proibir, por exemplo, o indiciado ou acusado de ausentar-se do País. E, para implementar e tornar mais segura a eficácia de tal cautela, o magistrado providenciará a comunicação da decisão às autoridades de fiscalizar as saídas do território nacional e intimará o indiciado ou acusado para entregar o passaporte, no prazo de 24 horas, nos termos do artigo 320 do CPP.[6]

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Seguindo essa ótica, aliada ao fato de que a Constituição de República reputa como excepcional a prisão, é possível concluir que quando se está diante de uma situação criminosa que demande o acautelamento do jus puniendi do Estado, primeiro se deve analisar uma a uma as espécies de medidas cautelares previstas no art. 319, do CPP, para que, ao final, caso não se entenda pela adequação de uma dessas medidas se possa então chegar à decretação da prisão.

Outro ponto de extrema importância que sempre deve ser analisado quando da imposição de medida cautelar diversa da prisão é que, assim como quando se esta diante da decretação de prisão preventiva, é preciso que a medida seja imposta calcada em fundamentação idônea, provida de base empírica e revestida da cautelaridade que lhe é peculiar.

Não se pode aplicar as medidas cautelares a esmo ou objetivando fins diversos e escusos daqueles que são estritamente previstos na lei para a sua aplicação, sob pena de um completo esvaziamento do instituto e também sob pena de flagrante antecipação de pena, o que não pode ser admitido.

E admitido não pode ser porque as normas relativas às medidas cautelares assim como as normas atinentes à prisão de natureza cautelar significam inegável medida que restringe os direitos do indivíduo, o que vai totalmente de encontro ao texto constitucional, que autoriza a restrição de direitos apenas após o devido processo legal.

Tal ideia decorre do art. 5º, LIV, da Constituição Federal, que prevê, in verbis: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Isto é, aplicar medidas cautelares, nesse aspecto entendidas as prisões e aquelas prevista no art. 319, do CPP, deve observar as balizas impostas pela Lei Maior para que não resultem na antecipação da pena, o que seria o mesmo que dizer que o cidadão teria sido privado de seus bens ou de sua liberdade sem o devido processo legal.

A título exemplificativo, mas necessário para demonstrar o caráter restritivo de direitos das medidas cautelares, vale citar as medidas previstas nos incisos II e VI, do art. 319, que possuem o seguinte teor:

Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão:

II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;

[...]

VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais

Note-se que as duas medidas citadas restringem o direito de ir e vir e o direito ao trabalho, respectivamente, os quais são constitucionalmente conferidos aos cidadãos e não podem sofrer qualquer mitigação sem que se tenha base empírica que justifique a restrição.

Não que tais direitos sejam absolutos, mas para que sejam mitigados, eis que se tratam de um norte a ser seguido para a aplicação do ordenamento jurídico, que sempre deve observar a Constituição e não o contrário.

É exatamente por isso que as medidas cautelares, como as acima exemplificadas, não podem ser aplicadas como um meio de efetivação de outros anseios por via transversa, sob pena de se entender o Direito Penal não sob o prisma de sua intervenção mínima, mas sob o absurdo e inaceitável prisma da “aplicação solidária”, o que não tem guarida no ordenamento brasileiro.

As medidas cautelares têm que apresentar um meio estritamente cautelar, baseado na verdade dos autos e não como odioso meio antecipatório da pena eventualmente aplicada, sob pena de se ver ferido o princípio da presunção de não culpabilidade.

O espírito do legislador ao editar a Lei 12.403/11 não foi outro se não o de adequar o instituto da prisão aos ditames constitucionais como vistos nos dias de hoje, até mesmo porque a legislação processual penal data de uma época em que havia a necessidade de um meio eficaz para fazer valer os anseios da ditadura, o que não combina com a ordem constitucional vigente.

Não se pode permitir que o cidadão tenha seus direitos restringidos em nome de interesses escusos que não aqueles que a lei permite ou mesmo sem que haja a devida necessidade, apenas para que se consiga efetivar indevida restrição aos direitos do cidadão, sob pena de se estar burlando o ordem constitucional, o que não pode ser admitido de maneira alguma.


3.Conclusão

A partir do estudo feito pode-se concluir que as medidas cautelares têm aplicação semelhante à da prisão de natureza cautelar, demandando para sua validade, a observância do binômio necessidade-adequação, fundamentação idônea, estrita observância das previsões legais atinentes à matéria e as demais situações exigidas para que tenha vez a restrição do direito.

Ademais, não se podem utilizar as medidas cautelares como meio transverso de alcançar outros fins, se não aqueles voltados necessariamente para a natureza cautelar do instituto, sob pena de seu esvaziamento e sob pena de violação aos ditames constitucionais.

Para se assegurar o processo, sem que se tenha o transito em julgado da condenação e, por conseqüência, a formação da culpa, é preciso obedecer ao regramento atinente, analisando-se os requisitos e aplicados os fundamentos. Porém, antes mesmo de tudo isso, é necessário partir de uma análise principiológica (constitucional) em que não se possa obedecer Às regras processuais em detrimento das regras constitucionais.

Em outras palavras, é possível a aplicação da prisão preventiva ou mesmo das medidas cautelares  diversas da prisão, contudo, é preciso respeitar em primeiro lugar a presunção de não culpabilidade, a razoabilidade e a proporcionalidade, a orientarem a adequada e necessária cautelaridade processual.

Por fim, é válido o esforço do legislador em buscar adequar a sistemática processual penal vigente ao que emana da Carta Maior, a fim de proteger os direitos e garantias fundamentais do cidadão, consolidando o caráter excepcional da prisão e privilegiando o direito à liberdade.


Notas

[1] CRUZ, Rogério Schietti Machado da. Prisão Cautelar: dramas, princípios e alternativas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. p. 68.

[2] Brasil. Superior Tribunal de Justiça, 5ª Turma. PExt no HC 265.582/SP, Rel. Min. Jorge Mussi.DJe 01.08.2013.

[3] Prisão e outras medidas cautelares pessoais, São Paulo, Editora Método, 2011, p. 31

[4] LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução Crítica do Processo Penal. 4.ed.rev.atual e ampl. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. P. 201. 

[5]Idem

[6] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. 6ª Turma. Habeas Corpus (liminar) 282.509. Rel Min. Rogério Schietti. DJ 22.11.2013.

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Sobre o autor
Marcus Gusmão

Advogado criminalista militante, Graduado pelo Centro Universitário de Brasília - Uniceub (2010), Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade Cândido Mandes (2011).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUSMÃO, Marcus. O uso das medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal:: cabimento e substitutividade à prisão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4008, 22 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29617. Acesso em: 28 mar. 2024.

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