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A coligação contratual em projetos de geração de energia elétrica na modalidade project finance e seus efeitos

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23/06/2014 às 09:09
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6.         Conclusões

Conclui-se, em linhas gerais, que:

(i)            A teoria da coligação contratual tem origem no direito estrangeiro, especialmente nos países da Alemanha, França, Itália e Portugal, na tentativa de adaptação, no mundo jurídico, dos princípios e técnicas interpretativas, ao fenômeno da hipercomplexidade das operações econômicas demandadas pela atualidade.

(ii)           Os contratos coligados são necessariamente instrumentos unidos por um vínculo de dependência que caracterize um objetivo único almejado pelas partes.

(iii)          A comprovação da coligação contratual dependerá sempre da existência de dois ou mais contratos, e do nexo contratual de dependência, capaz de gerar conseqüências jurídicas particulares.

(iv)         O elemento mais importante da coligação contratual é o nexo ou vínculo funcional de dependência entre os contratos, que caracteriza uma única operação econômica, com um objetivo comum supracontratual, além do objeto de cada contrato individualmente considerado.

(v)          Quanto à fonte do vínculo, a coligação poderá nascer exclusivamente da autonomia das partes (coligação voluntária), ou independentemente da vontade das partes, por meio de dispositivo legal determinante nesse sentido ou da própria natureza dos contratos envolvidos (coligação necessária).

(vi)         A coligação voluntária pode ser subdividida em coligação voluntária expressa - em que há cláusulas contratuais que determinam expressamente que certos dispositivos de determinado(s) contrato(s) produzam eficácia jurídica em outro(s) -, ou coligação voluntária implícita – que, diante da ausência de dispositivo contratual expresso, depende de dedução em processo de interpretação.

(vii)        São exemplos típicos de coligação voluntária os contratos com cláusula de inadimplemento cruzado (“cross-default”), em que se estipula que o inadimplemento de uma das partes em um contrato resultará na possibilidade de resolução contratual de outro(s) contrato(s) a ele vinculado.

(viii)       Já a coligação necessária não depende da vontade das partes, sendo conseqüência da natureza acessória de um contrato em relação ao contrato principal a ele coligado, ou de dispositivo legal que determine que dois contratos produzam efeitos um no outro.

(ix)         Em relação à reciprocidade, a coligação poderá ser unilateral (em que há uma relação de dependência, na medida em que só um dos contratos é subordinado ao outro) ou bilateral (em que há uma interdependência entre os contratos, com efeitos recíprocos).

(x)          Constitui característica inerente a uma operação de project finance a valoração global da operação, na medida em que todos os contratos nela envolvidos traduzem uma única operação econômica que visa dividir entre as partes do risco de determinado empreendimento e garantir o fluxo de caixa do projeto que pagará o financiamento obtido. Nesse sentido, além da finalidade imediata de cada contrato individualmente considerado, há uma finalidade ulterior e sistêmica extraída do conjunto dos contratos do projeto, que é a consecução do empreendimento.

(xi)         Presentes os elementos que definem os contratos coligados – pluralidade de contratos e nexo funcional, é certo concluir que as operações de project finance constituem um exemplo típico de coligação contratual.

(xii)        Numa operação de project finance, o contrato de empréstimo celebrado entre o empreendedor e o órgão financiador é exemplo típico do que se denomina “contrato-quadro” ou “contrato-base”, haja vista sua característica de contrato principal que regula o relacionamento entre as partes, determina quais são os contratos que devem ser celebrados pelo empreendedor com terceiros para a consecução do projeto bem como as bases em que se darão tais contratações, fato que caracteriza a existência de coligação contratual entre os contratos celebrados conforme as condicionantes determinadas pelos órgãos financiadores.

(xiii)       Quanto à classificação, com exceção dos contratos de garantia que geralmente são celebrados nessas operações – que configuram coligação necessária, por seguirem a regra de que o acessório segue o principal -, por ser resultado da autonomia da vontade das partes, os demais contratos celebrados no âmbito de uma operação de financiamento de projetos são exemplos de coligação contratual voluntária que, dependendo de cada caso, poderá ser implícita ou expressa.

(xiv)       A coligação voluntária em operações de project finance será expressa caso haja cláusulas que determinam a transmissão de vícios e clausulas de resolução de um contrato para outro na cadeia negocial, como, por exemplo, a cláusula de cross-default.

(xv)        Por outro lado, não havendo cláusulas contratuais expressas nos contratos celebrados no âmbito de uma operação de project finance, determinando os vínculos entre os instrumentos celebrados, mas presentes os elementos que a caracterizam, a coligação contratual será implícita.

(xvi)       Dentre as conseqüências jurídicas que podem resultar da coligação, destacam-se as que respeitam à interpretação desses contratos, bem como seus efeitos no plano da validade e eficácia contratual.

(xvii)      O processo de interpretação dos contratos coligados depende necessariamente da análise não só de um contrato isolado, mas de todos os contratos envolvidos, para que se possa compreender o contexto do negócio como um todo celebrado entre as partes e o fim comum por elas almejado.

(xviii)     Para tanto, o operador do direito deve sempre buscar a intenção das partes com o negócio firmado, ou seja, o que elas pretendiam, partindo-se da presunção da boa-fé, quando da celebração do conjunto de contratos, que prevalece em relação ao sentido literal dos textos dos contratos, consoante prescrevem os arts. 112 e 113 do Código Civil Brasileiro.

(xix)       Nem todos os dispositivos contratuais existentes em um contrato coligado devem ser interpretados de forma global, na medida em que há aspectos pertinentes a um determinado contrato que, mesmo que coligado, não contaminam os demais, devendo o intérprete distinguir o que é típico de um contrato e o que faz parte do contexto global do negócio celebrado entre as partes.

(xx)        No que respeita à interpretação de contratos coligados celebrados com partes distintas, o Princípio da Relatividade deve ser reinterpretado tendo em vista a própria necessidade de flexibilização desse princípio em função de outros atualmente existentes do ordenamento jurídico, como o da função social do contrato, e, sobretudo, o vínculo comum existente no negócio como um todo, o que justifica a inaplicabilidade do Princípio da Relatividade em sua forma mais tradicional.

(xxi)       Em regra, tendo em vista o interesse comum supracontratual, as partes distintas em contratos coligados não podem ser consideradas alheias aos acontecimentos ocorridos em outros contratos que por elas não foram celebrados, mas que as afeta diretamente.

(xxii)      A possibilidade de repercussão de nulidades ou ineficácias de um determinado contrato nos demais instrumentos a ele coligados, deve ser avaliada conforme a espécie de coligação de que se trata.

(xxiii)     Em casos de coligação necessária unilateral, em razão da natureza dos contratos (principal e acessório), tendo em vista a existência de disposição legal expressa determinando que “a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal” (art. 184, in fine, do Código Civil Brasileiro), pode-se dizer que é certa a propagação de nulidades do contrato principal no acessório.

(xxiv)    Também quando houver disposição contratual determinando expressamente tal interferência entre os contratos coligados (casos de coligação voluntária expressa), tal como ocorre nos casos de cláusulas de cross-default, a propagação de ineficácias e invalidades possivelmente não suscitaria muitos questionamentos e divergências de entendimentos.

(xxv)     Nos casos de coligação voluntária implícita, regra geral, a invalidade (nulidade, anulação ou declaração de inexistência) ou ineficácia de um contrato afetará os demais a ele coligados caso comprovado que o fim concreto do negócio como um todo ficou comprometido pela constatação da sua invalidade ou ineficácia superveniente.

(xxvi)    Especificamente no que diz respeito aos contratos envolvidos em operações de project finance de geração de energia elétrica, com exceção à coligação necessária unilateral existente entre contrato principal de financiamento e os contratos de garantia, a coligação será sempre voluntária, expressa ou implícita, dependendo do caso.

(xxvii)   Cláusulas que prevêem a propagação de efeitos de um contrato em outros a ele coligados, a exemplo das cláusulas de cross-default, são muito comuns em operações de project finance, inclusive envolvendo contratos com partes distintas, casos em que os próprios instrumentos celebrados reconhecem a afetação de partes contratuais que, apesar de não terem celebrado determinados contratos, são por eles impactadas diretamente.

(xxviii)  Mesmo nos casos de coligação implícita, na ausência de cláusula contratual, são diversas as possibilidades de acontecimentos no âmbito de um determinado contrato envolvido em uma operação de project finance impactarem diretamente os demais instrumentos coligados, mesmo que com partes distintas.

(xxix)    Dada a importância do contrato de financiamento para a consecução do objeto comum numa operação de project finance, em regra, a invalidade ou ineficácia do contrato de financiamento repercutirá diretamente nos demais contratos celebrados entre o empreendedor e “terceiros”, em princípio alheios ao contrato de financiamento.

(xxx)     Assim, a comprovada coligação contratual em operações de project finance produz inúmeros efeitos jurídicos, que devem ser constatados num processo de interpretação em que princípios de direito muitas vezes têm que ser reavaliados, em função da necessidade de percepção de cada contrato para além de sua estrutura individual e de avaliação de sua estrutura supracontratual.


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TORRES, Andreza Cristina Baggio. Teoria Contratual Pós-Moderna – As redes contratuais na sociedade de consumo. Juruá, 2007.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2004.


Notas

[1] Especificamente a respeito dessa modalidade de financiamento de projetos vale conferir a clássica obra de John D. Finnerty, traduzida para o português: “Project Finance: engenharia financeira baseada em ativos”.

[2] Para José Virgilio Lopes Enei “a idéia de execução de um novo empreendimento nasce, portanto, dos estudos empreendidos por certa sociedade empresária, por isso chamada de patrocinadora do projeto.” (op. cit., pág. 17)

[3] Project finance e infra-estrutura: descrição e críticas. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, V. 5, N. 9, p. 105-121, jun/1998.

[4] VIRGÍLIO define o contrato EPC turnkey da seguinte forma: “trata-se de um contrato de empreitada global em que a firma contratada, normalmente um consórcio liderado por uma empreiteira de renome, assume a obrigação de realizar o projeto de engenharia, executar todas as atividades de construção civil, fornecer por fontes próprias os de terceiros todos os materiais e equipamentos integrantes do empreendimento e, ainda, instalar, montar, testar e comissionar esses equipamentos de forma que a obra seja concluída num prazo determinado e entregue à sociedade financiada em condições de iniciar imediatamente a operação. Daí por que a expressão ´chave na mão´ ou turn-key. Uma vez entregue a obra, resta à sociedade financiada tão-somente girar as chaves do empreendimento para que ele comece a operar.” (op. cit., págs. 198 e 199).

[5] Conforme Hoffman, The Law (apud José Virgilio Lopes Enei, Project Finance: financiamento com foco em empreendimentos: parcerias público-privadas, leveraged buy-outs e outras figuras afins, 2007, págs. 61 e 62), que divide os contratos compreendidos na rede de contratos de project finance em 6 gêneros contratuais.

[6] Esse mecanismo, conhecido como step-in-rights, é admitido expressamente na Lei de Concessões (Lei nº 8.987, de 1995), em seu art. 27, com redação dada pela Lei nº 11.196, de 2005.

[7] Em linhas gerais, no contrato misto há uma unidade contratual, que formaliza um só negócio jurídico, com elementos de tipos contratuais distintos. De outra forma, no contrato complexo ao menos uma das partes realiza mais de uma manifestação de vontade, existindo diversas manifestações de vontade.

[8] José Alexandre Ferreira Sanches, em artigo intitulado “Os contratos atípicos e sua disciplina no Código Civil de 2002”, disponível no site http://jus.com.br/artigos/5779, acesso em 13/09/2010.

[9] A esse respeito Nelson Konder entende que: “A conexão contratual é normalmente explicada pela singela e demasiado genérica idéia de utilização de vários contratos para a realização de uma mesma operação econômica. As definições, nesse sentido, costumam combinar estes dois elementos: a pluralidade de negócios jurídicos e a unidade de operação econômica. Este tipo de definição, contudo, não passa sem problemas. A centralidade de um elemento extrajurídico na definição – a ‘operação econômica’ – se não é determinante no seu fracasso, já revela a profunda dificuldade de conduzir esta ocorrência a uma conceituação jurídica. A explicação do que seja uma operação econômica – e, em especial, a dificuldade em distinguir a unidade da pluralidade de operações – sugere um desafio aos economistas e priva o direito civil de conferir maior determinação e segurança à configuração do fenômeno.

A extrajuridicidade da definição, contudo, é um obstáculo menor revelador de uma problemática mais grave: a abrangência do conceito. Em uma sociedade como a nossa, a proliferação e a interligação entre as diversas situações jurídicas é um fato recorrente, para não dizer mesmo constante. A dificuldade passaria a ser, então, não a determinação dos contratos que estejam de alguma maneira ligados entre si, mas sim descobrir algum dentre eles que não esteja. Abarcando a imensidão (ou totalidade) dos contratos, o conceito de conexão seria esvaziado de conteúdo e, portanto, de utilidade. Por outro lado, a restrição excessiva abrangência do conceito também destrói sua razão de ser, acabando por reconduzir à visão clássica limitada ao exame dos contratos individualizados.” (op. cit., págs 95 e 96).

[10] E conclui KONDER: “Portanto, diante da presumível inexistência do contrato isolado do resto do mundo jurídico, o que deve ser buscado é aquele vínculo capaz de impor algum tipo de efeito jurídico peculiar aos contratos por ele interligados, um vínculo que possua relevância não apenas econômica, mas especificamente jurídica. No justo-meio estaria, então, uma definição capaz de reconhecer a amplitude inerente a um tal gênero, apontando, contudo, os elementos necessários para a sua identificação.” (op. cit., pág. 96)

No mesmo sentido, Francisco Marino entende que “... não obstante o nexo funcional e finalístico característico da coligação, cada negócio tende a produzir os efeitos que lhe são típicos. Por outro lado, tendo em vista não se tratar de mera soma de contratos, mas sim de uma síntese, verifica-se aqui o mesmo fenômeno existente na composição do texto de cada contrato, correspondente ao surgimento de efeitos irredutíveis aos contratos isoladamente considerados. Estes são os efeitos jurídicos próprios da coligação contratual. (...) Isso posto, é lícito concluir, com BETTI, que cada um dos negócios coligados, por conservar a própria autonomia, produz aqueles efeitos jurídicos conformes à sua finalidade; contudo, ‘os negócios, na sua síntese, são produtores de conseqüências jurídicas que não coincidem com as de cada um deles, isoladamente considerado’. O nexo existente entre negócios jurídicos coligados mostra-se, portanto, dependente da ‘congruência entre as respectivas funções’.” (op. cit., pág. 134)

Para VIRGÍLIO “é defensável até que os contratos preservem a sua causa final individual, mas é certo que na coligação haverá uma causa final sistemática que unirá o conjunto, e que só será alcançável por meio do cumprimento de todos os contratos coligados.” (op. cit., pág. 285)

Eduardo Kataoka entende que: “é preciso que as partes possam atingir um objetivo comum que supere os simplesmente alcançáveis por meio do somatório dos contratos individuais. É necessário que cada contrato desempenhe uma função própria, mas que o conjunto seja mais do que o somatório”. (op. cit., pág. 64)

[11] Consultar <http://www.hcdn.gov.ar/>.

[12] O presente estudo aborda apenas a classificação da coligação quanto à fonte e à reciprocidade, usualmente adotadas pelos doutrinadores, cuja distinção é importante especialmente com vistas à análise de seus efeitos. No que respeita às demais classificações - quanto à natureza do vínculo (coligação horizontal ou vertical), extensão do vínculo (coligação genética ou funcional) e finalidade (coligação associativa ou por mera delegação) -, vide VIRGÍLIO, op. cit., págs. 288 e 289.

[13] Essa é a classificação adotada por KATAOKA (op. cit., págs 23 e 24, 131), VIRGÍLIO (op. cit., pág. 289) e KONDER (op. cit., págs 105 e 106). Já para MARINO, a coligação que independente da vontade das partes é chamada de coligação natural (quando advém de imposição da natureza acessória do tipo contratual envolvido), ou coligação ex lege ou legal, por força de disposição legal determinante (op. citada, págs. 104 e segs.).

[14] Essa subdivisão é defendida por MARINO, que entende que “pode advir de cláusulas contratuais que expressamente disciplinem o vínculo intercontratual (‘coligação voluntária expressa’), ou pode ser deduzida a partir do fim contratual concreto e das circunstâncias interpretativas (‘coligação voluntária implícita’).”(...)

“A distinção traduz-se em um problema de interpretação, dado que, nos casos de coligação implícita, será necessário recorrer a um processo interpretativo mais profundo a fim de delimitar o vínculo existente entre os contratos.” op. cit., pág. 107.

[15] Sobre esse assunto, vale transcrever a definição trazida por Adriana Giffoni, em seu artigo “As Cláusulas de cross default em contratos financeiros”. Revista de Direito Mercantil, industrial, econômico e financeiro, v. 121, pág. 148: “A expressão ‘cross default’ é proveniente da língua inglesa e significa ‘falha cruzada’. No meio financeiro refere-se àquelas cláusulas presentes em contratos que determinam que o devedor estará em situação de falha (‘default’) no contrato em questão toda vez que deixar de cumprir quaisquer outras obrigações em outros contratos.”

[16] Note-se que esse tema é objeto de amplas discussões tanto doutrinárias quanto jurisprudenciais, especialmente no que se refere à influência da resolução de um contrato sobre outro, celebrado entre partes distintas.

[17] Parece-nos que esse é o mesmo entendimento dos poucos doutrinadores nacionais que se dedicaram ao assunto. Nesse sentido, vale transcrever: “... o financiamento de projetos é um exemplo supremo de coligação contratual, haja vista a íntima conexão dos diversos contratos que o compõem e a multiplicidade de vínculos entre eles estabelecidos. Mais do que isso, como veremos, há uma finalidade comum, sistêmica, que suplanta a finalidade individual de cada contrato isoladamente considerado (...) apesar de os contratos individualmente considerados possuírem sua causa-finalidade imediata, vale dizer, o suprimento de matéria-prima , a venda do produto final ou a construção de uma obra, os contratos que compõem o financiamento de projetos comungam, em última instância, de uma causa-finalidade sistêmica, que lhes orienta o vínculo de coligação. Essa finalidade sistêmica passa pela adequada alocação de riscos entre os partícipes do financiamento de projetos, para alcançar a liberação dos recursos financiados e para, em última instância, viabilizar o sucesso do empreendimento, que a todos interessa.” (VIRGÍLIO, op. cit., págs. 302 e 305).

“O project finance é uma modalidade de financiamento em que há um enorme complexo de contratos ligados entre si pela sua finalidade econômica comum, e que podem vir a sofrer uma coligação voluntária. A cláusula de cross default a que aludiremos mais à frente é um exemplo marcante de possibilidade”.(KATAOKA, op. cit., pág. 102)

[18] Para VIRGÍLIO, “contrato-quadro ou base é aquele celebrado por duas ou mais partes com a intenção de instituir regras que governarão durante certo período a celebração de outros contratos com vistas à realização de uma operação econômica comum”. (op. cit., p. 293).

Consoante KONDER, “o termo contrato-quadro é utilizado por parte da doutrina para referir a um contrato que atua como marco central de uma ligação entre as partes, predeterminando os parâmetros do envolvimento entre elas, mas que não exaure as prestações concretas a serem exigidas por esta relação. Neste sentido, uma série de outros contratos mais específicos serão celebrados com vistas a realizar finalidades mais concretas daquela ligação.” (op. cit., pág. 161).

[19] Para KONDER, “a consideração dos demais contratos envolvidos pode servir a esclarecer pontos obscuros do contrato isolado ou, ao contrário, pode deixar transparecer contradições entre negócios que, isoladamente, pareciam claros – o dever de prover uma interpretação condizente com a totalidade negocial, contudo, persiste.” (KONDER, op. cit., pág. 195)

[20] Nesse sentido, entende MARINO que: “Na coligação ‘voluntária’, por sua vez, o processo de interpretação atingirá grau máximo de profundidade. Mesmo em casos de coligação expressa, a reconstrução do conteúdo dos contratos será decisiva para determinar as conseqüências jurídicas da coligação, raramente previstas pelas partes em toda a sua possível extensão.” (op. cit., pág. 147)

[21] “Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”

Para VIRGÍLIO, “há ainda que reconhecer um importante efeito das redes de contratos coligados, qual seja a necessidade de interpretação sistemática destas, em oposição a uma interpretação isolada de cada contrato.

Relevante aqui é o princípio básico de interpretação dos contratos, expresso no art. 112 do nosso Código Civil brasileiro, de que a intenção das partes deve prevalecer sobre o sentido literal das palavras. Como o que move as partes integrantes de uma rede contratual é uma finalidade sistêmica, supracontratual – normalmente a realização de uma única embora complexa operação econômica – a intenção das partes, consubstanciada nos diversos instrumentos contratuais, só poderá ser verdadeiramente compreendida mediante a leitura e interpretação do conjunto contratual.” (VIRGÍLIO, op. cit. pág. 301)

[22] “Artículo 1.030. Grupos de contratos. Los contratos que están vinculados entre sí por haber sido celebrados en cumplimiento del programa de una operación económica global son interpretados los unos por medio de los otros, y atribuyéndoles el sentido apropiado al conjunto de la operación”.

[23]          Vale transcrever o comentário de KATAOKA a esse respeito: “Parece claro que é questão dogmática relevantíssima a determinação de certos indícios que possam orientar o intérprete no tratamento dessa importante questão: como determinar o conteúdo do aspecto supercontratual da coligação? E que cláusulas aplicar em caso de perturbações da coligação contratual?” (KATAOKA, op. cit., pág. 178)

“... como determinar o que é próprio de um dos contratos específicos e o que é próprio da coligação contratual. Ora, parece claro que os negócios jurídicos integrantes da coligação, não resultantes de cláusula geral expressa ou da lei, preservam a respectiva independência estrutural. Se isso é assim, nem todas as cláusulas ali previstas referir-se-ão a toda a coligação, mas apenas a um dos contratos específicos, não produzindo efeitos gerais, mas apenas particulares. Caso contrário, estaríamos cuidando de um só contrato.” KATAOKA, op. cit., pág. 177

[24] “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”

[25] Transcrevemos outro exemplo interessante trazido por Wanderley Fernandes e Jonathan Mendes Oliveira, em artigo intitulado “Contrato Preliminar: Segurança de Contratar”, do livro “Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais”, sobre a coligação existente entre um contrato de compra e venda de energia celebrado entre empreendedor e a PETROBRÁS e contrato de financiamento celebrado entre o mesmo empreendedor e o BNDES: “vejamos um exemplo bastante simples (ou nem tanto): determinada empresa assina um contrato de fornecimento de energia pelo prazo de 15 anos para a Petrobras. Tendo assegurado a remuneração pela disponibilidade de energia (energia garantida), o mesmo agente econômico obtém um financiamento do BNDES e dá em garantia do pagamento do financiamento os créditos vencidos e a vencer decorrentes do contrato de fornecimento de energia. Note-se que nasce, neste caso, um fenômeno interessantíssimo, ou seja, um contrato torna-se para outro uma garantia de adimplemento. Nos bancos escolares, aprendemos que as garantias são instrumentos acessórios, mas, no caso em tela, um contrato torna-se a própria garantia do cumprimento de outro contrato. Há um vínculo necessário entre os contratos. O intérprete jamais poderia analisar o contrato de financiamento sem que o contrato de fornecimento de energia fosse avaliado.” (destaques nossos, pág. 297)

[26] Como poderá KONDER, “com maior força, nos contratos conexos que envolvam as mesmas partes, a consideração de um deles na interpretação do outro é absolutamente inafastável e os efeitos mútuos são limitados apenas pela sutil fronteira entre a unidade e a pluralidade negocial. Mas mesmo naqueles que envolvam partes diversas, a conexão decorrente do compartilhamento de uma função unitária impõe a referida consideração. (op. cit., págs 197 e 198)

Para VIRGILIO, “o tema dos contratos coligados é um exemplo do abrandamento e releitura dos princípios contratuais convencionais. Representa exceção bastante justificada ao princípio clássico da relatividade do contrato, segundo o qual os efeitos contratuais se limitariam às partes, não alcançando terceiros, seja para beneficiá-los, seja para impor-lhes obrigações. A aceitação absoluta do princípio da relatividade dos efeitos contratuais nos conduziria à conclusão de que, mesmo diante de um sistema de contratos coligados, cada parte só responderia pelas obrigações constantes dos contratos por ela assinados. Obviamente, tal conclusão não mais se coaduna com a nova interpretação dos clássicos princípios contratuais, nem muito menos com os princípios mais modernos da função social e da boa-fé objetiva.” (op. cit. págs. 294 e 295)

MARINO entende que “isto posto, cabe indagar acerca da relação da oponibilidade do inadimplemento do ´terceiro´, em sede de coligação contratual, com o princípio da relatividade dos efeitos do contrato. Como se sabe, referido princípio vem sendo objeto de revisão doutrinária, pela qual se busca compatibilizá-lo com os novos princípios contratuais (boa-fé, equilíbrio econômico e função social) e com as diversas e cada vez mais freqüentes situações nas quais o contrato produz efeitos perante terceiros. Terceiros em relação ao contrato são todos aqueles que não participaram de sua formação (...) O terceiro interessado não é parte, contudo ´detém posição jurídica afim a uma das posições jurídicas das partes´ ou está em situação tal que o suceder de acontecimentos no interior da relação obrigatória pode claramente lhe provocar efeitos prejudiciais.” (op. cit., págs. 208 e 209)

[27] Willie Tavares, em sua dissertação “A aplicação da exceção do contrato não cumprido aos contratos conexos”, examina essa questão: “em relação ao envolvimento de partes distintas nos contratos conexos, é importante destacar que esses contratantes não podem ser considerados alheios aos eventos ocorridos nos negócios vinculados, mesmo nos quais não figurem formalmente. Isso porque todas as partes possuem o mesmo interesse principal e colaboram, de alguma forma, para a consecução da finalidade supracontratual. Assim, a conexão contratual põe em cheque a construção dogmática clássica do efeito relativo dos contratos, determinando o alargamento do conceito de parte, que passa a ser aquele que está submetido ao efeito obrigatório do negócio, seja por força da vontade, seja por determinação legal, e não mais aquele que por sua vontade se obriga.” (pág. 47)

“Na maior parte das vezes ... as partes envolvidas numa rede de contratos coligados deverão ter consciência dos contratos integrantes do sistema, e por isso estarão sujeitas a deveres laterais de conduta – extraídos dos próprios princípios da boa-fé e da função social do contrato – cujo descumprimento importará em responsabilização que não encontrará limites apenas nos contratos assinados pelas partes.” (VIRGILIO, op. cit., pág. 296).

[28] Sobre a cláusula de cross-default, vide comentários no Capítulo 3.

[29] Nesse sentido, VIRGÍLIO entende que “outras vezes, as próprias partes envolvidas estabelecerão contratualmente, por meio de condições resolutivas ou outras cláusulas que façam referência aos outros contratos integrantes do grupo, a propagação de invalidades e ineficácias. Tais previsões contratuais são bastante comuns, por exemplo, em contratos de empréstimo e financiamento internacionais. São exemplos as chamadas cláusulas de ‘cross-default’, segundo as quais o inadimplemento da parte em um contrato por ela integrado constituirá inadimplemento em outros contratos (op. cit. pág. 298).

[30] A esse respeito:

“Em conclusão, pode-se afirmar que, a priori, a invalidade de um dos contratos afeta os demais, a ele coligados. Somente quando o fim concreto não for comprometido pela invalidade do contrato é que os demais poderão ser mantidos, cabendo à parte, que alega a possibilidade de alcançar o fim concreto, o ônus de prová-lo.” (MARINO, op. cit. pág. 197).

“A propagação também poderá ter lugar, normalmente, quando a invalidade ou ineficácia de um dos contratos impossibilitar a consecução da função sistêmica da rede de contratos, ou seja, quando a finalidade comum, vale dizer, a operação econômica almejada, não mais puder ser alcançada com sucesso. (...) A moderna teoria recomenda que o exame do vínculo entre os contratos coligados seja feito de modo a identificar os riscos assumidos por cada parte envolvida. Se a parte conhecia e aceitou, ainda que tacitamente, o risco de que seu contrato pudesse se tornar inválido ou ineficaz em razão de vícios no conjunto, não pode ela negar esse efeito. (...) De modo geral, todavia, a conclusão acerca da propagação ou não de certos efeitos entre dois ou mais contratos componentes de uma rede contratual dependerá da análise do caso concreto, na qual possam ser valorados os diversos princípios contratuais, à luz da causa individual, causa sistêmica, intenção das partes e alocação de riscos.” (VIRGILIO, op. cit., págs 299 a 300)

[31] Sobre a função do empreiteiro/epecista em operações de project finance, entende VIRGÍLIO que “... quando um empreiteiro assume um Contrato de EPC em regime de chave-na-mão, ele deve saber que deverá entregar a obra no prazo previamente acordado, pelo preço fixado, em condições de operar em perfeitas condições, sem poder invocar dificuldades supervenientes que, em outros contextos, poderiam até justificar a revisão do preço ou a extensão do prazo de entrega. A transferência do risco da SPE para o empreiteiro é da essência de um contrato EPC celebrado no âmbito do um financiamento de projetos, sobretudo daquele chave-na-mão, e portanto cabe ao empreiteiro embutir os riscos em seu preço, criando as reservas que julgar adequadas para remunerar o maior grau de risco assumido.” (op. cit., pág. 308)

[32] Nesse sentido, “muito embora as partes, sobretudo o financiador, preocupem-se em estabelecer vínculos contratuais diretos com todos os partícipes julgados mais relevantes (e daí a razão de o financiador exigir acordos diretos com o empreiteiro, o supridor de insumos, os clientes etc.), mesmo na omissão das partes, é lícito concluir que a coligação contratual e a finalidade sistêmica poderão fundamentar ainda, muitas vezes, o reconhecimento de diretos e obrigações de natureza contratual diretamente entre partes que não estejam formalmente vinculadas.” (VIRGÍLIO, op. cit., págs 306 e 307)

[33]  Conforme art. 35, II da Lei n° 8.987, de 1995 (Lei de Concessões).

[34] In “Novíssimas questões de direito civil”, págs. 129 a 136.

[35] Tal necessidade é tratada pelo parecerista da seguinte forma: “... o capital necessário à construção, tão necessário que se torna tal financiamento uma condição indispensável à execução e conclusão de obras de tal porte e de tal estrutura.”

[36] Nas palavras de VIRGÍLIO, “embora todos os contratos sejam importantes ao empreendimento, o contrato de financiamento (ou equivalente) assume um grau de primazia em relação aos demais, haja vista que, em última instância, tem-se como objetivo maior a liberação dos recursos que viabilizarão a implantação do empreendimento e o cumprimento dos demais contratos. (...) num projeto estruturado sob a premissa, conhecida de todos os participantes e por estes aceita como um risco inerente ao todo, de que a planta industrial seria financiada na sua quase-totalidade, a ineficácia superveniente do contrato de financiamento que impede a conclusão da planta poderá propagar-se aos demais contratos do projeto, os quais, em razão da ineficácia do primeiro, tornaram-se inviáveis.” (Virgílio, op. cit. págs. 304 e 308)

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Sobre a autora
Ana Amélia Santos Galli

Advogada em São Paulo, com atuação no setor elétrico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALLI, Ana Amélia Santos. A coligação contratual em projetos de geração de energia elétrica na modalidade project finance e seus efeitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4009, 23 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29624. Acesso em: 22 nov. 2024.

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