O PROJETO DE LEI 2.850/2003
Por este projeto de lei, que continua em trâmite após desarquivamento, extingue-se finalmente o ECAD, e se cria o o Centro de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais (CADDA), com outros moldes, e total e absolutamente fiscalizado.
É importante, neste momento, transcrever um excerto da exposição de motivos do Projeto de Lei 2.850/2003:
A Lei 5.988, veio atender somente os espertos da época, que sempre se locupletaram à custa do direito dos compositores. Sempre foram muitos os brasileiros presidentes de associações, diretores de associações, editores. O número de associações sempre foi de 12 entidades, desconsiderando- se aqui a ADAAF, graças à Constituição Federal de 1988 e a falência do CNDA, que também era mancomunado com as associações. Hoje, além do que já existia de ruim, chegaram os grandes editores internacionais que fazem parte do ativo das fonográficas, açambarcando todo o mercado brasileiro com suas sedes no estrangeiro, ditando normas e regras que os favoreçam e até influenciam, através de lobby, os parlamentares para que ajam e façam leis que protejam os interesses deles: os estrangeiros.
A Lei 9.610, não amparou o compositor musical no seu direito pleno, contrariando até mesmo a Constituição de 1988 no seu art. 5º – XX, ferindo o estado de Direito, permitindo que o Ecad obrigue o compositor a se associar em qualquer uma das 12 associações distribuidoras de direito autoral, para só, então, poder receber os seus direitos. Ou o compositor se filia ou não recebe o direito que tem. Numa simples verificação de escrituração, notar-se-á que encontram-se nos cofres do Ecad milhares de reais retidos por não estar o compositor associado a qualquer uma das 12 associações... vampiros que sugam o sangue dos compositores para enricar seus diretores, anulando aquilo que diz o art. 22 da Lei 9.610 e o Parágrafo único do art. 97 da mesma Lei. (CONGRESSO NACIONAL, 2003)
De fato, o projeto de lei preconiza a supremacia dos direitos do autor, em detrimento de qualquer outro que se oponha a ele. Isto está em plena conformidade com o mandamento constitucional.
Ao se decretar a extinção do ECAD, o projeto de lei está apenas enterrando um sistema que, conquanto criado na esteira da lei, jamais cumpriu o seu papel. Importa que a nova entidade, se criada, esteja sob constante vigilância, a fim de se impedir abusos. Num ponto este projeto avança: Ao não permitir, na gestão e composição do C.A.D.D.A. ninguém além de compositores, não se admitindo sequer o voto por carta ou procuração.
Mas em um ponto ocorre um retrocesso: Não se regulamenta O QUE a nova entidade pode arrecadar, e digo isto porque o mandamento proposto é muito aberto, senão vejamos:
Art. 36. Fica criado o C.A.D.D.A. (Centro de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais) em substituição ao ECAD, com a finalidade de arrecadar e distribuir os direitos advindos de execução pública de obras musicais e de fonogramas, inclusive por meio da radiodifusão e transmissão por qualquer modalidade e de exibição de obras audiovisuais: (CONGRESSO NACIONAL, 2003)
Apenas pela letra da lei, o novo ente pode cobrar qualquer direito autoral advindo da execução pública de obras musicais e fonogramas. Isto inclui a cobrança de obras de não associados e as obras caídas em domínio público, as obras sobre as quais o autor já está recebendo, e até mesmo a execução pública de obras pelo próprio autor.
Novamente o círculo se fecha, e os autores menos favorecidos terão que dar um jeito de se associar à nova entidade se quiserem receber seus direitos autorais, enquanto festas públicas vão continuar sendo achacadas por fiscais da nova entidade, que cobrarão até pela execução de músicas tradicionais e caídas em domínio público, como acontece atualmente.
O que se observa, é que a nova lei se presta apenas para retirar as grandes gravadoras do comando do ECAD, mais nada. Talvez já seja um avanço, quem sabe, mas a questão central do presente estudo permanece inatacada: A nova entidade vai se utilizar do método de trabalho do ECAD, ou seja, vai arrecadar quaisquer direitos autorais, seja de associados ou de não associados, atingindo até mesmo a execução pública de obras caídas em domínio público, e vai continuar pleiteando em juízo como se tivesse legitimidade para tanto, nos mesmos exatos moldes como o faz o ECAD.
O AI 10.028/2000, TJ-RJ
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por ser o Rio de Janeiro o local da sede do ECAD, tem sido palco de diversas batalhas memoráveis contra esta empresa, que praticamente sobrevive às custas de seu departamento jurídico.
No caso em apreço, o ECAD cobrou judicialmente de uma empresa “Pica-pau Alimentos e Diversões Ltda.” direitos cujo titular era o cantor e compositor Roberto Carlos.
A empresa “Pica-pau”, para se livrar de pagar ao ECAD tais direitos, alegou que o artista em epígrafe é proprietário exclusivo de tais direitos, e afiliou-se à SADEMBRA, associação filiada ao CNDE, não ao ECAD. Por este motivo, ou seja, por não trazer o ato de filiação do artista que alega representar, e devido à procuração que trouxe para os autos não ser válida, pois além de conter a assinatura de apenas seis associações, não especifica o objeto, a ação a ser proposta, e o réu, terminando por afirmar que a apresentação do ato de filiação do titular de direitos autorais que o ECAD pretende substituir processualmente é imprescindível, sendo exigência sine qua non, nos termos do artigo 98 da Lei 9.610/98.
O ECAD, espertamente estava tentando receber direitos autorais de um artista vinculado ao seu concorrente, o CNDE.
Em primeira instância, obteve decisão favorável, pelo que a “Pica-pau” agravou, requerendo a declaração da ilegitimidade do ECAD para representar em juízo os titulares de direitos autorais a ele não vinculados, e portanto a extinção do feito.
A decisão do agravo, traz em dado momento de sua fundamentação a seguinte explanação, que a seguir se transcreve:
Estabelece imperativamente o inciso XX do art. 5º da Carta Constitucional que:
“ninguém poderá ser compelido a associar-se ou permanecer associado”
e o inciso XXI desse mesmo artigo, de forma não menos imperativa, acrescenta que:
“as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente”
Ora, se é assim, não se pode admitir que, sem a anuência expressa do interessado, artista, ou produtor intelectual de obras, em ver fiscalizada a sua produção, qualquer entidade se arvore de ser seu representante.
É justamente para dar cumprimento a essa nova regra da Lei Fundamental, que a Lei n. 9.610 de 19 de fevereiro de 1998, que alterou, atualizou e consolidou a legislação sobre direitos autorais, em seu art. 1º determinou que:
“Esta lei regula os direitos autorais, entendendo-se sob esta denominação os direitos do autor e os que lhe são conexos”.
Em seu art. 98, no título VI, quando trata “Das Associações de Titulares de Direitos do Autor” e dos que lhe são conexos diz a lei:
“Com o ato de filiação, as associações tornam-se mandatárias de seus associados para a prática de todos os atos necessários à defesa judicial e extrajudicial de seus direitos autorais, bem como para sua cobrança”.
Se é assim, e sabendo-se que a “mens” constitucional procura impedir os monopólios, não se pode admitir, com o respeito que merecem as decisões em sentido contrário, que sem prova de filiação possa o agravado representar a agravante. (TJRJ, 2001)
Esta decisão, que contemporizou a ADIN 2.054-4, é a que mais se aproxima da técnica processual, plenamente condizente com os mandamentos constitucionais, com a Lei de Direitos Autorais, com o Código de Processo Civil, e com a doutrina que versa sobre legitimidade da parte, representação e substituição processual.
RESULTADOS
Foi possível constatar-se que o que existe de fato é apenas a mantença do pensamento jurídico imperante durante a longa vigência da Lei 5.988/73, pois aparentemente o ECAD, criado sob a égide deste dispositivo, permaneceu com a proteção judicial baseada na jurisprudência erigida, e aproveitou-se desta para continuar sobrevivendo na mesma atividade e no mesmo modus operandi, apesar de agora já não ter o respaldo legal que anteriormente detinha.
A legitimidade ativa do ECAD restringe-se, na letra da lei, apenas na atuação judicial em nome próprio ou no de seus associados, mas em nome da supremacia dos direitos autorais, uma poderosa corrente jurisprudencial mantém o ECAD no papel de guardião constitucional dos tais direitos, fazendo vista grossa para o fato que esta empresa particular, de fato, tem arrecadado dinheiro por todo o território nacional, repassado-o em grande parte para multinacionais com sede no estrangeiro, ao passo que qualquer autor brasileiro não ligado a uma das associações que integram o ECAD fica a ver navios, chegando ao cúmulo de não poder receber seus direitos autorais por que os mesmos já foram recebidos pelo ECAD – que não tem obrigação de repassar tais verbas a não associados.
As questões morais, de idoneidade, etc, passam a ter um papel secundário, porque o que importa, do ponto de vista puramente processual, é que nosso sistema jurídico é baseado no sistema da Civil Law, logo, as decisões devem se amoldar à lei, e não o contrário. Se nos países onde se adota o sistema da Commom Law, considera-se os cases, onde o decisum anterior é fonte fundamental do direito, aqui prevalece o princípio segundo o qual cada nova decisão amolda-se melhor ao caso concreto do que qualquer outra anteriormente existente.
CONCLUSÕES
Diz o brocardo de latino, nemo plus iuri potest ad aliam, quam ipse haberet, ninguém pode dispor de um direito que ele mesmo não detenha (ULPIANO, 2008[1]).
O autor é pleno senhor de sua criação primígena, e quando opta por associar-se com outros autores para assim facilitar a cobrança e o recebimento de seus direitos autorais, está meramente transmitindo um direito disponível que detém, e este direito é e sempre será pessoal, jamais coletivo. Sem ser personalíssimo este direito (como o direito moral sobre a obra o é), a doutrina o reconhece como o mais pessoal dos direitos patrimoniais.
A constituição admite que pessoas se associem para melhor gerir seus direitos, mas coloca a restrição inequívoca, para que a associação só possa agir com a expressa autorização de seu associado, sob pena de ilegitimidade.
Processualmente nunca foi diferente, o processo só pode existir por iniciativa de quem tenha interesse e legitimidade, e é inequívoco que só quem detém o interesse em cobrar direitos autorais é o próprio autor (que pode, por ato voluntário, transmitir seu poder). Ninguém pode pleitear em nome próprio direito alheio, salvo quando autorizado por lei (Artigo 6º do Código de Processo Civil).
O ECAD é apenas uma pessoa jurídica de direito privado, criado apenas e tão somente pela vontade de seus sócios, sem nenhuma regulamentação legal, e sem nenhuma legitimidade atribuída em lei para que possa agir judicial ou extrajudicialmente fora dos estritos limites da autorização das associações que o compõe, e mais especificamente dos associados que individualmente integram cada uma destas associações.
Não existe base legal absolutamente nenhuma para que qualquer empresa privada adentre dentro do estabelecimento de outra e lavre um auto de infração, boleto de pagamento, ou qualquer coisa que o valha, pois isto é, quando menos, exercício arbitrário das próprias razões (nos casos em que exista a legitimidade), ou simples golpe, quando o ECAD esteja atuando sem nenhuma autorização do titular do direito.
Não existe base legal absolutamente nenhuma para que a realização de um espetáculo, festa ou evento fique vinculado ao pagamento prévio de uma “taxa” ao ECAD, sendo que na letra da lei revogada, artigo 73 § 2º da Lei 5.998/73, existia tal previsão, mas na Lei 9.610/98 o que existe é a necessidade da autorização prévia e expressa DO AUTOR, para a utilização dentro do rol não exaustivo do artigo 29, isto devido à prevalência do direito exclusivo previsto no artigo 28.
O que ocorreu foi a transferência do Estado para o particular da gestão dos direitos autorais, onde no panorama legal da década de 70 do século passado admitia-se a criação de uma empresa, fiscalizada pelo Estado, com direitos de arrecadação que muito se aproximavam da parafiscalidade, sendo que atualmente o que sobreexiste é a possibilidade prevista em lei de as associações, nos limites dos direitos outorgados individualmente pelos autores que as integram, se reunirem em um único órgão, para os fins de melhor gerirem a arrecadação e a distribuição dos direitos de seus associados.
Esta liberdade positiva ou negativa não pode ser gerida pelo Estado, ex vi do inciso XX do artigo 5º da Constitucional Federal, e se fosse o caso de se sopesar esta regra pela suplantação de outra regra, a saber, a proteção do direito autoral, por este nobre motivo poder-se-ia admitir, como se fez na ADIN 2.054-4, a obrigatoriedade das pessoas jurídicas (associações de autores) a se ajuntarem sob uma mesma entidade, mas cabe aí se observar que nem mesmo em sede do mais veemente dos votos na referida ADIN jamais se cogitou a obrigatoriedade de pessoas físicas se vincularem a esta ou aquela associação. Como no caso concreto a pessoa jurídica que se criou, e sobrevive até hoje, atua arrecadando para seus próprios cofres as fortunas de autores que via de regra jamais conseguirão receber seus legítimos direitos, o que está ocorrendo é a simples subtração destes direitos autorais, com a apropriação indevida destas verbas pelo ECAD, verbas esta que são transferidas em grande montante para as multinacionais de entretenimento que a comandam. Como muitas vezes estas verbas são arrecadadas dos cofres públicos, a questão é por demais grave, e merece ser combatida com todas as forças.
BIBLIOGRAFIA
BRASIL, Ministério da Cultura, conforme informações disponíveis no site http://www.cultura.gov.br/legislacao/docs/EX-ORGAO.htm em 05 de Outubro de 2007;
CONGRESSO NACIONAL, PL 2.850/2003, conforme informações disponíveis no site http://www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=192393 em 05 de Outubro de 2007;
CONGRESSO NACIONAL, Projeto de Resolução 223/2005, conforme informações disponíveis no site http://www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=289619 em 05 de Outubro de 2007;
CONSULTOR JURÍDICO, conforme informações disponíveis no site http://conjur.estadao.com.br/static/text/47781,1 em 05 de Outubro de 2007 – publicado em 28 de agosto de 2006;
CONSULTOR JURÍDICO, conforme informações disponíveis no site http://conjur.estadao.com.br/static/text/41968,1 em 05 de Outubro de 2007 – publicado em 15 de Fevereiro de 2006;
IFPI, conforme informações disponíveis no site http://www.ifpi.org/ em 05 de Outubro de 2007;
IFPI - Membros, conforme informações disponíveis no site http://www.ifpi.org/content/section_links/member_sites.html em 05 de Outubro de 2007;
PONTES DE MIRANDA, Francisco C., Comentários ao Código de Processo Civil: TOMO I, São Paulo: Editora Forense, 2001;
SANTOS, Moacyr Amaral, Primeiras linhas de direito processual civil: volume 1, 23ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2004;
STJ, REsp. n° 95.803/MG, Rel. Min. Barros Monteiro, J. 20.08.96, DJ 04.11.1996;
STJ, REsp. n° 8.069/PR, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, J. 10.12.96, DJ 24.02.1997;
STJ, REsp. n° 174.819/MG, 3ª T., Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 14.12.1998;
STJ, REsp. Nº 569.062/SC, 1ª T., Rel. Min. Denise Arruda, DJ 29.04.2005;
STF, ADIN 2.054-4, Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 09.04.2003;
TJRJ, AI 10.028/2000, 14ª Câmara Cível, Rel. Des. Walter Felippe D'Agostino, DJ 08.01.2001.
ULPIANO, Digesto de Justiniano, Livro X, Dig.50.17.54, conforme disponível no site http://www.vrbs.org/liber50.html em 13 de Fevereiro de 2008.
Nota
[1]Ulpiano, jurista latino que viveu no sec II, escrito compilado no livro digesto, que foi publicado pelo Imperador romano Justiniano I entre 529 e 534 DC, mas cujas melhores referências estão na internet.