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Direito e literatura:

a linguagem jurídica, o acesso à justiça e o processo kafkaniano

Leia nesta página:

A utilização de uma linguagem jurídica hermética empregada pelos operadores do direito acaba por difundir barreiras e segregações aos indivíduos que procuram os tribunais a fim de tutelar seu bem da vida.

RESUMO: O presente trabalho tem como escopo analisar como a utilização de uma linguagem jurídica rebuscada e hermética pelos operadores do direito acaba por configurar uma barreira ao acesso à justiça ao jurisdicionado. Esta análise será realizada a partir de uma ótica Kafkaniana do processo.

PALAVRAS CHAVE: Linguagem Jurídica. Kafka. Acesso à Justiça.


1. INTRODUÇÃO

A linguagem é um dos instrumentos caracterizadores do cotidiano forense, seja pelo seu tecnicismo ou rebuscamento, a comunicação acaba por distinguir a ciência jurídica dos demais ramos da ciência. A problemática surge quando a linguagem deixa de ser um instrumento acessível e facilitador da compreensão dos direitos e deveres do cidadão, e passa a obstaculizar o acesso à justiça.

O direito, enquanto ciência criada para instrumentalizar e garantir que o indivíduo tenha uma vida em sociedade justa, visando o tratamento igualitário entre os homens, acaba por afastar-se deste escopo, na medida em que seus operadores se utilizam do instrumento da linguagem para determinar quem pode alcançar este direito.

O presente trabalho irá abordar essa temática, sob o enfoque da teoria do poder simbólico do sociólogo Francês Pierre Bourdieu, elucidando de que forma a linguagem jurídica é utilizada para garantir o poder de uns em detrimento dos direitos dos cidadãos, bem como será realizada uma análise do acesso à justiça sob a ótica do autor austríaco Franz Kafka, a partir de sua célebre obra O Processo.


2. A LINGUAGEM JURÍDICA E O PODER SIMBÓLICO

A linguagem como meio de comunicação e interação entre indivíduos de uma sociedade é utilizada para transmitir mensagens e códigos, a fim de esclarecer significados e facilitar a compreensão de informações. Este recurso encontra espaço essencial na ciência do direito, seja através do uso da retórica, e até mesmo da própria escrita forense, dando assim, contornos característicos a ciência jurídica.

Entretanto, verifica-se que a função precípua da linguagem no ramo do direito vem desvirtuando seu objetivo principal. O uso da linguagem em latim, e de sinônimos rebuscados acaba por dificultar a compreensão e interpretação da mensagem jurídica. Porém, quando esta prática é analisada sob a ótica do indivíduo, constata-se que o cidadão, por desconhecer e não compreender o que a lei, uma sentença, ou mesmo o que o próprio advogado profere, tem seu acesso à justiça restrito e em alguns casos não há acesso, por falta de compreensão. Assim, o indivíduo é cerceado de obter o bem jurídico pretendido.

Por se tratar de um fenômeno recorrente, e que afeta diretamente o jurisdicionado, sociólogos, juristas e filósofos criaram diversas teses para justificar o uso deste tipo de linguagem no meio jurídico. Dentre as mais conhecidas, a teoria do poder simbólico, do sociólogo Pierre Bourdieu, explica como a linguagem é utilizada para manter o poder de quem a utiliza, em detrimento da sociedade.

Segundo o autor:

As diferentes classes e frações de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais. Elas podem conduzir esta luta quer diretamente, nos conflitos simbólicos da vida quotidiana, quer por produção, por meio da luta travada por especialistas da produção simbólica (…) e na qual está em jogo o monopólio da violência simbólica legítima (cf. Weber), quer dizer, do poder de impor – e mesmo de inculcar – instrumentos de conhecimento e de expressão (taxonomias) arbitrários – embora ignorados como tais – da realidade social. (BOURDIEU, 2006, p. 12.)

Assim, O poder simbólico é aquele decorrente dos nossos instrumentos de comunicação e conhecimento. Trata-se de um poder invisível, pois é exercido ou sofrido de tal forma que o agente ou a vítima não se sabe atingido por esse poder.

O poder simbólico acaba por desencadear uma imposição sobre como as relações serão vistas e compreendidas, imposição esta sob o comando de quem detém esse poder. No mundo jurídico, os indivíduos que atuam na área, ao utilizarem-se da linguagem jurídica acabam sendo os detentores deste poder, deixando os demais indivíduos de uma sociedade à margem da realidade.

Na obra O Processo, Kafka retrata essa incidência do poder simbólico através da linguagem, no capítulo intitulado “O Advogado”, em que o advogado utiliza-se de um vocabulário rebuscado para ludibriar Josefh K. — personagem principal da trama, alvo de um processo do qual desconhece a origem e que tramita em um tribunal oficioso, sem qualquer apego aos ditames legais —, uma vez que este necessita de informações sobre seu processo e o seu patrono não lhe informa de absolutamente nada em concreto, conforme se infere do trecho:

De quando em vez, o advogado fazia a K. umas advertências ocas de sentido, como as que se fazem à crianças. Por conversas assim tão inúteis quanto maçadoras não tencionava K., quando o advogado lhe apresentasse a conta final, dar nem um chavo. Depois do advogado considerar que K. estava suficientemente humilhado, punha-se geralmente a elevar-lhe um pouco o moral. (KAFKA, 2005, p. 82)

A obra kafkaniana permite que sejam realizadas diversas interpretações. No trecho acima, o advogado realmente fazia advertências sem sentido, ou o personagem não compreendia do que se tratava? E ainda, observa-se que o advogado utiliza-se de seus conhecimentos jurídicos para conduzir a dignidade de K. conforme lhe é conveniente, ora humilha o personagem com suas palavras, ora o estimula. Trata-se de um jogo de poder, que o advogado se utiliza, considerando que seu cliente não tem conhecimento jurídico suficiente para reagir.

Os instrumentos utilizados pelos juristas acabam sendo verdadeiras armas de um jogo em um campo que somente a eles é acessível. Quanto aos outros, cabe suportar a força exercida por este poder simbólico, pois a contrapartida é a obtenção do bem da vida que está em litígio.

Na teoria do poder simbólico, Bourdieu sustenta que no próprio campo jurídico, este poder não é exercido de forma igualitária, e sim, conforme uma hierarquia, solidificada segundo as instâncias judiciais. Quanto maior a instância em que o operador do direito se encontre, maior será seu poder de definir acerca de determinada interpretação, ou seja, de “dizer o direito”. Certos juristas exercem maior controle acerca do entendimento da linguagem que outros, esta distinção é explicada pelo sociólogo:

O campo jurídico é o lugar da concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social. É com esta condição que se podem dar as razões quer da autonomia relativa do direito, quer do efeito propriamente simbólico de desconhecimento, que resulta da ilusão da sua autonomia absoluta em relação às pressões externas.” (BOURDIEU, 2006, p. 212).

Nesse sentido, Kafka também faz alusão à forma que o poder simbólico é percebido dentre os operadores do direito, de acordo com a hierarquia judicial. No primeiro capítulo da obra essa hierarquia de poder é bem ilustrada, no momento em que os guardas chegam à casa de K. para cumprir o mandato de prisão. Ao questionar a cerca da legalidade da detenção, K. é surpreendido com respostas limitadas dos guardas, sujeitos estes do menor grau da hierarquia judicial, que retratam a hierarquia e explicam que estão subordinados à letra da lei:

Nós somos apenas funcionários subalternos, que pouco ou nada percebe de documentos de identificação e que, neste caso, não tem outra missão a não ser de vigiá-lo dez horas por dia. É para isso que nos pagam. No entanto, ainda somos capazes de compreender que as altas autoridades, ao serviço das quais estamos, antes de darem uma ordem de prisão, tiram minuciosas informações acerca da pessoa a ser detida e dos motivos da detenção. Assim, não há possibilidades de engano. As nossas autoridades, até onde eu conheço, e os meus conhecimentos não vão além das categorias mais baixas, são daquelas que andam atrás das culpas das pessoas, mas como diz a Lei, são forçadas pelos delitos a enviarem-nos a nós, os guardas. É assim a Lei.” (KAFKA, 2005, p. 8) 

Fica evidente, no trecho acima, que os guardas não possuem a compreensão da lei, não são capazes de interpretá-la, estes cumprem um papel meramente operacional, se limitando à execução de ordens. A própria justificativa que dão a K. carece de fundamentação, pois eles desconhecem o real sentido da lei, apenas sabem que existe uma lei.

Desta forma, a teoria do poder simbólico vem demonstrar como até os dias atuais os juristas utilizam-se da linguagem jurídica como uma barreira ao jurisdicionado. Que o acesso à justiça acaba sendo mitigado por uma estrutura judicialmente hierarquizada, que confere poderes intangíveis, porém influentes aos operadores do direito.


3. O ACESSO À JUSTIÇA

A linguagem jurídica como vem sendo utilizada desencadeia uma problemática não apenas relacionada à hierarquia judicial e a disputa pelo poder, mas também acaba por incidir diretamente sobre um dos pilares do direito, qual seja, o acesso à justiça e conseqüentemente uma barreira à concretização do Estado Democrático de Direito.

Segundo José Afonso da Silva:

O Estado democrático de Direito possui um compromisso com a justiça material, aquela caracterizada não apenas como a igualdade perante a lei, igualdade formal, porém aquela que vá levar à redistribuição da riqueza, de modo a reestruturar as relações sociais e econômicas, alicerçando a sociedade democrática a qual não se concebe sem a participação do cidadão comum nos mecanismos de decisão.” (SILVA, 2012, p. 58)

Apreende-se que o escopo da democracia possui seus alicerces no tratamento isonômico entre os cidadãos, pretendendo garantir a participação da maioria, objetivo este oposto à segregação, que vem sendo afirmada pelo instrumento da linguagem.

Desta forma, o emprego de uma linguagem técnica, estilística em demasia, acaba por privar o cidadão comum do entendimento e das interpretações da lei e, conseqüentemente, este recurso que tem como função transmitir uma informação, acaba por impedir a concessão da tutela jurisdicional, uma vez que as próprias partes envolvidas na lide têm de enfrentar mais esta essa barreira da linguagem.

Nota-se que essa problemática não se resume a requisitos econômicos/sociais, pois o elevado nível hermético dos termos jurídicos acaba por refletir nas inúmeras páginas de livros, em que os próprios doutrinadores destinam à alcançar o conceito de determinada palavra, discussão essa, que na maioria das vezes não finda em um consenso.

O direito, enquanto instrumento condicionante da vida em sociedade, requer uma aplicação minimamente possível no cotidiano de uma civilização, afinal, a essencialidade das condutas humanas são permeadas por normas de direito, envolvendo constantemente obrigações e deveres entre os indivíduos. Assim, o acesso a este direito não pode ser mitigado, ou mesmo colocado à disposição de uma parcela mínima da população.

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Mauro Cappelletti e Braynt Garth já alertavam: “o direito de acesso à Justiça é considerado como o mais básico dos direitos humanos, sendo este o responsável pela efetividade dos demais direitos que incluem, além dos civis e políticos, gerados no século XVIII, os direitos sociais, econômicos e culturais.” (CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 8)

Dessa forma, a expressão “acesso à justiça” vai além do direito de acesso ao Poder Judiciário, compreendendo-a como o acesso uma ordem jurídica que vá proporcionar ao cidadão resultados que sejam individual e socialmente justos.

Percebe-se que a linguagem jurídica assume desta forma o papel de distanciar o jurisdicionado do bem jurídico pretendido. Segundo uma análise Kafkaniana do processo, esta questão retrata não somente a insuficiência do procedimento, como também, o formalismo exacerbado que acaba por não solucionar as lides. Conforme se infere do trecho:

O advogado tinha um repertório inesgotável de conversas destas e semelhantes, repetia-as em todas as visitas. Nunca deixava de se referir a progressos, mas jamais podia informar qual o gênero deles. Estava-se sempre a trabalhar no primeiro requerimento, mas este nunca mais chegava ao seu termo, o que, em geral, era apresentado como uma grande vantagem da visita seguinte, pois que da última vez, coisa que ninguém poderia prever, não teria sido muito oportuno proceder à sua entrega. Se K., já esgotado pelos discursos, observava que, mesmo tomando em consideração todas as dificuldades, as coisas avançavam muito lentamente. (KAFKA, 2005, p. 89)

A alegoria de Kafka retrata a insatisfação que muitos jurisdicionados deparam-se quando são submetidos a um processo judicial. Na busca pela informação e a própria solução do conflito, esbarram nas explicações que pouco ou nada elucidam. O advogado, que precipuamente deve zelar pela defesa de seu cliente, bem como auxiliá-lo na condução do processo, acaba por dificultar sua participação e assume o papel de mais um agente segregador do cidadão em relação à esfera jurídica.

Assim, o acesso à justiça limita-se à mera formalidade, o acesso à via judicial vem sendo garantida ao jurisdicionado, porém não goza de satisfatoriedade. Neste sentido, corrobora o entendimento de Canotilho, citado por José Renato Nalini:

Se, por um lado, a defesa dos direitos e o acesso de todos aos tribunais tem sido reiteradamente considerado como o coroamento do Estado de Direito, também, por outro lado, se acrescenta que a abertura da via judiciária é um direito fundamental formal. (NALINI, 2012)

Desta forma, resta claro que os indivíduos não poderão usufruir da garantia de fazer valer seus direitos perante os tribunais, se não conhecem a lei, nem o limite de seus direitos. O conhecimento do Direito constitui pressuposto à sua aplicação e pode ser traduzido como o direito a ter direitos.


4. CONCLUSÃO

Atualmente, o acesso à justiça vem sendo permitido prima facie, no âmbito puramente formal, no tocante aos indivíduos que desconhecem o ordenamento jurídico. A utilização de uma linguagem jurídica hermética empregada pelos operadores do direito acaba por difundir barreiras e segregações aos indivíduos que procuram os tribunais a fim de tutelar seu bem da vida.

A obra realista O Processo, ainda que remonte à primeira metade do século XX, consagra-se como atual, na medida em que faz alusão a diversas falhas do Poder Judiciário que vigoram até os dias atuais. Dentre elas, o problema da linguagem jurídica é considerado por ser utilizada como uma ferramenta que acaba dificultando o acesso à justiça.

A teoria do poder simbólico apresenta-se como uma das justificativas plausíveis, ao interesse dos operadores do direito, em continuar fazendo uso de uma linguagem rebuscada, que acaba por afastar o cidadão da prestação jurisdicional.

Por fim, compreende-se que a real democratização implica uma aproximação do direito da realidade que procura representar e sobre a qual pretende agir, implica ainda a adoção de uma postura que não cria divisões e separações entre universos discursivos, quando a síntese a simplicidade podem significar mais.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Linguagem Jurídica. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 9 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988.

KAFKA, Franz. O Processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

NALINI, José Renato. Novas Perspectivas no Acesso à Justiça. Disponível em: http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewArticle/114. Acesso em 15.01.2014.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

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Sobre os autores
Arthur Laércio Homci

Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará - UFPA (2011). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará - CESUPA (2009). Atualmente é Professor de Direito Processual Civil e Direito Previdenciário (Graduação e Especialização), e Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica do CESUPA. Advogado.

Aline Sotão Campos

Acadêmica de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará — CESUPA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HOMCI, Arthur Laércio ; CAMPOS, Aline Sotão. Direito e literatura:: a linguagem jurídica, o acesso à justiça e o processo kafkaniano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4016, 30 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29880. Acesso em: 4 nov. 2024.

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