“As questões e reflexões urbanísticas saem dos círculos dos técnicos, dos especialistas, dos intelectuais que pretendem estar na vanguarda dos fatos. Passam para o domínio público através de artigos de jornais e de livros de alcance e ambição diferentes”
Henry Lefrebvre
“Direito à Cidade”
A questão urbana permeia o cotidiano de bilhões de seres humanos e influencia as chances de sobrevivência qualitativa de pessoas de diferentes costumes e tradições, intercruzando fronteiras, culturas e criando um interesse comum planetário, na medida em que mais da metade da população mundial habita o espaço urbano.
As melhores chances dessa população, que no passado deveu seu espantoso crescimento ao êxodo rural, passam agora pela identidade comum, entre todas as metrópoles, dos problemas urbanos e neste ponto reside a crucial importância do intercâmbio dos estudos e das experiências urbanas, como a Carta de Embu que, desde 1976, norteia a aplicação do instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir, no espaço urbano, o chamado “Solo Criado”.
A Natureza Jurídica Não Tributária da Outorga Onerosa do Direito de Construir.
O instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir, também denominado de Solo Criado, compreende toda a área edificável que extrapola o coeficiente único de aproveitamento do lote, fixado para o local mediante lei específica.
O Solo Criado representa e constitui um acréscimo ao direito de construir, além do coeficiente básico de aproveitamento estabelecido pela lei. Superado esse coeficiente, até o limite admitido pelas normas edilícias, o proprietário somente poderá construir, mediante aquisição do Município, de área edificável, nas condições que a lei municipal determinar para a correspondente zona.
O surgimento do instituto da outorga onerosa advém da mudança de rumo que o direito de propriedade, antes absoluto, sofreu em decorrência do reconhecimento da supremacia do interesse coletivo.
Neste ponto, importa destacar que as normas que disciplinam o uso do solo e do espaço representam o conjunto de comandos de interesse da coletividade, no que diz respeito, não somente à qualidade urbana de vida (conforto acústico, visual, térmico e lumínico), mas também à sobrevivência e à saúde de seus habitantes.
Tais normas devem refrear a real possibilidade do surgimento de males decorrentes da ocupação desordenada do espaço urbano, tais como: os congestionamentos crônicos do transito, o aumento da violência setorizada, o descarte do lixo na via pública, os enclaves urbanos, representados por condomínios fechados que, no futuro, constituirão verdadeiros entraves ao planejamento e à capilaridade das vias públicas e o abandono de imóveis que servem de abrigo para vetores de doenças e de toda a sorte de praga que se instala no ambiente urbano.
Muitos desses males já se encontram presentes no dia-a-dia das cidades e, não raras vezes, passam despercebidos pela população e até mesmo pelas autoridades responsáveis por seu controle, que, frequentemente, tendem a não associar sua presença ao desordenamento urbano.
O bem coletivo
Em razão da função social da propriedade ter sido guindada ao plano Constitucional, consolidou-se a ruptura definitiva entre o direito de propriedade e o direito de construir.
A função social da propriedade e sua aplicabilidade prática, mediante institutos de ordenamento sócioespacial, a exemplo da outorga onerosa, não configura, meramente, uma restrição ao direito de propriedade, como muitos acreditam, na medida em que incorpora a própria definição desse direito. Por conseguinte, não constitui excesso afirmar que inexiste o direito de propriedade dissociado de sua função social.
Portanto, a parte excedente ao coeficiente mínimo até o máximo (parte utilizável mediante outorga), inclusive a que exceder o máximo (parte não utilizável), constitui bem de caráter público, pertencente à coletividade, somente podendo ser objeto de uso por particulares, nos limites estabelecidos em lei municipal.
Na condição de bem público, o espaço edificável, poderá ser objeto de uso gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade, cuja administração pertencer, sendo essa a inteligência do art. 103 do Código Civil Brasileiro, aprovado pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Verbis:
“Art. 103. O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem.”
O caráter não tributário da outorga onerosa
Dentre as receitas públicas que o Estado aufere, algumas são de natureza não tributária, a exemplo:
- preços em decorrência de alienações efetuadas pelo Estado;
- as rendas referentes a multas administrativas;
- doações que o Estado recebe;
- as contrapartidas ou retribuições onerosas decorrentes da utilização de bens públicos, previstas no art. 103 do Código Civil Brasileiro, incluída a utilização, para construção, do bem público constituído pelo espaço aéreo excedente ao coeficiente mínimo, com a denominação de Outorga Onerosa do Direito de Construir.
A natureza jurídica de preço público da outorga onerosa
O preço público não configura nenhuma espécie de tributo (não é receita tributária), pois sua exigência não é compulsória e nem está assentada no poder fiscal do Estado.
O preço público expresso em valor monetário (em moeda de curso legal) que o Estado cobra do adquirente ou permissionário, pela alienação ou permissão de uso, de caráter oneroso, de um bem material ou imaterial.
O solo criado e sua condição de instrumento urbanístico regulatório
Em razão da necessidade de organização das cidades, as normas de cunho urbanístico estabelecem índices denominados de "taxa de ocupação" e "coeficiente de aproveitamento", que se referem respectivamente à área do terreno que será ocupada pela construção, e a relação entre a área total de construção e a área total do lote.
Por outro lado, há um fator de valorização em algumas áreas urbanas, decorrentes das intervenções urbanísticas do Poder Público, bem como da instalação de atividades comerciais, industriais e de serviços, que eleva desenfreadamente o preço dessas propriedades, atraindo a especulação imobiliária.
Em razão desse fenômeno, ocorre o adensamento construtivo desordenado, que além de gerar todos os males já descritos anteriormente, produz no entorno áreas estagnadas, constituídas de imóveis que são literalmente deteriorados (até mesmo abandonados) pelos proprietários, na expectativa de sua valorização para fins de venda especulativa.
O abandono de imóveis, para fins de especulação imobiliária, constitui prática, cada vez mais comum às cidades de médio e grande porte, que expõe a face mais expressa e perversa do desuso nocivo dessas propriedades, que se transformam numa grave ameaça à coletividade.
Por sua vez, o adensamento construtivo desordenado termina por extrapolar a capacidade da infraestrutura instalada, o que acarreta a necessidade de intervenções, por parte do Poder Público, para ampliação da sua capacidade, em detrimento de investimentos que poderiam ser feitos em outras áreas da cidade.
Inegável, portanto, a fundamental importância do uso de instrumentos urbanísticos regulatórios, como a Outorga Onerosa do Direito de Construir, que assume a condição de um fator de equidade entre os proprietários de imóveis em seu direito de construir, na proporção dos tamanhos de seus lotes, em relação à quadra, visando o melhor aproveitamento da capacidade da infraestrutura instalada.
Por fim, a adoção do coeficiente único de aproveitamento, na outorga onerosa, não prescinde das regras gerais de zoneamento, que são fundamentais ao planejamento e ordenamento adequado do uso e ocupação do solo urbano. No entanto, tais regramentos, de per si, evidenciam-se insuficientes para garantir o efetivo cumprimento da função social da propriedade, restando daí imprescindível a implantação e funcionamento desse instrumento de controle urbanístico.
A imposição de limites à construção, mediante o componente oneroso da outorga, aos que pretendam edificar além do coeficiente básico, constitui, em última análise, a mínima contrapartida que a coletividade faz jus, constituindo uma ferramenta eficaz para o controle do adensamento construtivo, o que poderá representar, em última instância, a melhor garantia da cidade saudável que todos queremos.