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O Direito Comercial e o novo Código Civil brasileiro

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01/07/2002 às 00:00
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1.Introdução

Em janeiro de 2002 foi promulgado, finalmente, o novo Código Civil brasileiro (Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002), criticado por muitos em razão do longo tempo em que esteve em trâmite no Congresso Nacional, já que o projeto é de 1975 (Projeto n° 634/75). O novo Código Civil destaca-se por disciplinar a matéria civil e também a matéria comercial, realizando no país, a exemplo do que ocorreu na Itália em 1942, a unificação legislativa do Direito Privado tradicional.

O novo Código Civil entrará em vigor em janeiro de 2003, revogando expressamente o Código Civil de 1916 (Lei n° 3.071, de 1° de janeiro de 1916) e a Parte Primeira do Código Comercial (Lei n° 556, de 25 de junho de 1850), que trata do "Comércio em Geral". Em razão da referida unificação legislativa, é necessário destacar alguns aspectos referentes à autonomia jurídica do direito comercial e a evolução proporcionada a esse ramo do Direito Privado com o surgimento do novo Código, afastando-se, de imediato, qualquer entendimento precipitado que possa sugerir o fim ou o desprestígio do direito comercial no país pela inserção de suas normas fundamentais no Código Civil.

A autonomia legislativa de determinado ramo do direito resulta de uma opção do legislador. O fato do direito comercial possuir as suas normas fundamentais inseridas em um Código ao lado das normas do direito civil não prejudica a sua autonomia jurídica. No novo Código Civil, a matéria de natureza comercial é disciplina no Livro II da Parte Especial, que possui 229 artigos e denomina-se "Do Direito de Empresa", não se confundindo a natureza comercial desses dispositivos com os demais artigos do Código. Portanto, a matéria comercial não se confunde com a matéria civil no novo Código Civil, sendo um dos fatores que evidenciam a autonomia jurídica do direito comercial.

Embora possam ser apresentadas várias críticas ao novo Código Civil, não se pode deixar de ressaltar os benefícios proporcionados ao direito comercial, como por exemplo, a adoção da teoria da empresa nas suas normas fundamentais, que vem consolidar a ampliação da abrangência do direito comercial no país, tendência verificada nos últimos trinta anos na doutrina, na legislação e na jurisprudência. O novo Código Civil brasileiro, ao adotar a teoria da empresa para disciplinar a matéria comercial, rompe o período de transição vivido pelo direito comercial desde 1970 no Brasil, afastando-o da antiga idéia francesa da enumeração artificial de atos de comércio na lei segundo o gênero da atividade, que excluía do regime comercial importantes atividades econômicas, como por exemplo, a prestação de serviços em geral e a atividade imobiliária.

A teoria da empresa elaborada pelos italianos não se preocupa com o gênero da atividade econômica, o que importa para a teoria da empresa é o desenvolvimento da atividade econômica mediante a organização de capital, trabalho, tecnologia e matéria-prima, que resulta na criação e na circulação de riquezas. Com a teoria da empresa, o direito comercial passa a ser baseado e delimitado na atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, libertando-se da arbitrária divisão das atividades econômicas segundo o seu gênero, como previa a teoria dos atos de comércio.

O novo Código Civil brasileiro surge como referência do início de uma nova fase do direito comercial brasileiro, contribuindo para a sua evolução no país, ao contrário do que possa sugerir, de imediato, a unificação legislativa realizada. O Código Civil de 2002 aparece para transpor o período de transição do direito comercial, consolidando-o como o direito da empresa, maior e mais adequado para disciplinar o desenvolvimento das atividades econômicas no país. Questiona-se, entretanto, se essa evolução não poderia resultar de uma legislação autônoma que reformasse o Código Comercial sem inserir normas comerciais no bojo do Código Civil.


2. Do direito comercial ao direito empresarial

Para entender o atual direito comercial mostra-se necessário ressaltar os principais aspectos de sua evolução histórica. O surgimento do direito comercial relaciona-se à ascensão da classe burguesa, originando-se da necessidade dos comerciantes da Idade Média possuírem um conjunto de normas para disciplinar a atividade profissional por eles desenvolvida. Reunidos em corporações de ofício, os comerciantes criaram o direito comercial com base nos usos e costumes comerciais difundidos pelos povos que se dedicaram à atividade comercial, dentre os quais destacam-se os gregos e os fenícios. Esses povos antigos trouxeram importantes contribuições na área do comércio marítimo, permitindo o surgimento de importantes institutos jurídicos incorporados pelo direito comercial no decorrer de sua evolução histórica.

O direito comercial aparece na Idade Média com um caráter eminentemente subjetivista, já que foi elaborado pelos comerciantes reunidos nas corporações para disciplinar suas atividades profissionais, caracterizando-se, no início, como um direito corporativista e fechado, restrito aos comerciantes matriculados nas corporações de mercadores. Criado para disciplinar a atividade profissional dos comerciantes, o direito comercial nasce como um direito especial, autônomo em relação ao direito civil, o que lhe permitiu alcançar autonomia jurídica, possuindo uma extensão própria, além de princípios e métodos característicos, que contribuíram para a sua consolidação como disciplina jurídica autônoma.

O prestígio e a importância das corporações começaram a se enfraquecer com o mercantilismo, que fortaleceu o Estado e afastou das corporações de mercadores a elaboração das normas comerciais e sua respectiva aplicação pelos cônsules, que eram os juízes eleitos pelos comerciantes nas corporações para decidir os conflitos de natureza comercial. As primeiras codificações das normas comerciais surgiram na França, com as Ordenações Francesas. A primeira Ordenação, de 1673, tratava do comércio terrestre e ficou conhecida como Código Savary. Em 1681 surgiu a Ordenação da Marinha, que disciplinava o comércio marítimo.

As Ordenações Francesas tiveram vigência por um longo tempo e o Código Savary foi a base para a elaboração do Código de Comércio Napoleônico de 1807, responsável pela objetivação do direito comercial, afastando-o do aspecto subjetivo da figura do comerciante matriculado na corporação. Com o Código Comercial francês de 1807 o direito comercial passou a ser baseado na prática de atos de comércio enumerados na lei segundo critérios históricos, deixando de ser aplicado somente aos comerciantes matriculados nas corporações.

De acordo com a teoria francesa dos atos de comércio, a matéria comercial deixa de ser baseada na figura do comerciante da Idade Média e passa a ser definida pela prática dos atos de comércio enumerados na lei. Assim, para se qualificar como comerciante e submeter-se ao direito comercial, deixou de ser necessário à pessoa que se dedica a exploração de uma atividade econômica pertencer a uma corporação, bastando a prática habitual de atos de comércio. Essa objetivação do direito comercial atendia aos princípios difundidos pela Revolução Francesa em 1789.

Na enumeração realizada nos artigos 632 e 633 do Código francês, o legislador considerou de natureza comercial os atos que eram tradicionalmente realizados pelos comerciantes na sua atividade, não sendo possível identificar nessa enumeração legal qualquer critério científico para definir quando um ato é ou não de comércio. Ao enumerar os atos de comércio, o legislador baseou-se em fatores históricos, sendo esse o grande problema da teoria francesa, que se mostrou bastante limitada diante da rápida evolução das atividades econômicas, tornando-se uma teoria ultrapassada por não identificar com precisão a matéria comercial, já que não foi possível a identificação de um elemento de ligação entre os atos de comércio previstos na lei.

A enumeração legal dos atos de comércio apresenta natureza exemplificativa e, sabendo-se que novas atividades econômicas surgiriam, coube a doutrina elaborar uma fórmula para se definir a comercialidade das relações jurídicas. Entretanto, jamais se conseguiu criar um critério seguro para se definir a comercialidade de um ato com base na teoria francesa, já que os atos de comércio foram selecionados e inseridos na lei tendo como referência apenas o fato de serem praticados pelos comerciantes no exercício de sua profissão. Assim, atividades econômicas que tradicionalmente não eram desenvolvidas pelos comerciantes, como a atividade imobiliária, a prestação de serviços em geral e a atividade agrícola, foram afastadas do regime comercial. A ausência de um critério científico na separação das atividades econômicas em civis e comerciais e a exclusão de importantes atividades do regime comercial em razão do seu gênero, constituíram os principais fatores para o desprestígio da teoria francesa, contribuindo para a sua superação.

Em consonância com o desenvolvimento das atividades econômicas e de acordo com a tendência de crescimento do direito comercial, surgiu na Itália uma teoria que substituiu a teoria francesa, superou os seus defeitos e ampliou o campo de abrangência do direito comercial. Essa teoria, denominada de teoria jurídica da empresa, caracteriza-se por não dividir as atividades econômicas em dois grandes regimes, como fazia a teoria francesa, e foi inserida no Código Civil italiano de 1942, que ficou conhecido por ter realizado a unificação legislativa do direito privado na Itália.

A teoria da empresa elaborada pelos italianos afasta o direito comercial da prática de atos de comércio para incluir no seu núcleo a empresa, ou seja, a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços. Com a teoria da empresa, deixa de ser importante o gênero da atividade econômica desenvolvida, não importando se esta corresponde a uma atividade agrícola, imobiliária ou de prestação de serviços, mas que seja desenvolvida de forma organizada, em que o empresário reúne capital, trabalho, matéria-prima e tecnologia para a produção e circulação de riquezas.

De acordo com a teoria da empresa, o direito comercial tem o seu campo de abrangência ampliado, alcançando atividades econômicas até então consideradas civis em razão do seu gênero. A teoria da empresa, ao contrário da teoria francesa, não divide as atividades econômicas em dois grandes regimes (civil e comercial), prevê um regime amplo para as atividades econômicas, excluindo desse regime apenas as atividades de menor importância, que são, a princípio, as atividades intelectuais, de natureza literária, artística ou científica. Segundo a teoria da empresa, a atividade agrícola também pode estar afastada do direito comercial, já que cabe ao seu titular a opção pelo regime comercial, que ocorre mediante o registro da atividade econômica no Registro Público de Empresas, realizado no Brasil pelas Juntas Comerciais.

Considerando o núcleo que delimita a matéria comercial ao longo de sua evolução histórica, pode-se dividir o desenvolvimento do direito comercial em três períodos. O primeiro período, do Séc. XII ao Séc. XVIII, denominado de período subjetivo corporativista ou período subjetivo do comerciante, tem como núcleo do direito comercial a figura do comerciante matriculado na corporação. O segundo período, compreendido entre o Séc. XVIII e o Séc. XX, inicia-se com o Código de Comércio Napoleônico de 1807 e tem como núcleo os atos de comércio. O terceiro e atual período de evolução histórica do direito comercial inicia-se com o Código Civil italiano de 1942 e tem como núcleo a empresa, compreendendo o Séc. XX até nossos dias.


3. A evolução do direito comercial brasileiro

O direito comercial brasileiro tem origem em 1808 com a chegada da família real portuguesa ao Brasil e a abertura dos portos às nações amigas. Da sua origem até o surgimento do Código Comercial brasileiro, disciplinavam as atividades comerciais no país as leis portuguesas e os Códigos Comerciais da Espanha e da França, já que entre as leis portuguesas existia uma lei (Lei da Boa Razão) prevendo que no caso de lacuna da lei portuguesa deveriam ser aplicadas para dirimir os conflitos de natureza comercial as leis das nações cristãs, iluminadas e polidas. Por essa razão, nessa primeira fase do direito comercial brasileiro a disciplina legal das atividades comerciais mostrava-se bastante confusa.

Em 1834, uma comissão de comerciantes apresentou ao Congresso Nacional um projeto de Código Comercial, que após uma tramitação de mais de 15 anos originou o primeiro código brasileiro, o Código Comercial (Lei n° 556, de 25 de junho de 1850), que foi baseado nos Códigos de Comércio de Portugal, da França e da Espanha. O Código Comercial brasileiro adota a teoria francesa dos atos de comércio, podendo-se, entretanto, identificar traços do período subjetivo na lei de 1850, em razão do art. 4° prever que somente os comerciantes matriculados em alguns dos Tribunais de Comércio do Império poderão gozar dos privilégios previstos no Código Comercial.

Cumpre ressaltar que embora o Código Comercial brasileiro seja baseado na teoria dos atos de comércio, em nenhum dos seus artigos ele apresenta a enumeração dos atos de comércio, como faz o Código Comercial francês de 1807 nos artigos 632 e 633. Essa ausência da enumeração dos atos de comércio no Código Comercial foi proposital, justificando-se pelos problemas que a enumeração causava na Europa, onde eram conhecidas grandes divergências doutrinárias e jurisprudenciais referentes à caracterização da natureza comercial ou civil de determinadas atividades econômicas em razão da enumeração legal dos atos de comércio.

Temendo que essas divergências e disputas judiciais se repetissem no país, o legislador brasileiro preferiu, após grandes discussões na fase de elaboração do Código Comercial, não inserir a enumeração dos atos de comércio na Lei n° 556, de 1850. Entretanto, não foi possível ao legislador brasileiro escusar-se de apresentar uma enumeração legal dos atos de comércio no país, que foi realizada no Regulamento n° 737 de 1850, especificamente nos artigos 19 e 20. O Regulamento n° 737 tratava do processo comercial e a enumeração dos atos de comércio baseou-se no Código de Comércio francês.

Até 1875, a enumeração dos atos de comércio constante no Regulamento n° 737 era utilizada para delimitar o conteúdo da matéria comercial para o fim jurisdicional e para qualificar a pessoa como comerciante no país. Em 1875 os Tribunais de Comércio foram extintos e com a unificação do processo deixou de ser necessário para o fim jurisdicional diferenciar a atividade comercial da atividade civil. Assim, sob o aspecto processual, a teoria dos atos de comércio perdeu a sua importância no Brasil, mas continuou a ser necessária para diferenciar o comerciante do não comerciante, já que a lei prevê um tratamento diferenciado para aquele que desenvolve uma atividade econômica de natureza comercial, sendo o principal exemplo dessa diferenciação a Lei de Falência (Dec.-Lei n° 7.661, de 21 de junho de 1945), pela qual somente podem se beneficiar da concordata e submeter-se à falência quem exerce atividade econômica de natureza comercial.

O Regulamento n° 737 de 1850 foi revogado em 1939 pelo Código de Processo Civil e desde então deixou de existir no país um diploma legal que apresente a enumeração dos atos de comércio, dificultando a definição da comercialidade das relações jurídicas no Brasil a ponto de não existir até o surgimento do novo Código Civil um critério seguro para se definir o conteúdo da matéria comercial. Essa dificuldade justifica-se por vários motivos. A teoria dos atos de comércio, por sua própria natureza, não permite a criação de um critério científico para se definir a natureza comercial de um ato, surgindo um grande problema quando determinado ato não se encontra enumerado na relação da lei.

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No Brasil, esse problema intensifica-se porque desde 1939 não existe nem mesmo na legislação vigente a enumeração dos atos de comércio. Se não bastasse, nas últimas décadas, várias leis brasileiras de natureza comercial passaram a apresentar fortes traços da teoria da empresa e a doutrina nacional passou a se dedicar ao estudo dessa teoria italiana, prestigiando-a em detrimento à teoria francesa, o que acabou refletindo em várias decisões dos Tribunais brasileiros.

Todo esse contexto fez com que a definição da comercialidade das relações jurídicas no país se transformasse em um grande problema. Nessa difícil tarefa em delimitar o conteúdo da matéria comercial utilizou-se como referência os atos de comércio enumerados no revogado Regulamento n° 737 de 1850, o disposto em lei como sendo matéria comercial (sociedades anônimas, empresas de construção civil) e a jurisprudência, já que várias decisões envolvendo complexos casos passaram a definir a natureza comercial de certas atividades econômicas.

Na delimitação do conteúdo da matéria comercial pode-se identificar em várias ocasiões a adoção da teoria da empresa para definir como comercial a natureza de determinada atividade econômica, evidenciando a influência e o prestígio da teoria italiana no direito brasileiro. Nesse sentido, destacam-se decisões considerando de natureza comercial clínicas de serviços médicos, salões de cabeleireiros, empresas de publicidade e também a atividade pecuária. Essas atividades, pela teoria dos atos de comércio estariam, em regra, afastadas do regime comercial e, consequentemente, não estariam submetidas à falência e não poderiam obter concordata.

As dificuldades encontradas na definição da comercialidade das relações jurídicas e a adoção da teoria da empresa para caracterizar determinadas atividades econômicas como comerciais caracterizam o período de transição do direito comercial brasileiro nos últimos 30 anos. Esse período transitório entre a teoria dos atos de comércio, presente no Código Comercial e na Lei de Falência, e a teoria da empresa, prestigiada pela doutrina e pela jurisprudência e presente em importantes leis comerciais (p. ex.: Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976 - Lei das Sociedades Anônimas; Lei n° 8.934, de 18 de novembro de 1994 - Lei de Registro Público de Empresas; Lei n° 8.884, de 20 de julho de 1994 - Lei de Defesa da Livre Concorrência; Lei n° 9.279, de 14 de maio de 1996 - Lei da Propriedade Industrial; Lei n° 9.841, de 5 de outubro de 1999 - Novo Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte), é finalmente superado com o surgimento do novo Código Civil brasileiro.


4. O direito de empresa no novo Código Civil brasileiro

O novo Código Civil brasileiro possui 2.046 artigos e divide-se, fundamentalmente, em Parte Geral e Parte Especial. A Parte Geral possui três Livros: I. Das Pessoas; II. Dos Bens; III. Dos Fatos Jurídicos. A Parte Especial contém cinco Livros: I. Do Direito das Obrigações; II. Do Direito de Empresa; III. Do Direito das Coisas; IV. Do Direito de Família; V. Do Direito das Sucessões. As disposições finais e transitórias estão previstas no Livro Complementar.

As normas fundamentais do direito comercial estão presentes no Livro II da Parte Especial do Código Civil de 2002, denominado "Do Direito de Empresa". Esse Livro II foi baseado no Código Civil italiano de 1942, famoso por ter realizado a unificação formal ou legislativa do Direito Privado na Itália, mas que se destaca realmente sob o aspecto jurídico por apresentar uma teoria nova para disciplinar as atividades econômicas, a teoria da empresa, que substitui com vantagens a imprecisa e ultrapassada teoria dos atos de comércio.

Em relação ao direito comercial a grande evolução proporcionada pelo novo Código Civil foi a introdução da teoria da empresa nas suas normas fundamentais e a consequente revogação da Parte Primeira do Código Comercial de 1850, permitindo a superação da teoria dos atos de comércio e a harmonização do tratamento legal da disciplina privada da atividade econômica no país. Para Márcio Antônio Inacarato, "por ironia a entranhados comercialistas, o conceito diferenciador do novo direito comercial nos virá do bojo de um Código Civil, nem por isto, pelo grande significado prático e científico que representa, devemos deixar de o exaltar". Com o novo Código Civil, o direito comercial afasta-se daquela equivocada imagem de uma disciplina retrógrada e envelhecida, associada ao vetusto Código Comercial de 1850 e espera-se, para a harmonização dessa nova fase do direito comercial brasileiro, entre os ajustes que se mostram necessários, a reforma da Lei de Falência (Dec.-Lei n° 7.661, de 1945), que ainda apresenta traços da teoria dos atos de comércio.

O Livro II da Parte Especial não trata de todos os institutos jurídicos comerciais em seus 229 artigos. Importantes temas comerciais não estão disciplinados no novo Código Civil. O Livro "Do Direito de Empresa" não disciplina a falência e a concordata, não trata dos títulos de crédito em espécie, remete para a lei especial a disciplina legal da sociedade anônima, não se refere aos bens industriais (marcas de produtos ou serviços, desenho industrial, invenção e modelo de utilidade), não disciplina a concorrência empresarial e não faz referência a importantes contratos empresariais.

O fato desses importantes institutos jurídicos não serem abordados pelo novo Código Civil, se por um lado são objeto de críticas da doutrina, por outro lado evidenciam a característica fragmentária do direito comercial, que dificulta a codificação dos seus principais institutos jurídicos e contribui para a existência de uma grande quantidade de leis especiais, mais adequadas ao dinamismo exigido para as normas comerciais. O direito comercial é um ramo do direito privado que adota o método indutivo, acompanhando o desenvolvimento das atividades econômicas, o que torna as suas normas extremamente dinâmicas. Esse fato caracteriza a fragmentariedade do direito comercial, afastando desse ramo jurídico a tendência da codificação, mais adequada ao direito civil, de normas estáticas e de caráter conservador em razão da utilização do método dedutivo, que valoriza as tradições de uma sociedade, mostrando-se pouco receptivo às novas tendências.

As normas dinâmicas do direito comercial adequam-se melhor em leis especiais, a tendência inovadora e a dinamicidade desse ramo jurídico de tendências profissionais devem estar disciplinadas, preferencialmente, fora da estrutura pesada de um Código. Em consonância com a característica fragmentária do direito comercial, Newton de Lucca destaca a tendência atual de descodificação do direito privado, ressaltando ser "cada vez maior o número de leis esparsas ou de microssistemas" (LUCCA, 2000, p. 53).

Paralelamente às críticas levantadas sobre a ausência de certos institutos jurídicos no novo Código Civil, lembra-se a necessidade premente da organização no país da disciplina legal dos títulos de crédito, tão almejada por Rubens Requião (REQUIÃO, 1998, p.343), principalmente no que se refere à letra de câmbio e à nota promissória, disciplinadas pela confusa conjugação do Dec. n° 2.044, de 1908 e pelo Dec. n° 57.663, de 1966. O Código Civil de 2002 refere-se aos títulos de crédito no Livro I da Parte Especial (Do Direito das Obrigações), entretanto, o Título VIII (Dos Títulos de Crédito) apresenta dispositivos que tratam de forma genérica os títulos de crédito, não os disciplinando em espécie.

Os dispositivos referentes aos títulos de crédito no novo Código Civil apresentam vários pontos de conflito com a legislação cambiária especial, prevendo, por exemplo, a vedação do aval parcial e a desvinculação, como regra, da responsabilidade do endossante pelo pagamento do título transferido. Os dispositivos referentes aos títulos de crédito presentes no novo Código possuem importância reduzida e tudo indica que terão eficácia bastante limitada, conforme se percebe pela previsão do art. 903: "salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código".

Nesse aspecto, questiona-se se a disciplina legal dos títulos de crédito constante no Código Civil de 2002 é mais importante do que a consolidação do direito cambiário brasileiro, mediante a criação de uma lei geral para os títulos de crédito. O novo Código Civil ao tratar dos títulos de crédito apresenta dispositivos conflitantes, deixando de harmonizar o tratamento legal da letra de câmbio e da nota promissória. Sob o aspecto do direito cambiário, o novo Código Civil nada acrescenta de importante, tanto que Fábio Ulhoa Coelho ressalta que as normas cambiárias presentes no Código Civil de 2002 são normas quase-supletivas, sendo aplicáveis somente quando há normas compatíveis na lei especial (COELHO, 2002, p.384).

Em relação ao conteúdo do Livro II da Parte Especial, são disciplinados no livro "Do Direito de Empresa": a caracterização do empresário; as sociedades empresárias; a sociedade simples (nova denominação para a sociedade civil); a sociedade em comum (sem arquivamento do ato constitutivo na Junta Comercial); sociedade cooperativa (caracterizada como sociedade simples, independentemente de seu objeto, conforme o parágrafo único do art. 982 do Código Civil de 2002); sociedades coligadas; liquidação da sociedade; transformação, incorporação, fusão e cisão das sociedades; sociedade dependente de autorização; sociedade nacional e sociedade estrangeira; estabelecimento empresarial; registro público de empresas; nome empresarial; prepostos; gerentes; contabilistas e escrituração.

Ao caracterizar o empresário no art. 966, o novo Código Civil introduz definitivamente no direito brasileiro a definição de empresário que já vinha se cristalizando no Brasil durante o período transitório. De acordo com referido dispositivo, empresário é aquele que exerce profissionalmente uma atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços. O parágrafo único do art. 966 exclui da definição de empresário quem exerce atividade intelectual, de natureza literária, artística ou científica, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

O novo Código Civil afasta do direito comercial a antiga figura do comerciante, que se caracterizava pela prática habitual de atos de comércio. Sob o enfoque da teoria da empresa o enigmático e impreciso conceito de ato de comércio é esquecido, surgindo a empresa (a atividade econômica) como o novo núcleo do direito comercial atual. A antiga figura do comerciante transforma-se no empresário, que passa a ser o principal elemento do direito comercial, já que é ele quem organiza o estabelecimento empresarial e exerce a atividade econômica. Em sentido jurídico, empresa corresponde à atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, surgindo da vontade do empresário, que exerce a atividade econômica a partir da organização dos bens que integram o estabelecimento.

Caracteriza-se como empresário segundo o art. 966 a pessoa física (empresário individual) ou a pessoa jurídica (sociedade empresária) que promove profissionalmente a produção ou circulação de bens ou serviços, excluindo-se dessa definição, segundo o parágrafo único do referido artigo, quem exerce atividade intelectual, de natureza literária, artística ou científica. Assim, a princípio, estão excluídos do regime comercial os profissionais liberais (dentista, médico e engenheiro, por exemplo), que podem ingressar no regime comercial se fizerem do exercício da profissão um elemento de empresa, ou seja, se inserirem a sua atividade numa organização empresarial, se constituírem uma sociedade empresária (COELHO, 2002, p.24).

Pela caracterização do empresário prevista no art. 966 identifica-se o regime geral estabelecido pela teoria da empresa para as atividades econômicas, do qual são excluídas apenas as atividades econômicas de menor importância. Em relação aos agricultores (empresários rurais), o novo Código Civil prevê no art. 971 ser facultativa a opção pelo regime comercial: "O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro".

O art. 970 do novo Código Civil prevê que "A lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes". Nota-se que referido dispositivo não prevê a dispensa da inscrição aos agricultores (conforme visto, a inscrição nesse caso é optativa para submetê-los ao regime comercial) e aos pequenos empresários, como previa o antigo texto do artigo correspondente do projeto, que sofreu emenda no Senado Federal.

O atual art. 970 do Código Civil de 2002 corresponde ao art. 973 do projeto, que foi objeto da Emenda n°. 68 no Senado Federal. O texto original da Câmara dos Deputados reformado pelo Senado previa: "São dispensados de inscrição e das restrições e deveres impostos aos empresários inscritos: I- O empresário rural, assim, considerado o que exerce atividade destinada à produção agrícola, silvícola, pecuária e outras conexas, como a que tenha por finalidade transformar ou alienar os respectivos produtos, quando pertinentes aos serviços rurais; II- o pequeno empresário, tal como definido em decreto, à vista dos seguintes elementos, considerados isoladamente ou em conjunto: a) natureza artesanal da atividade; b) predominância do trabalho próprio e de familiares; capital efetivamente empregado; renda bruta anual; condições peculiares á atividade, reveladoras da exiguidade da empresa exercida." (OLIVEIRA, 1998, p.166).

O pequeno empresário previsto no art. 970 não se refere ao microempresário e ao empresário de pequeno porte, já que esses são definidos no art. 2° da Lei n° 9.841, de 5 de outubro de 1999 (Novo Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte). Referido dispositivo também não prevê expressamente a dispensa da inscrição do pequeno empresário no Registro Público de Empresas Mercantis, embora exista entendimento diferente (COELHO, 2002, p.76), que não deve prevalecer diante do atual texto modificado pela emenda do Senado Federal.

O pequeno empresário referido no art. 970 aproxima-se do pequeno comerciante dispensado da escrituração pelo Dec.-Lei n° 486, de 3 de março de 1963, e definido pelo art. 1° do Dec. n° 64.567, de 22 de maio de 1965, como a pessoa natural inscrita no Registro Público de Empresas Mercantis que exercer em um só estabelecimento atividade artesanal ou outra atividade em que predomine o seu próprio trabalho ou de pessoas da família, auferindo receita bruta anual não superior a cem vezes o salário mínimo e cujo capital efetivamente investido no negócio não ultrapassar vinte vezes o salário mínimo. Percebe-se essa aproximação pelo dispensa da realização da escrituração e do levantamento anual do balanço patrimonial e do resultado econômico prevista para o pequeno empresário pelo §2°, art. 1.179, do novo Código Civil. Para Rubens Requião, o conceito de pequeno comerciante, fundado no aspecto subjetivo ou funcional da atividade e em seu resultado econômico, não foi superado pela conceituação de microempresa e empresa de pequeno porte, que se baseia fundamentalmente na receita bruta (REQUIÃO, 1998, p. 74).

O art. 4° da Lei n° 9.841, de 1999 prevê que o enquadramento do empresário como microempresário ou empresário de pequeno porte realiza-se por meio de comunicação à Junta Comercial para o fim de registro. O art. 32, II, d, da Lei n° 8.934, de 18 de novembro de 1994 (Lei de Registro de Empresas Mercantis) apresenta entre os atos compreendidos no Registro Público de Empresas Mercantis, o arquivamento das declarações de microempresa. Assim, parece difícil prevalecer o entendimento pelo qual o art. 970 do novo Código Civil estaria dispensando o microempresário e o empresário de pequeno porte da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis.

O novo Código Civil, no art. 967, prevê a obrigatoriedade da inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede antes de iniciar a atividade empresarial. O art. 967 refere-se ao arquivamento do ato constitutivo do empresário na Junta Comercial, disciplinado pela Lei n° 8.934, de 18 de novembro de 1994, que já apresentava traços da teoria da empresa ao ampliar o âmbito do registro (arquivamento) realizado na Junta Comercial em seu art. 2°: "Os atos das firmas mercantis individuais e das sociedades mercantis serão arquivados no Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, independentemente de seu objeto, salvo as exceções previstas em lei". Em relação às exceções previstas em lei, destaca-se a sociedade voltada a prestação de serviços de advocacia, que deve ter os seus atos constitutivos encaminhados à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), conforme determina o §1°, art. 15, da Lei n° 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia).

Ao prever a possibilidade de registro aos empresários individuais e às sociedades empresárias sem considerar a natureza da atividade desenvolvida (independentemente de seu objeto), a Lei n° 8.934, de 1994, demonstra claramente a adoção da teoria da empresa (regime geral para as atividades econômicas sem considerar o gênero da atividade, mas a sua importância) e a superação da teoria dos atos de comércio (divisão das atividades econômicas em razão do gênero da atividade). A adoção da teoria da empresa pela Lei n° 8.934, de 1994, foi ressaltada pelo relator do projeto que resultou a referida lei, deputado José Carlos Aleluia, que salientou: "a principal inovação do Projeto diz respeito a mudança de denominação do registro de empresas mercantis, fazendo prevalecer, portanto, a chamada teoria da empresa, em detrimento da ótica restrita de levar a registro apenas atos de comércio, cuja interpretação conceitual causa inúmeras controvérsias sobre a competência registral" (FOLENA DE OLIVEIRA, 1999, p.143).

As sociedades empresárias devem ter os seus atos constitutivos arquivados na Junta Comercial, ao passo que as sociedades que não se configurarem como empresárias, em razão de não prevalecer nessas sociedades a organização de capital e trabalho sobre a profissão intelectual de seus integrantes possuem os seus atos constitutivos arquivados no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, correspondendo às sociedades simples. As sociedades empresárias adquirem personalidade jurídica com o registro na Junta Comercial (art. 985, Código Civil 2002), enquanto as sociedades simples tornam-se pessoas jurídicas com o registro no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas (artigos 45 e 1.150, Código Civil 2002).

Na disciplina jurídica do novo Código Civil, existem seis espécies de sociedades empresárias: sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples, sociedade em conta de participação, sociedade limitada, sociedade em comandita por ações e sociedade anônima. A sociedade de capital e indústria prevista no Código Comercial de 1850 deixou de existir, não podendo mais os sócios constituírem sociedade dessa espécie a partir de janeiro de 2003.

Em relação a manutenção no novo Código das sociedades em nome coletivo, em comandita simples, em comandita por ações e em conta de participação, discute-se sobre a sua necessidade em razão da rara utilização dessas espécies de sociedades empresárias no país. Na constituição de uma sociedade empresária para a exploração de uma atividade econômica, os sócios preferem optar por aquelas em que a responsabilidade de todos os sócios, em regra, é limitada pelas obrigações contraídas pela sociedade empresária no desenvolvimento da atividade econômica. No Brasil, as sociedades empresárias mais utilizadas são a sociedade limitada e a sociedade anônima em razão da limitação da responsabilidade, em regra, de todos os seus sócios.

A partir da vigência do Código Civil de 2002, a sociedade limitada, anteriormente denominada sociedade por quotas de responsabilidade limitada, passa a ser disciplinada pelo Código Civil, aplicando-se os dispositivos previstos no Capítulo IV (Da Sociedade Limitada). Sendo omisso o Código Civil na disciplina da sociedade limitada, aplica-se supletivamente as normas da sociedade simples (art. 1.053, Código Civil 2002) ou da sociedade anônima, caso o contrato social assim dispor (parágrafo único, art. 1053, Código Civil 2002). Portanto, se o contrato social da limitada apresentar cláusula prevendo a disciplina supletiva dessa espécie societária pelas normas da sociedade anônima, aplica-se a Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das Sociedades Anônimas) nas omissões do Capítulo IV do Código Civil, do contrário, a lei prevê que nas omissões do referido capítulo devem ser aplicadas as normas das sociedades simples. Ressalta-se que o Código Civil é a lei aplicável na constituição e dissolução da sociedade limitada, ainda que o contrato social eleja a lei das sociedades anônimas para a regência supletiva.

Em relação à sociedade anônima, o Código Civil, no art. 1.089, remete para lei especial a sua disciplina jurídica. Assim, a sociedade anônima continua a ser regida pela Lei n° 6.404, de 1976, que recentemente passou por uma nova reforma (Lei n° 10.303, de 31 de outubro de 2001), não apresentando repercussão útil ao direito comercial os dois dispositivos referentes à sociedade anônima presentes no Código Civil de 2002.

O novo Código Civil disciplina especificamente o estabelecimento empresarial no Título III (Do estabelecimento), dedicando oito artigos que apresentam a sua definição, sua natureza como objeto de direito, os efeitos do contrato de compra e venda do estabelecimento (denominado contrato de trespasse), os requisitos para a eficácia da sua alienação, a questão da sucessão empresarial como regra e a proibição do restabelecimento do empresário alienante do estabelecimento nos 5 anos seguintes à transferência do mesmo, ressalvando a estipulação das partes em contrário no contrato de trespasse.

O estabelecimento empresarial, chamado antigamente de fundo de comércio e conhecido na Itália por azienda, corresponde ao conjunto de bens corpóreos e incorpóreos organizados pelo empresário para a exploração da atividade econômica. Juntamente com o empresário e a empresa, o estabelecimento empresarial corresponde a um dos elementos da empresarialidade destacados por Waldirio Bulgarelli na sua obra Tratado de Direito Empresarial (BULGARELLI, 1997, p.109).

No que se refere às inovações que deixaram de ser previstas no novo Código Civil em relação ao direito comercial, pode-se apontar a ausência da disciplina legal do comércio eletrônico realizado pela internet. Essa ausência pode ser justificada pela rápida evolução que o tema comporta, mostrando-se mais adequada a utilização de uma lei especial para tratar da matéria. Se a ausência da disciplina legal do comércio eletrônico é justificável no novo Código, o mesmo não se pode dizer em relação à limitação da responsabilidade do empresário individual.

O Código Civil de 2002 perdeu uma excelente oportunidade de introduzir no país a limitação da responsabilidade do empresário individual como forma de incentivo à exploração da atividade econômica de menor vulto mediante a limitação dos riscos do negócio. Essa ausência, criticada por uma parte da doutrina que valoriza a exploração de atividades econômicas de menor porte, é apontada por Newton de Lucca como um exemplo da distonia do Código com o entendimento da maioria da doutrina nacional (LUCCA, 2000, p.69). A limitação da responsabilidade do empresário individual poderia ter sido adotada pelo novo Código para acabar com a necessidade da criação de sociedades empresárias formadas com a finalidade exclusiva da obtenção da limitação da responsabilidade dos sócios no desenvolvimento da empresa.

Procurando a limitação dos eventuais prejuízos decorrentes da exploração da atividade econômica formam-se no país sociedades empresárias pro forma, em que uma pessoa decidida a explorar uma atividade econômica constitui uma sociedade limitada juntamente com um sócio engajado para não se submeter, de forma ilimitada, aos riscos inerentes da atividade empresarial. É comum encontrar no Brasil sociedades limitadas constituídas somente por marido e mulher com a finalidade exclusiva de obter a limitação da responsabilidade na exploração da atividade econômica (o Código Civil de 2002, no art. 977, faculta aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não estejam casados sob o regime de comunhão universal de bens ou no da separação obrigatória).

A limitação da responsabilidade do empresário individual existe, por exemplo, na França, Itália, Alemanha e Portugal (HENTZ, 2000, p.100). A Alemanha introduziu em seu sistema normativo a sociedade unipessoal em 1980, sendo seguida pela Itália. Em 1985 a França também aderiu a idéia da limitação da responsabilidade do empresário individual. Em 1986, foi criado em Portugal o Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada (EIRL), utilizando uma denominação mais adequada, sob o aspecto técnico, já que "sociedade unipessoal" destoa da boa técnica jurídica. No EIRL o empresário individual destaca uma parcela do seu patrimônio pessoal para o exercício da empresa. Essa parcela destacada, denominada de patrimônio afetado, constituíra o valor do capital inicial do EIRL e corresponderá ao limite da responsabilidade do empresário, ou seja, o quanto ele irá arriscar na exploração da atividade empresarial.

Tema de grande relevância para o direito comercial encontra-se previsto no art. 50 do novo Código Civil. Trata-se da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine), que pode ser definida como a teoria destinada ao aperfeiçoamento da pessoa jurídica, permitindo que o juiz ignore a personalidade jurídica da sociedade empresária nos casos concretos de fraude e de abuso de direito para atingir os bens pessoais do sócio que agiu de forma indevida.

A finalidade da teoria da desconsideração é possibilitar a coibição de fraude e de abusos, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica e sem questionar a regra da separação da personalidade e do patrimônio da sociedade empresária em relação aos de seus sócios. A teoria objetiva preservar a pessoa jurídica e a sua autonomia, sem deixar desamparados terceiros vítimas de fraude. A personalidade jurídica da sociedade é desconsiderada apenas para o caso concreto em que foi utilizada de forma indevida, permanecendo válida e eficaz para todos os demais atos não relacionados com o ilícito praticado. A aplicação da teoria não significa a nulidade ou a extinção da personalidade jurídica, mas apenas a sua suspensão episódica.

A antiga redação do art. 50 do projeto do Código Civil previa que "A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram a sua constituição, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que caberá ao juiz, a requerimento do lesado ou Ministério Público, decretar-lhe a dissolução. Parágrafo Único. Neste caso, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração ".

Conforme se observa, contrariando a finalidade originária da teoria, o art. 50 do projeto previa a dissolução da pessoa jurídica quando fosse utilizada para fraude ou abuso de direito. A distinção entre suspensão e extinção ou dissolução é fundamental, pois a grande vantagem da desconsideração em relação aos demais mecanismos de coibição de fraude previstos pelo Direito é a preservação da pessoa jurídica naquilo que não se relaciona com o ilícito praticado, preservando a sociedade empresária e os legítimos interesses envolvidos, como são os dos demais sócios, empregados e da própria comunidade.

Da forma como se encontrava inserida no art. 50 do projeto, a desconsideração não atendia aos objetivos pelos quais foi criada, razão pela qual sofreu emenda no Senado Federal. Atualmente, o art. 50 do novo Código Civil prevê: "Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, o juiz pode decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica."

A nova redação ao artigo 50 preserva a finalidade da teoria, não prevendo mais a dissolução da sociedade empresária. Na justificação da emenda realizada, o relator do projeto no Senado, Senador Josaphat Marinho, faz a importante distinção entre despersonalização e desconsideração, destacando que na desconsideração "subsiste o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, que é afastada, provisoriamente e tão só para o caso concreto" (TADDEI, 1998, p.31).

De acordo com a sua formulação original, a teoria da desconsideração somente deve ser aplicada quando se encontra especificamente caracterizada a fraude ou abuso de direito por meio da personalidade jurídica. O simples prejuízo de credores decorrente da separação de patrimônios entre sócios e sociedade empresária não se mostra, de acordo com a formulação original da teoria, suficiente para autorizar a aplicação da teoria.

Esses pressupostos de aplicação da desconsideração não são respeitados nas leis que a prevêem expressamente no Brasil (art. 28, Lei n° 8.078, de 1990 – Código de Defesa do Consumidor, art. 18, Lei n° 8.884, de 1994 – Lei de Defesa da Livre Concorrência, art. 4°. Lei n° 9.605, de 1998 – Nova Lei Ambiental). No novo Código Civil, procurou-se mediante o encaminhamento de emenda modificativa ao art. 50 (TADDEI, 1998, p.30), além da preservação da personalidade jurídica da sociedade empresária na aplicação da teoria, a previsão da fraude e do abuso de direito como pressupostos necessários para a aplicação da teoria, prevalecendo no texto alterado a previsão do abuso, do desvio de finalidade e da confusão patrimonial como elementos autorizadores para a aplicação da desconsideração.

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Sobre o autor
Marcelo Gazzi Taddei

Advogado na área do Direito Empresarial. Parecerista. Administrador judicial em processo de Recuperação Judicial. Professor de Direito Empresarial, Direito do Consumidor e Direito Civil I na UNIP de São José do Rio Preto (SP). Professor da Escola Superior de Advocacia - ESA de São José do Rio Preto (SP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TADDEI, Marcelo Gazzi. O Direito Comercial e o novo Código Civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3004. Acesso em: 29 mar. 2024.

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