5. Repercussão geral e julgamento por amostragem do mérito de recursos extraordinários
Há ainda uma segunda situação na qual o recurso extraordinário poderá ser inadmitido por ausência de repercussão geral sem deliberação direta do pleno do STF. O art. 543-B, do CPC, [12] estabelece que, havendo “multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia”, a análise da repercussão geral será efetuada por amostragem, a exemplo do que já ocorria com os recursos do Juizado Especial Federal (BRASIL, 1973, p. 1). O tribunal local seleciona um ou mais recursos representativos da questão jurídica e os remete ao STF, sobrestando os demais na origem até o julgamento definitivo pelo Supremo. Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados consideram-se inadmitidos por expressa disposição legal, em interessante eficácia extraprocessual da decisão relativa à repercussão geral.
Caso entenda o STF, contudo, pela satisfação do requisito de admissibilidade, o resultado do juízo de mérito será publicado para apreciação dos tribunais de segunda instância, os quais, retomando o andamento dos feitos sobrestados, poderão declarar prejudicados os recursos extraordinários (caso de a decisão do STF ser consentânea com o acórdão recorrido) ou retratar-se (hipótese de o decidido no julgamento do RE contrariar a decisão do tribunal local), já que essa última situação, ante a vinculação horizontal do precedente sobre a repercussão geral, apontaria para o necessário provimento do extraordinário caso viessem os autos a subir para a apreciação do Supremo (BRASIL, 1973, p. 1).
Assim, o julgamento pelo pleno do STF somente ocorrerá, diretamente, para os feitos representativos da controvérsia, sendo que os demais processos que versem sobre questão idêntica permanecerão sobrestados na origem, aguardando, no caso de concordância do acórdão local com a orientação proclamada pelo Supremo, a aplicação da decisão do STF pelo tribunal de segunda instância, o qual declarará prejudicado o recurso e, em caso de divergência entre o entendimento do tribunal local e o precedente de mérito da Corte Maior, uma forma especial de efeito regressivo do RE, consistente na possibilidade de retratação do acórdão já publicado pelo membros do tribunal a quo (DIDIER JÚNIOR; CUNHA, 2009, p. 340).
Nessas circunstâncias, como se vê, para os processos não selecionados como representativos da controvérsia, não haverá manifestação direta do STF sobre a existência da repercussão geral. Quando o Supremo fixar que determinada hipótese não é caso de repercussão geral, a insatisfação do requisito, para os feitos que ficaram sobrestados, será declarada pelo relator do tribunal recorrido (art. 543-A, § 3º, do CPC), [13] o qual aplicará o precedente do STF, inadmitindo os extraordinários na origem (BRASIL, 1973, p. 1). Do mesmo modo, quando decidir o STF que uma específica questão jurídica comporta repercussão geral, a admissibilidade do recurso será declarada, após o julgamento de mérito no Supremo e findo o sobrestamento na origem, pelo relator do feito no tribunal a quo, que aplicará o precedente de mérito. Note-se que aqui não há, absolutamente, qualquer usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal, vez que o relator do tribunal de segunda instância, em verdade, apenas reproduz os termos do acórdão emanado pelo Supremo, limitando-se sua participação à verificação da adequação do feito sobrestado à hipótese de repercussão geral suscitada pela corte.
6. Ausência de manifestação do Supremo sobre a “identidade” entre os feitos sobrestado e representativo da controvérsia: negativa de prestação jurisdicional e conveniência de intervenção legislativa
Neste ponto, surge o problema acerca do errôneo sobrestamento do feito pelo tribunal a quo com fundamento na sistemática do julgamento por amostragem da repercussão geral. O art. 543-B, caput, do CPC, estabelece que a seleção dos processos indicativos da querela jurídica e a consequente suspensão dos demais somente se legitima quando estes últimos versarem sobre “idêntica controvérsia” (BRASIL, 1973, p. 1). Se a questão discutida em determinada demanda, em verdade, é outra, cumpre à parte, sob pena de preclusão, no momento da equivocada decisão de sobrestamento, arguir o necessário “distinguishing antecipado” (WOLKART, 2013, p. 47), assim denominado porque prévio à formação do precedente no Supremo Tribunal Federal.
A doutrina majoritária sustenta que o recurso cabível nessa hipótese é o agravo de instrumento (DANTAS, 2008, p. 320; MEDINA, 2009, p. 106; ARRUDA ALVIM WAMBIER, 2001, p. 304 apud WOLKART, 2013, p. 46). Tal perspectiva encontra óbice no fato de que, ao momento da prolação da decisão de sobrestamento, ainda não houve o juízo de admissibilidade do RE na origem, de sorte que não se aplica o disposto no art. 544, do CPC. [14] Com efeito, efetuado o sobrestamento previsto no art. 543-B, do CPC, a decisão acerca do recebimento do recurso extraordinário pelo tribunal de segunda instância somente ocorrerá quando do julgamento da questão relativa à repercussão geral no STF, e, sendo este positivo, quando da apreciação do mérito do RE representativo da controvérsia pela Corte Maior. Somente então os tribunais locais poderão: a) declarar prejudicado o recurso extraordinário, o que consubstancia juízo de admissibilidade negativo, seja pela ausência de repercussão geral, seja pela satisfação do requisito associada à concordância, no mérito, do julgamento do STF com o acórdão local recorrido, restando o RE prejudicado por expressa disposição legal; ou b) retratar-se, hipótese em que, satisfeitos os demais requisitos formais, haverá juízo de admissibilidade positivo para o recurso extraordinário, com posterior adequação do posicionamento local à orientação do Supremo.
Logo, não é o agravo de instrumento – nos termos do art. 544, do CPC, agravo nos próprios autos – o meio processual adequado à impugnação do sobrestamento equivocado do feito para fins de análise por amostragem da repercussão geral. Aliás, ainda que formalmente o fosse, como assevera Erik Wolkart (2013, p. 46), tal medida iria de encontro aos fundamentos e objetivos da sistemática da repercussão geral, que busca, precisamente, desafogar a Corte Suprema. Caso se admitisse o agravo para o STF na situação em comento, a pretendida objetivação das decisões do Supremo pela seleção de feitos representativos restaria comprometida pela subida paralela de processos particulares, arguindo situações de distinguishing, talvez de forma temerária.
Adotando essa perspectiva, decidiu o Supremo, nos autos da Reclamação n.º 7.569, [15] julgada em 19 de novembro de 2009, que não cabe reclamação constitucional ou agravo para o STF da decisão do Presidente ou Vice-Presidente de tribunal local que suspende Processo na origem com fundamento na pendência do julgamento de RE, para fins de aplicação da sistemática de repercussão geral (LIMA, 2013, p. 287). Na oportunidade, constou da ementa lavrada pela relatora, Min. Ellen Gracie, que, “se não houve juízo de admissibilidade do recurso extraordinário, não é cabível a interposição do agravo de instrumento previsto no art. 544, do Código de Processo Civil”. Declarou, ainda, que, consoante precedentes assentados pela corte, “a jurisdição do Supremo Tribunal Federal somente se inicia com a manutenção, pelo Tribunal de origem, de decisão contrária ao entendimento firmado no julgamento da repercussão geral, nos termos do § 4º do art. 543-B, do CPC” e que, “fora dessa específica hipótese, não há previsão legal de cabimento de recurso ou outro remédio processual para o Supremo Tribunal Federal”. Por conseguinte, a orientação firmada pelo STF no julgado em comento é que a parte que considerar equivocada a aplicação da sistemática de repercussão geral a um feito específico interponha “agravo interno perante o tribunal local” (BRASIL, 2009, p. 1).
Não obstante o alinhamento da decisão com as finalidades do instituto da repercussão geral, notadamente, a blindagem do Supremo em relação a artifícios aptos a sobrecarregarem a corte, frustrando as estratégias de liberação do colegiado para o cumprimento de sua função de tribunal constitucional, afigura-se perigoso, ilógico e contraditório à própria Teoria Geral do Processo que um recurso dirigido ao Supremo Tribunal Federal, por força de uma estratégia de contenção de demandas repetitivas – algo que, em verdade, é um problema que diz respeito à administração do Poder Judiciário, e não ao jurisdicionado – sequer tenha a possibilidade de chegar à referida corte para apreciação dos requisitos de admissibilidade, e isso, nem mesmo, ante uma alegação de equivocada aplicação de precedente por outro órgão jurisdicional (distinguishing). De fato, o que ocorre no sobrestamento indevido do processo não é outra coisa senão a aplicação antecipada de um precedente do STF em vias de formação, vez que o Presidente ou Vice-Presidente do tribunal local considera que os feitos sobrestado e representativo da controvérsia, este último outrora encaminhado ao Supremo Tribunal, versam sobre “idêntica controvérsia”. A ausência dessa “identidade” entre as questões jurídicas discutidas implicará, quando do julgamento da repercussão geral ou do mérito do RE pelo STF, inevitável aplicação incorreta de precedente da corte. O que o entendimento prevalecente no Supremo estabelece é que, não obstante esse error in judicando, não há instrumento apto a submeter a questão ao crivo do STF.
Ora, não se pode admitir que uma corte constitucional tenha sua jurisdição privada por decisão definitiva de tribunal de hierarquia inferior. Em última instância, é o STF – ao menos na pessoa do relator – quem deve se pronunciar acerca de sua competência para a apreciação de determinada questão. Chega a ser assustador verificar, pois, que foi o próprio Supremo – em regra, tão cioso de suas competências constitucionais – quem declarou que “não há previsão legal de cabimento de recurso ou outro remédio processual para o Supremo Tribunal Federal” (BRASIL, 2009, p. 1). O desespero em não frustrar uma sistemática de julgamento unificado de demandas repetitivas, no afã de evitar a atração de certo volume de processos à corte, fez o Supremo atropelar a lógica e o bom senso. Registre-se, nesse sentido, que, nos autos do referido reclamo constitucional, consta parecer do Procurador-Geral da República “pelo provimento da reclamação, para adoção de medida adequada à preservação de competência do STF”, o que indica a discutibilidade da perspectiva que prevaleceu na corte.
De fato, não há previsão legal de recurso (stricto sensu) para o STF decidir a questão da má vinculação de processo sobrestado pelo tribunal a quo a feito representativo da controvérsia em sede de repercussão geral; tal omissão do legislador, contudo, não se pode sobrepor à clara disposição constitucional, segundo a qual compete ao Supremo julgar o recurso extraordinário (art. 102, III, da CF/88). [16] Até que ponto não se pode afirmar que está havendo negativa de prestação jurisdicional pelo STF, se, para um RE individual interposto, não há sequer a possibilidade de manifestação da corte sobre a admissibilidade do recurso, ainda que após sucessivas barreiras legais? Não obstante a inexistência de previsão legal quanto a uma espécie recursal apta a submeter ao Supremo a questão, não se pode dizer que não há “outro remédio processual” capaz de dirimir a problemática.
Tal “remédio processual” existe e não é outro senão a reclamação constitucional, instrumento previsto no art. 102, I, “l”, da CF/88, [17] para, assegurar a competência constitucional e a autoridade das decisões do STF. O fundamento para a resolução da questão via reclamação é a interpretação do art. 102, § 3º, da CF/88, [18] no sentido de que o juízo de admissibilidade do recurso individual com fundamento no requisito da repercussão geral, em última instância, cabe ao Supremo Tribunal Federal. Partindo dessa premissa, se da sistemática prevista no art. 543-B, § 1º, do CPC [19] resultar divergência entre o recorrente e o tribunal a quo acerca do processo que efetivamente representa a controvérsia no Supremo Tribunal Federal, tal questão deve ser dirimida pelo próprio STF (juízo ad quem), pois, do contrário, a admissibilidade do extraordinário estaria sendo decidida, em caráter definitivo, pelo tribunal recorrido, o qual estabelece a conexão entre um feito específico, no qual foi interposto o RE, e outro, em trâmite no Supremo, alegadamente representativo da controvérsia.
Fredie Didier e Leonardo Carneiro da Cunha também consideram cabível a reclamação constitucional para solver a problemática. No seu entendimento, o fundamento da utilização do instituto é o retardo indevido no encaminhamento dos autos ao Supremo Tribunal Federal, o que, em última análise, representa restrição ou usurpação de competência. Na medida em que o feito sobrestado não guarda relação com o representativo da controvérsia, há uma demora equivocada no encaminhamento dos autos ao Supremo para o julgamento regular do RE, que, por não se enquadrar na questão repetitiva, não deveria ter sido submetido ao procedimento de apreciação por amostragem. Em palavras dos autores:
Selecionado um ou mais casos para análise pelo STF, os demais, como visto, ficam sobrestados na origem, aguardando a solução que a Corte Suprema der quanto aos recursos para lá encaminhados. E se o Presidente ou Vice-Presidente do tribunal de origem determinar o sobrestamento de recurso que não se identifique com aquele(s) que foi(ram) selecionado(s) e encaminhado(s) ao STF? Qual medida a ser adotada? Nesse caso, o Presidente ou Vice-Presidente do tribunal local está deixando de determinar o seguimento do recurso ou omitindo-se na sua remessa ao tribunal superior, o que acarreta, em última análise, uma usurpação de competência do STF, a permitir o ajuizamento de uma reclamação constitucional. (...) O Presidente ou Vice-Presidente do tribunal de origem, na hipótese ora aventada, determina o sobrestamento de um recurso que não tem qualquer semelhança com o que está no STF para ser examinada a repercussão geral. Nesse caso, ao determinar o sobrestamento, o Presidente do Tribunal de origem restou por impedir o encaminhamento do caso para o STF. Cabível, então, a reclamação constitucional. Em homenagem ao princípio da instrumentalidade das formas (que, em tema de recursos, costuma ser aplicado sob a rubrica do princípio da fungibilidade), é razoável admitir agravo de instrumento (CPC, art. 544) ou, até mesmo, a medida cautelar, da mesma forma que sucede com a retenção ordenada indevidamente (CPC, art. 542, § 3º). Tudo isso também se aplica, mutatis mutandis, no caso de “escolha” dos recursos especiais em causas repetitivas (CPC, art. 543-C, § 1º). (DIDIER JÚNIOR; CUNHA, 2009, p. 339)
O fato, porém, é que o STF não reconhece essa tese. Rejeita a reclamação constitucional como instrumento hábil a corrigir o errôneo sobrestamento do processo por vinculação inadequada a feito representativo da controvérsia. E, em surpreendente interpretação restritiva de sua competência constitucional, declara que não há previsão legal de instrumento hábil a submeter-lhe a questão (BRASIL, 2009, p. 1). Nessas circunstâncias, necessária a intervenção do legislador, corrigindo o equívoco para conferir um tratamento teoricamente adequado à situação. O ideal seria que tivesse sido previsto espécie recursal própria para a solução do problema. A bem da celeridade, e considerando a singeleza da impugnação, nada impediria que fosse autorizado ao relator, no STF, em decisão irrecorrível, resolver a divergência, com o que se preservaria a competência da Suprema Corte, ainda que na forma delegada ao juízo monocrático do relator. Objetivando evitar a ocupação do plenário com a questão, a lei poderia vedar o agravo interno a órgão colegiado, ainda que fracionário, do Supremo Tribunal e, como medida de contenção, de sorte a evitar que as partes interpusessem recursos temerários a respeito, poderia ser prevista a imposição de multa, de valor considerável e de cobrança obrigatória pelo representante judicial da União, no caso de improcedência do recurso. Nesse sentido, foi elaborada a proposta legislativa constante do Apêndice B deste trabalho, intitulada “Proposta de regulamentação do Incidente de diferenciação no procedimento de julgamento de demandas repetitivas”.