Recentemente fora noticiado um fato inusitado para a comunidade jurídica: dois bombeiros militares da PB teriam sido condenados criminalmente a uma pena de 1.533 anos e 9 meses de prisão, cada um. Em pesquisas preliminares, o Ministério Público paraibano concluiu se tratar da maior pena já aplicada em solo brasileiro [1].
Tal fato, que inicialmente causa curiosidade e até estranheza, pode ter uma explicação técnica, embora essa mesma nem sempre convença e se mostre adequada dentro de uma realidade sistemática e constitucional.
Inicialmente é preciso salientar que se trata de uma condenação criminal militar, ou seja, realizada pela Justiça Castrense, cuja função é processar e julgar os crimes militares, conferida a um Conselho Especial de Justiça, formado por quatro juízes militares (oficiais da polícia) e um juiz de direito (magistrado estadual de carreira – auditor do processo) a quem cabe a relatoria do caso.
Os bombeiros foram condenados por fatos ocorridos em 2003, quando desviaram recursos do Fundo Especial do Corpo de Bombeiros da PB, gerando um prejuízo de aproximadamente R$ 656.000,00 aos cofres públicos do Estado. Os fatos foram imputados aos dois acusados que foram enquadrados nos crimes militares de uso de documento falso e peculato, conforme publicado pela imprensa. Outros delitos denunciados pelo MP foram considerados improcedentes.
A pena pelo primeiro crime reconhecido na sentença foi aplicada, a princípio, em quatro anos e um mês de reclusão. Contudo, este valor foi multiplicado 171 vezes (já que foram apurados 171 fatos repetidos para o mesmo tipo penal). Com isso, pegaram 698 anos e 3 meses de reclusão apenas para este primeiro fato típico. Somando com a pena do outro crime, falsidade documental, foi alcançado o patamar noticiado de 1.533 e 9 meses de reclusão para cada réu.
Pelo que foi divulgado nas notícias jornalísticas, as circunstâncias do caso indicavam se tratar de um “crime continuado”. Era o mesmo tipo penal, modus operandi, condições de tempo, espaço, unidade de desígnios (para quem defende a teoria objetiva-subjetiva), enfim, tudo caminhava para a mesma direção, aplicando o instituto do crime continuado ao caso concreto. Isso se o Direito Penal Militar, em sua codificação já ultrapassada, estivesse em consonância com o ordenamento jurídico atual.
Explicando melhor: a multiplicação da pena dos réus em 171 vezes, verbi gratia, como foi o caso da dosimetria feita para o primeiro crime, ocorreu porque os acusados teriam cometido o crime de forma reiterada, ou seja, com continuidade de atos seqüenciados, somando, no total, cento e setenta e um fatos para a primeira incidência típica. Em outras palavras, os réus provavelmente preferiram “subtrair aos poucos”, em dias distintos, não chamando tanta atenção, ao invés de retirar os R$ 656.000,00 de uma só vez.
Ocorre que há várias décadas o sistema criminal brasileiro já não convive com essa realidade. O instituto jurídico denominado Crime Continuado foi criado justamente para evitar esses exageros, fazendo com que fatos sequenciados, da mesma espécie, recebam condenação proporcional e apta a possibilitar a ressocialização e a dignidade humana, pilares que fundamentam a aplicação da pena.
Fazendo uma rápida incursão histórica e ideológica sobre o crime continuado, segundo ensina Maximiliano Roberto Ernesto Führer e Maximilianus Cláudio Américo Fürher, em seu Código Penal Comentado [2]:
“Não se conhece o momento exato em que surgiu o conceito de crime continuado, mas é certo que ele é fruto da moderação dos costumes. Atribui-se esta construção aos glosadores, especialmente Baldo de Ubaldis (por volta do ano 1400), embora haja notícia do tempo de Ulpiano (por volta do ano 200) de reconhecimento de crime único em caso de múltiplas injúrias contra a mesma pessoa. É certo que o objetivo da ficção jurídica do crime continuado surgiu para aplacar algumas penas consideradas muito severas, em especial aquela reservada para o terceiro furto, que, mesmo na modalidade simples, implicava pena de morte.” (grifos acrescentados).
Conforme aponta a doutrina, a origem do crime continuado ocorreu, provavelmente, no século XIV, por obra de Baldo de Ubaldis. Entretanto, a tese só conseguiu ganhar maior relevo com o trabalho de Bártolo de Sassoferrato, na Itália. Já no Brasil, existem registros da aplicação de um esboço desse instituto no Código de 1890 (Império) e, posteriormente, na Consolidação de Leis Piragibe [3]. Após isso, todas as legislações nacionais posteriores mantiveram e aprimoraram esse instituto, considerado fundamental na evolução do Direito Penal moderno.
Desta feita, já no seu embrião, o crime continuado nasce com o nítido propósito de racionalizar as penas e diminuir a mão pesada do poder punitivo estatal que, em alguns casos extremos e excepcionais, como esse ocorrido com os bombeiros militares, podem beirar a irracionalidade e a crueldade.
No atual Código Penal Brasileiro, desde a sua primeira edição em 1940 (Decreto Lei 2.848/1940), já foi previsto o crime continuado para aplicação em casos de vários fatos idênticos cometidos em seqüência e com demais condições semelhantes presentes, conforme dispõe o artigo 71 do CP:
Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
A aplicação do crime continuado requer o preenchimento de uma série de condicionantes que são demonstradoras de uma menor culpabilidade e até mesmo de periculosidade do réu. Tais fatores, a nosso ver, justificam a utilização dessa histórica ficção jurídica que não desconsidera os fatos subsequentes, mas usa a pena do crime mais grave, se diversas, e a exaspera em 1/6 a 2/3 pelo cometimento dos atos posteriores.
Importante pensar que cometer o mesmo delito uma única vez ou realizá-lo fracionadamente, alcançando os mesmos resultados, não parece, faticamente, ter grande diferença ontológica que justifique penas tão diferenciadas. Isto porque, no mesmo exemplo em análise, caso os bombeiros da PB tivessem se apropriado indevidamente de R$ 656.000,00 em um só dia (um só fato), receberiam uma pena de, no máximo, 15 anos. Como resolveram cometer o mesmo crime de forma continuada, dias subsequentes, foram condenados a mais de 1.500 anos de reclusão.
Diante desse quadro, pergunta-se, há proporcionalidade nessa medida? Esse é o questionamento acadêmico que se pretende abordar.
A propósito, cabe alertar que penas desproporcionais não servem a ninguém, sequer ao Estado em seu campo acusador (MP), pois com elas cria-se a sensação de impunidade na comunidade, que não vê aquilo que foi noticiado como conquista pela imprensa, sendo confirmado na prática. A reforma da decisão pelos tribunais superiores, ou até mesmo a limitação de 30 anos para cumprimento da pena (obrigatório também no sistema militar), acabam sendo confundidos pela população como ineficiência do Poder Judiciário, quando na verdade apenas se aplicou a instrumentalidade procedimental exigida, que deveria ter sido observada desde o julgamento a quo.
Pelo objetivo desse breve texto, não se enfrentará a discussão a respeito da teoria adotada pelo nosso Código Penal Brasileiro para aplicação do crime continuado, embora considere mais coerente a utilização da teoria mista (envolvendo critérios objetivos e subjetivos, como a unidade de desígnios, que diferencia o crime continuado da habitualidade criminosa, não obstante esse tema ainda não esteja pacífico no Brasil).
Portanto, seja qual for a teoria utilizada, nota-se que não se trata de uma aplicação aleatória para beneficiar o réu por complacência do juiz, mas sim de um verdadeiro direito subjetivo do cidadão, quando preenchidos todos os requisitos legais fixados. Os réus, portanto, só teriam direito a esse benefício se ficasse provada a continuidade delitiva com todos os seus requisitos verificados.
Em resumo, o crime continuado procura diminuir o rigor da aplicação do concurso material, fazendo com que as penas não sejam somadas, mas sim aplicada uma delas (a mais grave) com uma causa de aumento pelo cometimento das subsequentes, através da exasperação. Por isso, o penalista argentino ZAFFARONI [4] utiliza a expressão “concurso material atenuado”, pois é isso que de fato ele representa. Dessa forma, atinge-se, ou pelo menos se aproxima, da razoabilidade, já que os atos posteriores não serão desconsiderados e tornados impunes, mas apenas não receberão o mesmo tratamento de um novo crime, afinal isso eles não são. Os atos posteriores continuados são muito mais um aproveitamento do primeiro crime que deu certo, do que novos crimes na sua acepção psicológica e finalística (dolo).
Entretanto, como adiantado, o Código Penal Militar, elaborado em 1969, não prevê a mesma sistemática. Ao tratar sobre o crime continuado, o diploma repressivo especial traz um tratamento desatualizado, prevendo a possibilidade de cúmulo (somatório) de todas as penas previstas, conforme seus artigos 79 e 80 dispõem. Assim, para o Código Penal Militar, usado para os crimes dessa natureza, a continuidade delitiva é tratada da mesma forma que o concurso material comum, somando as penas de todas as condutas sequenciadas.
Nesses dispositivos, em nosso sentir, nasce a contrariedade ao ordenamento jurídico atual e constitucionalizado, os quais deram margem à interpretação literal, possibilitando a condenação recorde no Brasil de 1.533 anos de prisão. Em uma visão mais contemporânea, baseado na unidade sistemática e, sobretudo, humanística, torna-se inconcebível este tratamento, por afronta direta à própria Constituição Federal.
Evidencia-se, com isso, que a atual Constituição Cidadã de 1988 não recepcionou estes dispositivos do Código Penal Militar por arranhar de forma direta e imediata normas constitucionais insuperáveis e irradiantes, devendo ser reconhecida essa contrariedade e reformulada a condenação dos militares, dentro de técnicas contemporâneas de dosimetria. A analogia, assim, seria buscada no Código Penal comum (art. 71), com as regras que disciplinam o crime continuado de forma mais adequada, caso os requisitos previstos nesse artigo sejam todos demonstrados no processo sub judice.
Registre-se, por oportuno, que em momento algum se pretende defender a impunidade ou a desconsideração de que esse caso em concreto demanda uma condenação rígida, até por se tratar de militares, servidores públicos que devem evitar crimes e não cometê-los. Contudo, em nome deste objetivo legítimo o operador do direito não pode sepultar princípios e até postulados que sustentam e dão coerência ao sistema, existindo outros mecanismos legais que atingem o mesmo fim. Traduzindo para este ambiente, a virtude deve estar na proporcionalidade das penas, postulado jurídico hermenêutico [5] (cf. ÁVILA) fortificante de todo o sistema penal brasileiro, calcado em ideais da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito e da necessidade de ressocialização das penas (princípio da humanidade – art. 5º, XLVII e XLIX, da CRFB/1988).
O princípio da humanidade, diante da sua envergadura, exige uma compreensão onipresente, atuando desde a fase das investigações até o momento de aplicação e execução das penas, bem como em todas as áreas sancionatórias, sejam crimes militares ou comuns. Esquecê-lo pode conduzir o intérprete a equívocos muitas vezes irreparáveis, conforme a história já nos ensinou.
Sobre o tema, segundo as clássicas lições do sempre lembrado BECCARIA [6]:
“Se se estabelece um mesmo castigo, a pena de morte por exemplo, para quem mata um faisão e para quem mata um homem ou falsifica um escrito importante, em breve não se fará mais nenhuma diferença entre esses delitos; destruir-se-ão no coração do homem os sentimentos morais, obra de muitos séculos, cimentada por ondas de sangue, estabelecida com lentidão através de mil obstáculos, edifício que só se pode elevar com o socorro dos mais sublimes motivos e o aparato das mais solenes formalidades.”
O fundamental, desta feita, é a manutenção de um sistema coeso e forte, não enxergando as Penas tão somente em sua quantidade, mas também em sua efetividade. Penas altas não significam necessariamente um castigo maior, e podem, numa análise comparativa com outros fatos criminosos mais graves, passar uma ideia de injustiça e contradição, conforme orientação do jus filósofo italiano supracitado. Prefere-se, portanto, penas justas e rígidas, mas factíveis e realistas, em nome de uma prevenção genérica de exemplo social da pena como coação simbólica aos demais cidadãos.
Não respeitar tais valores, mesmo que o texto frio de uma lei específica assim permita e até deseje, como parece ter feito o CPM, é o mesmo que regredir e aceitar que os ramos da Ciência Jurídica são isolados e formam um todo assistemático, pois condenações como estas, repita-se, desproporcionais, acabam se afastando dos ideais normativos referidos, e reforçando na sociedade uma visão de Justiça ineficaz, que condena, mas não executa na mesma rigidez, ou que trata situações semelhantes - crimes continuados no âmbito penal comum e penal militar - de forma tão distintas.
Em pesquisas jurisprudenciais constata-se que o tema ainda é controverso nos Tribunais superiores, havendo posicionamento favorável à aplicação da regra do crime continuado do Código Penal comum, aos crimes militares, conforme decidiu reiteradas vezes o STM – Superior Tribunal Militar, beneficiando o réu, e, por outro lado, existe negativa da aplicação analógica por parte da 1ª turma do STF, em julgado ocorrido em 2007, que defendeu o uso do princípio da especialidade a favor do Código Castrense.
Tribunais estaduais militares também já tiveram a oportunidade de se debruçar sobre o instituto e aplicaram a regra do crime continuado do Código Penal comum aos processos de militares, fundamentando a decisão justamente na excessiva rigorosidade do previsto no CPM, que gerava tratamento diferenciado, ferindo a isonomia e fugindo da proporcionalidade. Nesse sentido estão os Tribunais de MG (Apelação Criminal n. 2.332 - Proc. n. 17.381/3ª AJME) e de SP (Apelação Criminal n. 5.240/03 - Feito n. 31.856/02, 4ª Auditoria).
Desta forma, acreditamos que o STF, principal intérprete da Constituição, porém não o único, ainda não tem um posicionamento consolidado a respeito do tema, pois só analisou esse conflito uma única vez, e através de habeas corpus em uma de suas turmas, em caso concreto que a diferença de tratamento não se mostrava tão agressiva e desumana (HC 86854, Relator: Min. Carlos Britto, Primeira Turma, DJ 02-03-2007), não cabendo ainda afirmar que há “jurisprudência do STF”, mas apenas precedente sobre parte da matéria.
Aguarda-se, diante da grande repercussão nacional deste caso, com relevante conflito de teses jurídicas sobre o tema, e da gravidade da pena imposta nesse julgado, que haja uma análise mais ostensiva das instâncias superiores e da doutrina abalizada que, certamente, deverão ser provocadas para discutir esse tema com mais profundidade, contribuindo no reforço de um processo criminal com reais inspirações constitucionais.
*obs: Cabe registrar que esse texto aborda um aspecto meramente teórico, discutindo pontos de vista acadêmicos e supondo, em tese, que o caso concreto reúne todos os critérios para aplicação do crime continuado, nos moldes do Código Penal Brasileiro, não tendo o condão de criticar a decisão propriamente dita da respeitável Justiça Militar da PB, não entrando no mérito dos pormenores e provas constatados ao longo da marcha processual.
Referências:
[1] Notícia publicada no site http://www.conjur.com.br/2014-fev-05/oficiais-bombeiros-sao-condenados-1533-anos-prisao-paraiba. Acesso em 06/02/2014
[2] FÜHRER, Maximiliano R. E.e FÜHRER, Maximilianus C. A., Código Penal Comentado, 3ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
[3] HIRECHE, Gamil Föppel El. Teoria Geral do Concurso de Crimes. Disponível em: http://www.blogdolfg.com.br. 16 julho. 2007.
[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte gera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 626
[5] ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. revista. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
[6] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000.