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A morosidade da Justiça e a defunção dos direitos

01/08/2002 às 00:00
Leia nesta página:

" O sistema processual é tão burocrático que não se nota mais a presença de seres humanos nas ações"

(Boaventura de Souza Santos)

1 Já se assinala de antemão que este singelo escrito não se anima e nem se destina a analisar aspectos teóricos, principiológicos ou intrínsecos da relação jurídica processual que, em arrematada quimera, foi concebida, pelo menos no campo da mais sincera doutrina, para servir como instrumento apto a possibilitar a prestação útil, eficaz e célere do provimento jurisdicional.

Não. Aqui se tentará dar prevalência a aspecto quase sempre esquecido por aqueles que em circunlóquios, facúndias e convescotes sobre o tema da sempterna lentidão da máquina judiciária, priorizam o exame de mudanças no processo, analisando-o em si mesmo, sem nunca observar, como assinalou Hannah Arendt [1] questões aparentemente mais importantes como, v.g., a faceta humana que dá conteúdo à relação jurídica processual.

E por isso, devo acomodar-me agora aos fatos, ainda que simbólicos, que servem como adorno ao que adiante se exporá.

No exercício de meu mister junto à Procuradoria de Assistência Judiciária ( PAJ) órgão que, em São Paulo, corporifica as funções afetas à Defensoria Pública, fui procurado nos idos de 1993 pelo senhor Sebastião de Souza, velho trabalhador, àquela época já com 66 anos de idade, que vindicava, no âmbito administrativo do sistema previdenciário oficial, a sempre recusada aposentadoria por idade.

Não é demasiado consignar que o Senhor Sebastião, como tantos milhões de compatrícios seus, é pessoa pobre, dessas tantas que não ostentam amparo social algum, não detém sequer registro profissional ou mesmo uma mínima fonte de renda, e que, por só se afeiçoarem como insípidos números insertos nas estatísticas governamentais, vivem a palmilhar pelas ruas em busca de sucatas e pedaços de papel, posto que coisa melhor não os tange nesta nossa decantada economia globalizada e nas diretrizes de "desenvolvimento econômico" impostas, de fora, ao país.

Em razão dessas sucessivas recusas e estreitas vicissitudes, ajuizou-se, em nome do cansado trabalhador, ação previdenciária tendente a alcançar a tutela jurisdicional que sujeitasse o INSS a pagar-lhe o merecido provento.

Embora procedente o pleito em 1ª instância, por influxo do feixe de normas editado nestes tempos de neoliberalismo sob a égide de uma pretensa e mal arrevesada assertiva de "governabilidade" [2], a correlata sentença que o favorecia quedou-se inerme, sem efeito prático algum, à espera não só do "reexame necessário" - advindo daquelas alterações legislativas que ao aparato governamental tudo provê - como, em especial, à apreciação do sempre procrastinatório recurso interposto pela autarquia previdenciária federal.

Por essa senda, o feito aportou nos escaninhos do TRF-3ª Região no longínquo dia 11.7.1994 [3], e desde então está ali, em letárgica estagnação, a esperar que alguém dele tome conhecimento para, enfim, se pôr termo à ciranda processual e, quem sabe, possibilitar ao debilitado autor a fruição da merecida aposentadoria.

Sempre o seu Sebastião vinha à sede da PAJ em busca de informes sobre o processo. Passava algum tempo, estava lá o seu Sebastião à procura de notícias sobre o esperado término do interminável feito...

Mas a demora era tamanha que faltavam palavras que traduzissem ao cansado ancião a completa ausência de justificativa que servisse para explicar o inexplicável.

Por conta dessa insuportável tardança, não foram poucos os pedidos de antecipação da tutela, de designação de data para julgamento ou mesmo providências administrativas elaborados no escopo de lembrar aos membros da sobredita Corte de Justiça acerca da existência do inaudito processo bem como das severas circunstâncias que demarcavam a estreita vivência de seu autor.

Tudo em vão.

Até hoje não se sabe se nos meandros do sistema judiciário houve, por parte de alguém, alguma espécie de compunção pela defunção do direito à sobrevivência digna titularizado pelo postulante daquela esquecida - e com certeza - amarelecida demanda.

Oito anos de espera é tempo insuportável para quem, como Sebastião, procurava o acesso à prestação de cunho nitidamente alimentar, direcionada exclusivamente a outorgar-lhe condições escassas de sobrevida neste rincão.

Nunca responderam aos reclamos.

Seu Sebastião, há muito não os procura mais.

Talvez, infelizmente, tenha sucumbido diante das intempéries dos tempos e do mundo.

2 Falar - como se propõe a fazê-lo nesta modesta crônica - acerca das vicissitudes que informam a ciclópica lentidão do aparato judiciário do Estado, levando à completa defunção os direitos básicos à uma cidadania digna, teoricamente detidos pelos incontáveis anônimos que, como Sebastião de Souza, aguardam, quase que sem repulsa alguma, o tardante julgamento, pelos Tribunais competentes, dos pleitos em seus nomes um dia instaurados, é tarefa difícil, não só pela repetição do que ali e acolá já se explicitou sobre o tema como, em última análise, é assunto ingrato, costumeiramente destinado a conveniente esquecimento.

Parafraseando Fabio Konder Comparato quando instado a comentar sobre a messe de alterações constitucionais que transformaram nosso ordenamento jurídico a algo parecido com o nada [4], podemos reconhecer que analisar os reveses que norteiam a estrondosa morosidade do sistema judiciário é atividade assemelhada à daquele legista que está a examinar um cadáver.

Laxismos à parte, está na hora de todos que operam e obram junto à máquina judiciária, em especial os componentes de seus órgãos diretivos, enfrentarem tão grave problema com honestidade, cessando com vindicações de alterações e reformas legislativas que não extrapolam o campo estéril das medidas paliativas e baratas, pois uma justiça que leva à mais absoluta inânia os direitos de sobrevivência de milhões de cidadãos destinatários seus pode ser chamada de tudo, menos de Justiça.

O tempo comprovou que os paliativos recentemente forjados no escopo de transformar o processo em meio apto à prestação da tutela jurisdicional célere e eficaz, transformaram-se em notórias inutilidades, posto que não houve confronto com os verdadeiros fatores da insuportável morosidade do sistema.

Não basta conceber-se tão-só no campo normativo órgãos jurisdicionais teoricamente informalizados, atreitos à veiculação de pretensões singelas como os nominados Juizados Especiais Cíveis e Penais ( antes Juizados Especiais de Pequenas Causas) [5] sem que, em cumprimento à própria norma, se criem, com investimentos condizentes, os correspectivos órgãos judicantes e correlatas serventias, evitando-se transformar esses especiais juizados no clamoroso fiasco em que, alfim, redundaram.

É notório o prematuro congestionamento dessas novas experiências. Tamanho o sucateamento de suas estruturas ( se é que podemos dizer que elas existem), que o modelo anterior, afeto aos procedimentos comuns, se mostra mais atrativo às partes, por mais paradoxal que isso possa parecer.

Agora, na mais recente "inovação" neoliberal [6] está a instalar-se junto à enfermiça Justiça Federal os seus correspondentes "Juizados Especiais", incorrendo-se no erro de sempre, ou seja, sem os imprescindíveis investimentos tangentes à criação de órgãos jurisdicionais próprios ao desempenho dessas especiais demandas.

No ideário político tributado ao país, o caminho para a "reforma" do Judiciário coincide com edições sucessivas de normas, medida barata essa, sendo desnecessária qualquer ingestão ou concretização de um mínimo investimento para tentar dar concretitude ao que nas normas se ordena.

Ou seja, esses instrumentos teoricamente destinados a dar vazão a litigiosidade contida, por força da inapetência e ausência de vontade política dos gestores do aparato estatal, acabam sendo um fator a mais no contributo da sobrecarga dos Juízes e demais profissionais que atuam junto à administração da justiça, já demasiadamente sobrecarregados com o pesado volume normal, e precedente, de serviços.

Em outras palavras, os Juizados Especiais, face a notória ausência de intento para que efetivamente sirvam como úteis instrumentos jurisdicionais ao povo, vêm ao mundo afeiçoados com a triste imagem dos natimortos.

Na onda de alterações no sistema processual que se está a comentar, é fácil detectar-se excessiva preocupação em se aliviar os Tribunais, mormente os Superiores, da pletora de recursos, criando-se risíveis artifícios de retenção, pré-requisitos, condicionantes, tudo, enfim, para poupar as excelsitudes que ali labutam, dos incômodos derivados dos insurgentes e anônimos integrantes da população. [7]

Como vai se notando, pela ótica daqueles que integram a cúpula do sistema, a culpa pela lentidão e congestionamento do aparato judicial reside no volume de recursos, olvidando eles que 70% da massa recursal que assola os Tribunais provêm dos inconformismos – mais das vezes meramente procrastinatórios - manifestados pelo próprio Poder Público, além, é claro, do artificioso e anacrônico reexame necessário.

À sombra dessa inócua retórica nossos gestores – dentre os quais os dirigentes dos Tribunais mais graduados do país – vivem a prenunciar – em direta obediência às regras estabelecidas pelos credores internacionais – a criação da malsinada "súmula vinculante", panacéia essa que, no discurso daqueles que levam uma existência hermeticamente demarcada pelos lindes dos gabinetes, teria a catadura de definitiva solução para a histórica tardança na prestação dos serviços jurisdicionais.

Esse expediente forjado pela elite dirigente a mando da plutocracia internacional, corporificado na figura das "súmulas vinculantes", consistirá na ceifa total da liberdade de convicção dos juízes de grau jurisdicional inferior, além, é óbvio, de representar um severo golpe em nossa precária convivência democrática, anulando, quase que em sua integridade, as premissas que norteiam a independência da magistratura, que no sentir do sempre lembrado Fabio Konder Comparato [8] se erige numa das mais importantes garantias do sistema de proteção dos direitos humanos.

Como adverte Claudio Baldino Maciel, eminente Juiz de Direto do Rio Grande do Sul, as súmulas com efeito vinculante são anseios impostos pelo Banco Mundial, através de seu documento nº 319, aos países de economia periférica, perenes reféns seus, e visam, precipuamente, oferecer um ambiente judicial favorável aos capitais estrangeiros, assegurando a previsibilidade das decisões dos Tribunais Superiores acerca das questões a eles atreitas [9].

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Anota ainda o referido magistrado que o Banco Mundial, nessas obscuras "recomendações", define algumas das " causas do mau funcionamento da Justiça em nosso país, entre as quais estão, reconhecidamente, a hipertrofia legislativa, a violação reiterada, pelo Poder Público, de normas legais e da própria Constituição, para não falar, no caso brasileiro, da dolosa e reiterada interposição, pela administração pública, de recursos judiciais em milhares de casos que sabe de antemão que será malsucedida". [10]

Para o magistrado, enfim, a preconizada tendência à verticalização do sistema judiciário pátrio implica na direta supressão da independência desse Poder, o que "em qualquer mundo que habitemos e em qualquer época histórica, só pode significar a inexistência da democracia". [11]

3 Há anos que Cândido Rangel Dinamarco vem advertindo que "é tempo de integração da ciência processual no quadro das instituições sociais, do poder e do Estado, com a preocupação de definir funções e medir a operatividade do sistema em face da missão que lhe é reservada. Já não basta aprimorar conceitos e burilar requintes de uma estrutura muito bem engendrada, muito lógica e coerente em si mesma, mas isolada e insensível à realidade do mundo em que deve estar inserida". [12]

Para tanto, ou seja, para a concreta inserção da ciência do processo às condições sociais à ele subjacentes, é necessário ter em mente, principalmente aqueles encarregados de exercer a função judicante, que o aporte básico e primacial precedente à emissão de qualquer ato estatal centra-se no princípio afeto à dignidade humana, que no âmbito constitucional foi erigido a um dos fundamentos desta nossa prometida república. [13]

Nos dizeres sempre precisos de Flávia Piovesan, "nesse sentido, o valor da dignidade da pessoa humana impõem-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional". [14]

E arremata: "atente-se ainda que, no intuito de reforçar a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, a Constituição de 1988 institui o princípio da aplicabilidade imediata dessas normas, nos termos do art. 5º, parágrafo 1º. Este princípio realça a força normativa de todos os preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais, prevendo um regime jurídico específico endereçado a estes direitos. Vale dizer, cabe aos Poderes Públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e garantia fundamental". [15]

Tudo isso exposto, não é de se olvidar que o direito titularizado por qualquer um do povo em ter acesso célere à tutela jurisdicional postulada, principalmente quando ela tende a servir como esteio à própria sobrevivência das pessoas, consiste em direito básico e fundamental de qualquer cidadão – seja rico ou pobre – lembrando-se que, como se atestou alhures, a função judicante ressuma como sustentáculo principal daqueles direitos fundamentais.

Portanto, estando integrada ao conjunto de instrumentos tendentes a emprestar concretitude ao acervo de direitos básicos das pessoas, não pode a tutela jurisdicional ser negligenciada, escamoteada, subtraída da grande massa miserável da população sob qualquer pretexto, principalmente sob o empobrecido e eterno argumento da "ausência de recursos" para a ampliação do aparato judiciário, sempre convenientemente invocado na retórica do corpo dirigente desse nosso exangue sistema de distribuição de justiça.

Recursos existem, sim. Só é preciso ter a coragem necessária para que eles sejam efetivamente direcionados à base da prestação dos serviços judiciários, para que os milhões de Sebastiões de Souza que habitam esta pátria não atravessem a vida ante a impressão de que seus direitos de acesso à Justiça se assemelham a uma recôndita quimera.

Recursos existem, sim. Tanto isso é verdade, que não há pudor algum por parte dos mentores das faraônicas sedes dos Tribunais Superiores e mesmo dos Tribunais locais, via de regra erigidas em áreas notoriamente conhecidas como o metro quadrado mais caro desta nossa vilipendiada América Latina, muito embora a população destinatária de seus préstimos não conte com o mínimo para custear vivência digna.

E se houvesse gerenciamento correto desses recursos, ao invés dessas paquidérmicas e marmoreadas sedes, poderíamos contar com uma malha bem mais extensa dos serviços judiciários, com a multiplicação e melhor estrutura de seus órgãos de primeira instância, com a ampliação da composição dos Tribunais, enfim, com a adequada informatização no sistema de processamento e comunicação dos atos e decisões dos processos para que, alfim, textos como este resplandecessem absolutamente inúteis e a Justiça não se identificasse com o limbo que é cotidianamente outorgado à maioria da população destituída de atributos essenciais para o exercício pleno de seus direitos fundamentais.

A Lei de Responsabilidade Fiscal [16], outro instrumento imposto de fora ao país tão só para servir de baliza nos cortes dos recursos públicos dos setores essenciais atreitos ao Estado, até mesmo por ser norma de cunho infraconstitucional, não pode funcionar como o argumento informador do desmantelamento do aparato judicial [17], tendente a transformar em letra morta a garantia Constitucional de autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário, gravada no artigo 99 da tão desrespeitada Carta Política desta nossa combalida república.

Não é possível aceitar que a mercê de uma desarrazoada política governamental de "ajuste fiscal", tenhamos de conviver com um Judiciário atrofiado, subalterno, insuportavelmente tardante.

O jornalista, editor e escritor César Benjamim bem margeia os pontos sobre a questão ao fazer definitiva análise das condições que serviram de base para o advento dessa "inquestionável" lei de "ajuste fiscal", ao ponderar:

"Outra recente mistificação desse tipo é a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. É fácil ver que, também aqui, o nome foi imaginado sob medida para impedir o debate: quem pode ser contra uma "lei de responsabilidade"? Ademais, o que ela diz parece ser coerente com a experiência de cada um: os governos ( como chefes de família...) não podem gastar mais do que arrecadam. Não é simples? Não.

Em primeiro lugar, há muitos anos o governo brasileiro arrecada em impostos muito mais do que gasta com salários, custeio e investimentos. Tem superávit primário. O déficit só aparece quando agregamos as despesas ao pagamento de juros ao capital financeiro. Como a lei não prevê – nem admite – a compressão destas despesas, mas sim das demais, ela poderia chamar-se "Lei da Prioridade do Uso de Recursos Públicos para Pagamento aos Bancos", ou "Lei que Declara que Educação e Saúde São Menos Importantes que Bancos", ou "Lei que Torna Intocáveis os Lucros do Sistema Financeiro, Nacional e Estrangeiro, Mesmo às Custas de Cortes em Atividades Essenciais", ou simplesmente Lei do Mais Forte – nomes que, pelo menos, teriam o mérito de permitir um debate". [18]

Impondo retorno ao que antes se dizia, uma lei ordinária, que impõe limite orçamentário de apenas 6% para gastos com pessoal e atividades do Judiciário, engessando e ossificando os instrumentos constitucionais de promoção e prevalência dos direitos fundamentais da pessoa humana, não pode pairar, em meio às instâncias de controle da constitucionalidade deste país, como algo intangível, inquestionável, acima do bem e do mal.

Seu conteúdo normativo, por convergir para a supressão da garantia de autonomia financeira e administrativa desse Poder, aflora visivelmente inconstitucional.

Até mesmo Ives Gandra Martins, deparando-se sobre o tema, enunciou que " de início, é de se lembrar que a lei complementar não pode superar as forças da norma constitucional. Pode explicitá-la, mas, à evidência, não pode nem modificá-la, nem condicioná-la. O que está na lei maior vale sempre sobre todos os comandos normativos, não podendo jamais a lei menor limitar as forças da lei maior, nem mesmo a título de explicitar, impondo amarras inexistentes no texto constitucional". [19]

Em derradeira conclusão do tema, assinala Gustavo Binenbojm que "Ronald Dworkin propõe um modelo de democracia constitucional em oposição à democracia majoritária, baseando-se, justamente, em determinados direitos que, por uma questão de princípio, devem ser assegurados às pessoas, com prevalência sobre as políticas públicas decididas pelas maiorias eleitorais. Uma teoria da democracia pressupõe, assim, que funcionem como trunfos contra maiorias irresponsáveis, mas, ao mesmo tempo, como princípios deontológicos inerentes à própria noção de regime democrático". [20]

Pois, ainda nas palavras do citado constitucionalista, determinado "Tribunal Constitucional se legitima quando a coletividade o aceita como instância de reflexão racional do processo político. Se um processo de reflexão entre coletividade, legislador e Tribunal Constitucional se estabiliza duradouramente – isto é, quando a Corte Constitucional adquire credibilidade política e social – pode-se afirmar que a institucionalização dos direitos do homem deu certo, no âmbito do Estado Democrático de Direito". [21]

Eis ai boa recomendação ao nosso Supremo Tribunal Federal para, quem sabe, um dia conseguir legitimar-se, em meio à sociedade, como genuína Corte Constitucional.

4 Mas além dessa conjuntura político-institucional, sobre o mote imanente a esta comentada e insuportável morosidade da justiça paira, também, o aspecto pessoal dos magistrados, a postura individual que deveria exteriorizar, em regra, a consciência do significado de suas relevantes funções, denotando ao povo que o exercício delas implica na primazia das atividades judicantes, não mero apêndice seu, como, lamentavelmente, ocorre entre grande parte daqueles que integram os Tribunais pátrios.

Ressoa notório – e fatos notórios prescindem de demonstração – que mesmo a par da excessiva morosidade no julgamento dos processos que diariamente aportam nos Tribunais, grande parte de seus membros, estranhamente, conseguem acessar tempo útil para frequentar simpósios, conferências, circunlóquios, dar aulas "em cursos preparatórios de ingresso às carreiras jurídicas" e coisas do gênero, dando a exata impressão que a magistratura na qual estão investidos se manifesta como atividade secundária, eminentemente subalterna aos vários magistérios e participação em palestras que, mesmo frente a avassaladora demanda de feitos, conseguem ainda frequentar.

Parece que o tempo para essas correlatas atividades é demasiadamente extenso, muito embora sejam elas, mais das vezes, absolutamente inconstitucionais. [22]

Luiz Fernando Cabeda, magistrado em Santa Catarina, bem enfatiza que " os magistrados sem processos atrasados não são aqueles que estão costumeiramente em simpósios". [23]

E logo a seguir, nesse mesmo arrojado e antológico texto, conclui: " Há integrantes de Tribunais que acumulam cargos no magistério, compatíveis com a magistratura, com terceira atividade – vedada na constituição – de professores de cursos preparatórios, em escolas ou como autônomos. Há tamanha degradação que os jornais chegam a publicar anúncios, muitas vezes indicando que se trata do juiz tal, ou do desembargador qual. Como ficou dito atrás, impor que as escolas de aperfeiçoamento lecionem obrigatoriamente deontologia é colaborar para a simulação". [24]

Portanto, como frisado em outras linhas, fica difícil aos pobres, parte da parcela destinatária do sistema distributivo de justiça compreenderem porquê seus processos tardam tanto para chegar a termo nos Tribunais, quando, como se vai notando, sobra tempo suficiente para exercício, intenso, de tantas atividades paralelas por alguns daqueles que deveriam primar pela celeridade na cognição e desfecho dos esquecidos e amarelecidos feitos.

É conhecido o antigo anseio expresso por Ada Pellegrini Grinover, em memorável e sempre atual monografia intitulada "A Crise do Poder Judiciário", trazida à baila nos idos de 1990, onde a renomada processualista prenunciava que "Algum tempo haverá de passar, antes que a mentalidade do juiz brasileiro se adapte à nova ordem constitucional, que representou uma verdadeira ruptura em relação ao recente passado político e institucional do País. Muitos são os interesses que esta contrariou e significativos os esforços de seus titulares para atenuar o impacto das novas disposições. Por sua vez, a mentalidade conservadora, bastante difusa, também resulta em tendência ao imobilismo, que leva a interpretar princípios e regras como se nada de fundamental houvesse mudado, constituindo-se em outra circunstância que embaraça a plena eficácia das recentes disposições. Como reverter esse quadro?". [25]

A indagação, que serviu de fecho ao texto supra transcrito, foi feita há mais de uma década.

De lá para cá, infelizmente, para pessoas como o esquecido Sebastião e os milhões de compatrícios seus, nada, absolutamente nada mudou.

Na seara das coisas judiciais, a insuportável e inexplicada morosidade continua a aniquilar direitos, sem trégua nem leniência.

Afora o ato de resistir, de sempre e sempre se irresignar frente à essa absurda e infundada morosidade que leva direitos comezinhos à fatal defunção, cumpre, ainda, emprestar forças àqueles que acreditam que um novo modelo de distribuição de justiça seja possível.

Mas não qualquer modelo de justiça.

E sim aquele delineado pelas insuperáveis palavras do escritor José Saramago que, refletindo sobre a morte da Justiça, assim eternizou este significativo texto, que por isso, segue transcrito:

"(...) Suponho ter sido a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma câmpula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta de nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira cotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exato e rigoroso sinônimo do ético. (...) Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em ação, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste". [26]


Notas

1. Eichmann em Jerusalém, Cia. das Letras, p.15

2. Sobre as normas, cf. Lei Federal nº 9.469/97, em especial, art. 10, que estendeu às Autarquias e Fundações Públicas o benefício procrastinatório previsto no art. 475, II, do CPC, viés esse depois corroborado pelo advento da Lei nº10.352/01, que introduziu, em data recente, mais uma inócua modificação no sistema processual. À época dos fatos a original redação do art. 130 da Lei nº 8.213/91, que permitia a execução provisória de julgados contra o INSS em ações previdenciárias, estava suspensa ante a instauração da Adin nº 675-4-DF, outorgando, já naqueles tempos, efeito suspensivo à toda e qualquer sentença contrária à superprotegida Autarquia federal.

3. Proc. nº 94.03.053479-6, rel. Des. Fed. Ranza Tartuce.

4. cfr. Requiém para uma Constituição, rev. da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, set. 98, p. 53

5. Primeiro a Lei nº 7.244/84 ( Jepecs), depois a Lei nº 9.099/95. ( JECP)

6. Lei nº 10.259/2001.

7. Exemplo disso encontra-se, dentre outras "inovações", na alteração introduzida pela Lei nº 9.756/98, que fez acrescer o § 3º ao art. 542 do CPC, tornando retido nos autos eventual recurso extraordinário ou especial interposto em face de acórdão que apreciou impasse decorrente de decisão interlocutória. Ou, mais recentemente, a inovação introduzida no regime do Agravo pela já mencionada Lei nº10.352/01, que possibilita ao relator a opção pela retenção ou não do agravo de instrumento.

8. boletim "Juízes para a Democracia", nº8, ago/out/99, p.7

9. "O Juiz Independente no Estado Democrático", artigo contido no site do Fórum Social Mundial de Porto Alegre.

10. op. cit., p. 3.

11. idem, p.2.

12. A Instrumentalidade do Processo, 2ª ed., RT, p. 9.

13. Artigo 1º, III, C.F.

14. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, ed. Max Limonad, 1996, p. 59.

15. Idem, p.p. 63/4.

16. Lei Complementarnº 101/2000.

17. Segundo o Des. Márcio Martins Bonilha, ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, a Lei de Responsabildade Fiscal é a "responsável pela camisa-de-força do Judiciário", in Jornal do Adogado, OAB/SP,maio/2001, p. 14.

18. O Poder das Palavras, Rev. Caros Amigos, ed. Casa Amarela, ano V, nº 58, jan. 2002, p. 13.

19. Lei de Responsabilidade Fiscal e o Poder Judiciário, Jornal do Advogado, OAB/SP, maio de 2001, p. 16.

20. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira, ed. Renovar, RJ-2001, p. 105.

21. Idem, p. 117.

22. Sabemos que o art. 95, par. único, I, da CF permite, apenas, a cumulação de uma única função de magistério.

23. "A Justiça Agoniza", artigo inserido na Ver. "Justiça e Democracia", editada pela Assoc. Juízes para a Democracia, nº 4, 2001, p.58.

24. Idem, p.p. 63/64

25. Rev. da Procuradoria Geral do Estado – São Paulo, nº 34, dez/90, pp. 19/20.

26. "Da Justiça à democracia, passando pelos sinos", texto de encerramento do 2º Fórum Social Mundial.

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Sobre o autor
Wagner Giron De La Torre

procurador do Estado de São Paulo, atuando na Procuradoria de Assistência Judiciária em Taubaté (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DE LA TORRE, Wagner Giron. A morosidade da Justiça e a defunção dos direitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3038. Acesso em: 18 nov. 2024.

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