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Corrupção e o efeito “Tostines”

23/09/2014 às 12:22
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Avalia-se a nossa visão superficial da corrupção e o dilema da exposição que traz o seu combate pelos órgãos de controle, causando a impressão de que a corrupção pode estar aumentando e não recuando.

De forma recorrente, observamos na imprensa ilações sobre o quanto é desviado em um determinado período do país na política de saúde, ou de educação, como se fosse possível, em termos de corrupção, estimar-se o quantitativo roubado. Ledo engano, na nossa por vezes pouco producente, mania de quantificar tudo...

Por quê? Por uma razão simples! Por que esses chamados delitos ocultos, tais como o uso de drogas, o aborto, a corrupção e a sonegação, por exemplo, não são declarados voluntariamente pelo seus executores e ainda, não deixam vestígios claros, de fácil detecção, pois sua ação não altera um sistema fechado.

Por exemplo, como vou saber o quanto foi desviado, quantas pessoas são usuárias de drogas ou ainda quantas mulheres abortam, se esses delitos são ocultados ostensivamente? Teremos que buscar índices em outras fontes, por vezes de inferências pouco confiáveis. Para drogas alguns avaliam a sua presença na água que deriva dos sanitários ou nas cédulas; no caso do aborto investigam-se os atendimentos no sistema de saúde derivados deste e a corrupção, essa é difícil, pois muitas vezes as aquisições públicas são de grande monta, sem paralelo de preços e condições e os desvios e superfaturamentos necessitam ser verificados no mundo real, frente aos recursos alocados. Tarefa árdua, e que traz poucos resultados em termos práticos na lide de combate a corrupção.

No caso da corrupção, pela sua relação estreita com os processos políticos, quando surge um escândalo, oriundo de uma denúncia, operação policial ou auditoria, ele surge como uma ponta de iceberg, sugerindo ser aquele caso uma referência a uma  fração  predominante oculta, o que pode não ser verdade, pois a detecção pode ser fruto de uma política de compliance, de oposição as práticas corruptas, que se encorajam pelos ganhos fáceis.

Assim, parafraseando a famosa campanha publicitária do biscoito “Tostines” ("Está sempre fresquinho porque vende muito, ou vende muito porque está sempre fresquinho?"), temos um dilema. Quanto mais fazemos ações de controle, no combate a corrupção, mais aparecem casuísticas e mais o público pensa se estar em um lodaçal de corrupção. Ficamos quietos e a corrupção tem seus efeitos percebidos de forma difusa ou não percebidos e deixamos a coisa rolar. Triste dilema de gestores e governantes...

Nesse contexto, hoje, no mundo, consagra-se o uso do indicador de percepção de corrupção, utilizado pela transparência internacional. Utilizado desde 1995, indica “o grau em que a corrupção é percebida a existir entre os funcionários públicos e políticos", e os mapeamentos apontam que os países saxões e desenvolvidos ostentam as melhores marcas e os países ditos do terceiro mundo e com governos menos democratizados apresentam menores scores, com as ressalvadas exceções.

 A grande questão é que comparamos alhos com bugalhos e países com histórias e organizações diferentes, de culturas de patrimonialismo desigual e ainda que o bom senso ratifique as indicações em relação aos países, de forma estática, quando falamos da variação desse índice, a situação é bem diversa, pois a corrupção, como fenômeno estrutural, não varia de forma tão acentuada em pouco tempo e ainda, tem suas medidas prejudicadas pelas questões da percepção já apresentadas.

Assim, o país cair cinco posições em um ano, ou subir, pode ser apenas uma questão de escândalos em alta ou de aumento de credibilidade nas instituições, o que se trata de uma outra discussão. Indicar o fenômeno cultural da corrupção como uma quantificação variante é uma falácia, o que pode indicar, em um ambiente de grande efeito da comunicação de massa, apenas a reverberação de esquemas malbaratados.

O índice é valido, dado seu reconhecimento internacional, mas precisamos avançar sobre essa discussão para além da percepção, como se a corrupção fosse uma doença e não um fenômeno cultural-administrativo-político.  A corrupção é um tabu para muitos, que continuam levando as suas vidas como se ela não existisse. É uma chaga social que é um reflexo do comportamento humano, que nos envergonha profundamente. Como ela não pode ser totalmente erradicada, é melhor encobri-la, ignorá-la, como uma doença fatal sem sintomas que preferimos esconder do vizinho a tomar remédios para minorar seus efeitos, como nos ensina Robert Klitgaard no seu clássico “Corrupção sob controle” (Editora Zahar).

Necessitamos de um índice de prevenção a corrupção! A prevenção, quando tem sucesso, também não é detectada, não se materializa, não ganha destaque, mas é a medida eficaz para reduzir, de forma sistemática, as ações corruptas. Eis outro lado perverso desse “efeito Tostines”, pois a prevenção não é percebida e o combate é percebido de forma difusa!

Confundimos causas com efeitos, generalizamos sem bases factuais e não conseguimos enxergar o que é corrupção estrutural ou o resultado de uma ação dissuasória de combate. Recente artigo de Juarez Guimarães, publicado em 2/06/2014 no site “Carta Maior”, indica que em relação a corrupção, “Quando mais se combate, mais ela aparece. Em uma ditadura, quando os mecanismos republicanos de combate à corrupção não mais existem, pode parecer que não há mais corrupção quando ela atingiu o grau máximo. Um governo que é omisso no combate à corrupção pode parecer perfeitamente republicano embora seja corroído por fortes teias de corrupção.”

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Qual a importância disso tudo? Essa visão desanima gestores em níveis estratégicos a patrocinar ações sistemáticas de prevenção e combate à corrupção, com medo de serem arrolados como arautos do mar de lama. O dirigente prefere a saída do “melhor dormir, que a dor vai passar”, esperando os problemas sumirem, do que tomar a frente e mostrar protagonismo no enfrentamento desse grande e negado problema. Assim, em uma lógica inversa, corremos o risco de punir quem investe no controle, de forma hipócrita, assim como hostilizamos a mãe solteira e por ignorância acolhemos o casal que aborta.

Essas atitudes pusilânimes e comodistas de não enfrentar a questão da corrupção na gestão, vivendo um positivista mundo perfeito, é fruto da falta de compreensão do fenômeno da corrupção, como atividade inerente a gestão e ao ser humano, e que deve ser minorado, como risco aos objetivos organizacionais. Precisamos dar um passo na visão da corrupção, do seu combate e da sua relação com a gestão e o sistema político.

Índices de percepção, ao contrário de avaliações de maturidade de gestão de riscos ou de compliance, estimulam a omissão dos gestores. Necessitamos de índices estruturais, de mecanismos de controle, da robustez dos órgãos de controle institucional em relação a população e orçamento e ainda, avaliações da atuação do controle social, por meio de denúncias e da atuação dos conselhos e meios similares. Esse painel de indicadores nos dá informações mais dinâmicas, para além da fotografia social de um índice de percepção.

Fugir disso é cairmos no interminável ciclo “Tostines”, achando que se combate corrupção com opinião e não com mecanismos gerenciais e políticos. Ignoramos, nesse contexto, os avanços na sociedade recente na Constituição Federal de 1988, na Lei de Responsabilidade Fiscal e em tantos outros normativos que robusteceram o Ministério Público, os órgãos de controle, a transparência e a participação, elementos indispensáveis para uma maior integridade na gestão pública e presentes de forma amadurecida nos países saxões, que apresentam os índices de percepção da corrupção mais favoráveis. Nos contentamos em repetindo mantra que continua se roubando muito no país...

Escândalos tem o efeito abacate: uma pequena colher mancha de verde todo o jarro de leite. Nos melindramos, nos assustamos e ficamos ruborizados... Mas, precisamos avançar sobre essa “verdade sabida”, para entender as forças e estruturas que nos levaram aquela casuística, cobrando medidas preventivas, de fortalecimento dos controles, da gestão de risco, do controle social e da transparência, na profissionalização do serviço público, na busca pela qualidade dos serviços públicos, orientados para o cidadão.

Somente assim, com esse amadurecimento, a corrupção deixará de ser uma ferramenta no jogo político, para ser entendida como um reflexo de nosso patrimonialismo imanente e que precisa, cotidianamente, ser combatido, com mecanismos próprios e que de forma realista entendem que, apesar de ser de impossível erradicação, a corrupção pode ser levada a níveis bem aceitáveis.

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Sobre o autor
Marcus Braga

Doutorando em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ (GPP/PPED/IE/UFRJ). Auditor Federal de Finanças e Controle. CV em http://lattes.cnpq.br/6009407664228031

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Marcus. Corrupção e o efeito “Tostines”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4101, 23 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30451. Acesso em: 18 nov. 2024.

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