5. Desistência do recurso selecionado como representativo da controvérsia: impossibilidade?
Acerca da discussão envolvendo a viabilidade da desistência do recurso representativo da controvérsia, impende considerar que o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n.º 1.071.622/RJ, da relatoria da Min. Nancy Andrighi (BRASIL, 2008, p. 1), não reconheceu o direito do recorrente de desistir do recurso especial se este foi selecionado para o julgamento por amostragem das causas repetitivas.
A esse respeito, registra-se interessante sugestão de Fredie Didier (2009, p. 323-324), segundo a qual nada impediria que fosse reconhecida a desistência do recurso manifestada pelo recorrente – a qual , no seu entender, produz efeitos imediatos e independe de homologação judicial –, desde que o processo em questão permanecesse dando suporte ao julgamento da tese jurídica em caráter geral. Entende o autor que a seleção de feito representativo da controvérsia importa na instauração de novo procedimento, diverso do procedimento recursal. Isto é: paralelo ao procedimento do recurso interposto, que é principal, instaura-se um incidente de julgamento por amostragem dos recursos repetitivos, que se vale do procedimento recursal inicialmente deflagrado, mas que com este não se confunde. Logo, possível seria ao recorrente desistir do recurso; o que não lhe seria dado, tão somente, seria impedir o impulso oficial do incidente de julgamento por amostragem, que se vale do processo no qual foi interposto o recurso como demanda-tipo, exemplo de causa ou, no dizer da lei, feito meramente “representativo” da controvérsia. Em palavras do autor:
Quando se seleciona um dos recursos para julgamento, instaura-se um novo procedimento. Esse procedimento incidental é instaurado por provocação oficial e não se confunde com o procedimento principal recursal, instaurado por provocação do recorrente. Passa, então, a haver, ao lado do recurso, um procedimento específico para julgamento e fixação da tese que irá repercutir relativamente a vários outros casos repetitivos. Quer isso dizer que surgem, paralelamente, dois procedimentos: a) o procedimento recursal, principal, destinado a resolver a questão individual do recorrente; b) o procedimento incidental de definição do precedente ou tese a ser adotada pelo tribunal superior, que haverá de ser seguida pelos demais tribunais e que repercutirá na análise dos demais recursos que estão sobrestados para julgamento. Este último procedimento tem uma feição coletiva, não devendo ser objeto de desistência, da mesma forma que não se admite a desistência em ações coletivas (Ação Civil Pública e Ação Direta de Inconstitucionalidade, por exemplo). O objetivo desse incidente é a fixação de uma tese jurídica geral, semelhante ao de um processo coletivo em que se discutam direitos individuais homogêneos. Trata-se de um incidente com objeto litigioso coletivo. Quando o recorrente, em um caso como esse, desiste do recurso, a desistência deve atingir, apenas, o procedimento recursal, não havendo como negar tal existência, já que (...) ela produz efeitos imediatos, não dependendo de concordância da outra parte, nem de autorização ou homologação judicial. Ademais, a parte pode, realmente, precisar da desistência para que se realize um acordo ou se celebre um negócio jurídico, ou, por qualquer outro motivo legítimo, que não necessita ser declinado ou justificado. Demais disso, o procedimento recursal é, como se sabe, orientado pelo princípio dispositivo. Tal desistência, todavia, não atinge o segundo procedimento, instaurado para definição do precedente ou da tese a ser adotada pelo tribunal superior. (DIDIER JÚNIOR; CUNHA, 2009, p. 323-324)
A proposta se afigura coerente e razoável. De fato, não há que se confundir o procedimento recursal com o incidente de julgamento por amostragem instaurado a partir do recurso interposto. Tanto é assim que o feito representativo, nos termos da Resolução STJ n.º 8/2008, é, na verdade, um conjunto de processos, na medida em que a referida norma obriga o presidente do tribunal local a encaminhar pelo menos um recurso de cada relator. Logo, na prática, o julgamento de um recurso especial específico, ainda que selecionado como representativo da controvérsia, sofre uma espécie de pausa ou suspensão não declarada: a corte deixa de apreciar as razões próprias do recurso para apreciar o conjunto dos feitos representativos e, somente depois de fixar a tese jurídica da questão principal, volta-se para os recursos individuais para, à luz da ratio decidendi produzida, decidir as questões específicas de cada processo selecionado. Evidente, pois, que há uma distinção entre o procedimento recursal específico e o procedimento de julgamento unificado de recursos repetitivos: no primeiro, serão decididos todos os pontos que foram objeto da impugnação, o que pode incluir peculiaridades exclusivas de determinado processo; no segundo, o que se decide é, tão somente, a questão jurídica repetitiva, que se encontra no núcleo dos processos selecionados como representativos da controvérsia.
É inegável que o interesse público se limita ao julgamento da questão de direito que embasa a demanda, isto é, à formação do precedente aplicável aos demais feitos sobrestados na origem. O destino do recurso específico cujo corpo foi utilizado para permitir a definição da tese jurídica no julgamento por amostragem pouco importa à coletividade. Nessa perspectiva, o modelo sustentado por Fredie Didier e Leonardo Carneiro da Cunha, além de teoricamente consistente, mostra-se o mais adequado do ponto de vista jurídico, pois compatibiliza o direito do recorrente de se desfazer do pleito recursal com o interesse público na fixação da tese aplicável às demandas repetitivas.
6. Antecipação do julgamento de feito sobrestado por razões de urgência
Outra questão relevante em matéria de julgamento por amostragem de recursos especiais repetitivos diz respeito à possibilidade de afastamento do sobrestamento do feito na origem por razões de urgência no exame da demanda recursal. Pode ocorrer que a suspensão do processo pelo tribunal local, para que se aguarde o julgamento da matéria através dos feitos representativos da controvérsia, seja “apta a tornar o recurso inútil ou a gerar uma grave lesão material ou processual” a qualquer das partes (NEVES, 2013, p. 771). Nessas circunstâncias, cabível o pedido para que o tribunal de origem revogue o sobrestamento e submeta o recurso imediatamente à apreciação da corte de superposição. Em não sendo efetuado o encaminhamento pelo tribunal local, a parte pode provocar diretamente o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal.
O instrumento processual para tanto, contudo, não é consenso em doutrina e jurisprudência. Daniel Assumpção assim comenta a matéria:
O caminho processual para afastar a retenção obrigatória no caso concreto é um dos temas mais polêmicos do instituto. Parece ser possível, por meio de mero pedido feito ainda no segundo grau de jurisdição dirigido ao desembargador competente pelo juízo de admissibilidade, conseguir o afastamento da retenção dos recursos, como também não se deve descartar a utilização de uma cautelar inominada com pedido liminar perante o Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal. Até mesmo o recurso de agravo de instrumento contra a decisão que determina a retenção e a ação de reclamação constitucional para o Supremo Tribunal Federal têm sido admitidos. Como todos eles são meras formas instrumentais para obter rigorosamente o mesmo resultado, parece sadio o entendimento jurisprudencial e doutrinário de que a fungibilidade de meios deve ter aplicação ampla e irrestrita nesse caso. (NEVES, 2013, p. 771)
Logo, presente situação de inequívoca urgência, passível de provocar dano irreparável ou de difícil reparação à parte, cabível o requerimento para que excepcionalmente, o Judiciário deixe de adotar, na espécie, o procedimento de julgamento por amostragem, de sorte a que a corte de superposição aprecie imediatamente o recurso especial ou extraordinário. O pedido pode ser efetuado, no segundo grau de jurisdição, por simples petição e, caso rejeitada a arguição de urgência pela presidência do tribunal recorrido, deve a parte provocar diretamente o STF ou STJ, podendo-se utilizar de medida cautelar inominada com pedido liminar, agravo de instrumento ou, no caso do recurso extraordinário, reclamação constitucional para preservação da competência do STF. Doutrina e jurisprudência aplicam, aqui, o princípio da fungibilidade recursal, no entendimento de que a preservação do direito material em situações-limite justificam a relativização do rigor na aplicação da norma instrumental. 5
7. Conclusão
À semelhança do procedimento de julgamento por amostragem do recurso extraordinário, e visando, sobretudo, à desobstrução do STJ, instituiu-se um regime de julgamento unificado do recurso especial, que conta com procedimento praticamente idêntico ao admitido para o RE, inclusive no tocante à participação do amicus curiae e do Ministério Público. Cuida-se de mais uma demonstração inequívoca do fortalecimento da jurisprudência como fonte do Direito no Brasil e do avanço da sistemática brasileira em direção à formação de um sistema de precedentes dotados de força vinculante, ao menos em nível vertical. Em que pese o texto constitucional estabeleça com clareza que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” – art. 5º, inciso II, CF/88 – (BRASIL, 1988, p. 1), já é certo que, em se tratando de norma constitucional ou de lei federal, é o sentido conferido pelo STF ou STJ, em sua interpretação do direito, que balizará a conduta individual, na medida em que os tribunais da jurisdição ordinária e os juízos de primeiro grau se encontram fortemente compelidos a reproduzir em seus julgados a orientação jurisprudencial das referidas cortes de superposição. No Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil, a previsão é de ampliação dos poderes dos tribunais superiores na uniformização do direito, na medida em que a tese fixada em sede de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos será, formalmente, de observância obrigatória pela inteira jurisdição nacional (arts. 993. e 994, do PLNCPC). 6
Referências
BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n.º 1.213, de 30 de maio de 2007. Acresce o art. 543-C à Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, estabelecendo o procedimento para o julgamento de recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <https://www.camara.gov.br>. Acesso em: 12 set. 2013.
BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 209, de 23 de agosto de 2012. Insere o § 1º ao art. 105, da Constituição Federal, e renumera o parágrafo único. Disponível em: <https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=55394>. Acesso em: 19 fev. 2014.
BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Projeto de Lei n.º 166, de 8 de junho de 2010. Dispõe sobre a reforma do Código de Processo Civil (texto consolidado após aprovação do Relatório-Geral do Senador Valter Pereira). Disponível em: <https://www.amperj.org.br/emails/relatorio-Valter-Pereira-24112010.pdf> Acesso em 12 set. 2013.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em 12 jul. 2013.
BRASIL. Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869compilada.htm>. Acesso em: 17 abr. 2013.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Presidência. Resolução n.º 8, de 7 de agosto de 2008. Estabelece os procedimentos relativos ao processamento e julgamento de recursos especiais repetitivos. Disponível em: <https://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=642&tmp.texto=88636> Acesso em: 12 set. 2013.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial n.º 1.071.622/RJ. Relator: Min. Nancy Andrighi. Brasília, 16 de dezembro de 2008. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica>. Acesso em: 12 set. 2013.
CONSULTOR JURÍDICO. Um guia para conhecer o maior tribunal do mundo. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2008-set-30/guia_conhecer_maior_ tribunal_mundo>. Acesso em: 20 dez. 2013.
DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 7. ed. Salvador: JusPodium, 2009.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 5. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Desembargadores. Disponível em: <https://www8.tjmg.jus.br/institucional/desembargadores>. Acesso em: 19 fev. 2014.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Magistrados. Disponível em: <https://www.tjrj.jus.br>. Acesso em: 19 fev. 2014.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Desembargadores. Disponível em: <https://www.tjrs.jus.br/site/poder_judiciario/ magistrados/desembargadores>. Acesso em 19 fev. 2014.
WOLKART, Erik Navarro. Precedente judicial no processo civil brasileiro: mecanismos de objetivação do processo. Salvador: JusPodium, 2013.
APÊNDICE A – PROPOSTA DE REGULAMENTAÇÃO DO INCIDENTE DE DIFERENCIAÇÃO NO PROCEDIMENTO DE JULGAMENTO DE DEMANDAS REPETITIVAS
Seção XX
Do incidente de diferenciação no procedimento de julgamento de demandas repetitivas
Art. 1º – No recurso especial e no recurso extraordinário repetitivos, se o recorrente entender que houve erro na decisão do tribunal local que determinou o sobrestamento do feito, por distinção substancial entre as questões jurídicas discutidas no processo em apreço e no feito representativo da controvérsia, caberá agravo, no prazo de 10 (dez) dias, conforme o caso, para o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal.
§ 1º – O recurso previsto no caput independe de preparo e subirá nos próprios autos da ação principal.
§ 2º – Recebido o agravo, é facultado ao tribunal local retratar-se, no prazo de 5 (cinco) dias, hipótese em que revogará o sobrestamento ou vinculará o processo a outro feito representativo.
§ 3º – Se não for interposto por ambas as partes, a parte contrária à agravante será intimada a manifestar-se no prazo de 5 (cinco) dias.
§ 4º – Recebido o arrazoado de que trata o parágrafo anterior, o tribunal local encaminhará os autos incontinenti à corte de superposição.
Art. 2º – O agravo será julgado liminarmente pelo relator, em decisão irrecorrível, vedado o recurso, na forma do Regimento Interno, para órgão colegiado do tribunal, ainda que fracionário.
§ 1º – Julgado improcedente o agravo, o relator aplicará multa ao recorrente no valor equivalente a 10% do valor da causa, determinará a baixa do feito na distribuição e remeterá os autos ao tribunal de origem.
§ 2º – Considerando tratar-se de caso de difícil diferenciação, ou, ainda, tendo em vista o elevado valor da causa e a reduzida capacidade econômica do recorrente, é facultado ao relator dispensar a aplicação da multa ou aplicá-la em percentual inferior.
§ 3º – A irrecorribilidade de que trata o caput abrange a multa prevista nos parágrafos anteriores, a qual constituirá crédito da dívida ativa da União, incumbindo ao órgão administrativo do tribunal, na forma do Regimento Interno, encaminhar a documentação pertinente à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, para lavratura da certidão respectiva e promoção do executivo fiscal em procedimento específico.
§ 4º – É vedado à União deixar de promover a cobrança judicial da multa de que tratam os parágrafos anteriores sob o fundamento de perda de escala do órgão jurídico.
Art. 3º – Julgado procedente o agravo, o relator verificará se a questão jurídica objeto da ação principal já foi decidida ou se encontra pendente de julgamento no tribunal superior.
§ 1º – Sendo o caso de matéria já pacificada por súmula, jurisprudência dominante ou acórdão do tribunal superior em incidente de resolução de demandas repetitivas, o relator aplicará o precedente da corte, dando ou negando provimento ao recurso extraordinário ou especial.
§ 2º – Da decisão prevista no parágrafo anterior cabe agravo para o órgão fracionário colegiado da corte, na forma do Regimento Interno.
§ 3º – Estando a matéria discutida na ação pendente de julgamento no tribunal superior em incidente de resolução de demandas repetitivas, o relator, determinando a baixa na distribuição, remeterá os autos ao tribunal de origem, com indicação do feito ao qual ficará vinculado o processo, em sobrestamento.
§ 4º – Verificando, porém, tratar-se de controvérsia nova, não afeta ao colegiado e não pacificada pela jurisprudência da corte, o relator pedirá dia para julgamento no órgão fracionário colegiado do tribunal e processará o recurso na forma do Regimento Interno.
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior