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Tribunais penais internacionais e a responsabilização individual por crimes internacionais na doutrina de Hans Kelsen e José Crettella Neto

01/08/2014 às 10:36
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A instituição de tribunais competentes para resolver casos em que os ordenamentos nacionais são incapazes ou insuficientes abriu espaço para o progressivo desenvolvimento da competência jurisdicional do Direito Internacional.

RESUMO: Reconhecendo a importância jurídica da consolidação de Tribunais Internacionais em matéria penal, pretende o presente artigo analisar a respeito da jurisdição penal exercida por tais tribunais, com ênfase nas possibilidades de responsabilização direta de indivíduos (pessoas físicas) por violações ao Direito Internacional, baseando a análise nas obras de Hans Kelsen e José Cretella Neto pertinentes à temática.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Internacional. Hans Kelsen. José Cretella Neto. Responsabilização individual. Tribunais Penais Internacionais.


INTRODUÇÃO

“Um famoso jurista norte-americano disse: ‘Todo o direito é direito criado pelos juízes.’ Talvez essa declaração vá muito longe, mas ela nos poupa de superestimar a função de legislação e nos permite entender por que não pode haver legislador sem juiz, embora possa muito bem haver juiz sem legislador” – Hans Kelsen.

Durante muito tempo, a responsabilidade de indivíduos representantes ou a serviço de determinados governos foi confundida com a responsabilidade do Estado, sendo ignorada a necessidade de responsabilização individual, a nível internacional, de sujeitos culpados por graves crimes contra a humanidade e contra a pessoa humana.

No entanto, influenciada pelo holocausto causado pelas guerras do século vinte, a opinião pública começou a impor a necessidade de punição desses indivíduos direta e moralmente responsáveis por ilícitos que resultassem em ameaças à humanidade. E, para poder atingir diretamente também pessoas físicas, foi se desenvolvendo a ideia de que essas pessoas deveriam ser sujeitos de um Direito Internacional sancionador, que tivesse o objetivo não de lhes atribuir direitos, mas de lhes impor obrigações e sanções (NETO, 2008, p. 91).

Hans Kelsen (2011, p. 65), discutindo a respeito das possibilidades de manutenção da paz na sociedade internacional, defendeu que um dos meios mais eficazes de prevenir a guerra e garantir a paz seria a criação de normas capazes de estabelecer a responsabilidade individual das pessoas que violassem o Direito Internacional. Segundo Kelsen, para que esses indivíduos pudessem ser punidos, a base do processo deveria ser um tratado internacional, que conferisse jurisdição sobre determinados casos a um tribunal internacional.

Deste modo, gradativamente começou a se consolidar tanto na doutrina jurídica, quanto na comunidade internacional do pós-guerra, a percepção da necessidade de criação de tribunais com jurisdição penal, a fim de reforçar o desenvolvimento de um Direito Internacional mais efetivo. E foi o que ocorreu. Tais tribunais, embora inicialmente pensados para punir os crimes de guerra, hoje englobam todos os indivíduos da comunidade internacional que sejam culpados por atos graves e que ameacem a humanidade.

 Neste contexto, este artigo busca verificar, com apoio nas obras de Hans Kelsen e José Cretella Neto, o caminho percorrido pelo Direito Internacional na instituição de tribunais internacionais especializados para resolver conflitos de ordem penal e qual o papel que tais tribunais representam no desenvolvimento do Direito Internacional.


1 DIREITO INTERNACIONAL PENAL

Alguns teóricos do Direito Internacional discordam da existência de um “Direito Internacional Penal”. Kelsen em sua obra Princípios do Direito Internacional (2010, p. 164) afirma não haver, no Direito Internacional, a distinção entre penal ou civil, alegando que as sanções, embora muitas vezes sejam punições de crimes, não tem caráter de pena. Isso, porém, refere-se apenas à responsabilização dos Estados. A partir do momento em que se começa a discutir a responsabilização de indivíduos, o Direito Internacional Penal passa a ser possível.

Assim, pode-se dizer que o Direito Internacional Penal surgiu, como todo Direito, da necessidade de regular o comportamento humano. Mais especificamente da necessidade de impedir condutas de indivíduos que resultassem em danos catastróficos para a comunidade internacional. Utilizando-se do poder coercitivo da sanção e da punição de condutas codificadas como delituosas, objetivava-se assegurar, ainda que minimamente, a paz e a segurança em níveis internacionais ou, pelo menos, controlar as regras da guerra e atenuar seus efeitos.

De fato, no princípio a codificação do direito internacional penal dedicou-se a tipificação de crimes de guerra e ao desenvolvimento de um direito humanitário que visava, nos termos das Convenções de Genebra de 1854 e de São Petersburgo de 1868, “atenuar o mais possível as calamidades da guerra” através da conciliação entre as “necessidades da guerra com as leis da Humanidade”.

Atualmente, envolvendo não apenas crimes de guerra, mas toda sorte de ilícitos contra as relações internacionais e contra a humanidade, o Direito Internacional Penal designa um ramo do Direito Internacional Público que disciplina tanto os princípios e a produção normativa em matéria de crimes internacionais, quanto à atividade jurisdicional de punição desses crimes.

É importante mencionar que existe na doutrina uma diferenciação entre o significado atribuído à expressão “Direito Penal Internacional” em relação à expressão “Direito Penal Internacional”, pois essa se refere especificamente ao conjunto de normas internas de um Estado usado para resolver questões penais em âmbito internacional (NETO, 2008, p. 27).    

Deste modo, é fácil a conclusão de que o objeto de estudo do direito internacional penal em questão é, em última analise, a norma penal internacional.


2 RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL E RESPONSABILIDADE COLETIVA

Um indivíduo é juridicamente responsável por um ilícito quando a sanção é direcionada a ele. Porém, a lei pode estabelecer que a sanção seja dirigida contra o autor do delito ou contra indivíduos que não o tenham cometido.

Quando a sanção é dirigida contra um ou mais indivíduos que se encontram em determinada relação jurídica com o autor direto do ato, ou seja, quando indivíduos são responsabilizados por um ato ilícito, não por o terem cometido, mas por integrarem certo grupo – como, por exemplo, o Estado – a que pertence o verdadeiro autor do ilícito, tem-se a responsabilidade coletiva (KELSEN, 2010, p. 37, 38).

A responsabilidade internacional dos Estados tem caráter de responsabilidade coletiva, ainda que os delitos sejam sempre a conduta de um indivíduo. Isto porque estas condutas são interpretadas como atos de Estado, ou seja, ações e omissões atribuídas pela ordem jurídica nacional a uma pessoa que representa o Estado perante a ordem jurídica internacional, como, por exemplo, um chefe de Estado.

A esse respeito Kelsen (2011, p. 112) ensina que, as violações do Direito Internacional por atos de indivíduos, que não caracterizam atos de Estado, dividem-se em dois grupos: crimes de afetação internacional pelos quais o Estado ao qual pertence o autor é obrigado a punir; e atos cujos autores, ainda que não havendo previsão de punição por parte do Estado a que pertencem, devem ser punidos com base no Direito Internacional.

Assim, só se pode falar em responsabilidade individual quando a sanção por ilícito internacional for dirigida diretamente contra o delinquente, de modo que o individuo seja diretamente responsável por seu próprio delito.


3 TRIBUNAIS PENAIS INTERNACIONAIS

Se considerarmos que foi apenas a partir do século vinte, por influência das grandes guerras mundiais, que a responsabilização penal pela violação de normas internacionais começou a ser efetivamente estabelecida, poderemos afirmar que é bastante recente a criação de tribunais internacionais em âmbito penal.

No entanto, não se pode olvidar que, já uns séculos antes, havia na comunidade internacional a preocupação de punir crimes graves considerados de repercussão mundial. O primeiro tribunal internacional em matéria penal que se pode citar é o tribunal militar internacional de 1474, criado em Breisach, Alemanha, para julgar o cavaleiro Peter Von Hagenbusch, acusado de violar as leis de deus e praticar atos desumanos.

Para José Cretella Neto (2008, p. 174) os tribunais penais internacionais criados ad hoc logo após a 2ª Guerra Mundial, como por exemplo, o de Nuremberg e o de Tóquio, são considerados de primeira geração[1]. Antes disto, porém, o artigo 227 do Tratado de Paz de Versalhes, que embora nunca tenha sido executado, já previa a responsabilização do imperador alemão Guilherme II por crimes cometidos durante a 1ª Guerra Mundial. Dizia:

As potências Aliadas e Associadas citam publicamente Guilherme II de Hohenzollern, ex-imperador da Alemanha, por uma ofensa suprema contra a moral internacional e a sacralidade dos tratados. Um tribunal especial será constituído para julgar o acusado, assegurando-lhe desse modo as garantias essenciais ao direito de defesa. O tribunal será composto de cinco juízes, cada um indicado por uma das seguintes potências, a saber: os Estados Unidos da América, a Grã-Bretanha, a França, a Itália e o Japão (in.: KELSEN, 2011, p. 81-82).

Ao fazer isso, a norma deste artigo impunha responsabilidade penal retroativa a um individuo por violações do Direito Internacional. No entanto, a responsabilização prevista no artigo 227, referia-se especificamente a violações cometidas pelo imperador na condição de órgão do Estado, de modo que, em última análise, estabelecia apenas a responsabilidade do Estado, resultando em uma responsabilidade coletiva e não propriamente individual. Ainda assim, o tratado de Versalhes criou o primeiro abalo à soberania estatal, abrindo caminho para os avanços posteriores.

A criação pelo Conselho de Segurança da ONU na década de 90 dos tribunais penais internacionais ad hoc para a ex-Iugoslávia e para Ruanda marca a 2º Geração dos tribunais penais internacionais. A finalidade destes dois tribunais é, de um modo geral, julgar acusados de cometer graves violações ao Direito Internacional Humanitário.

O tribunal penal internacional para a ex-Iugoslávia é competente para julgar graves violações das Convenções de Genebra de 1949, violações de leis e costumes da guerra, genocídios e crimes contra a Humanidade cometidos no território da antiga Iugoslávia. Por sua vez, o tribunal penal internacional para Ruanda, é competente para julgar crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos no território da Ruanda contra cidadãos ruandeses entre 1º de janeiro de 1994 e 31 de dezembro do mesmo ano, período em que ocorreu o massacre de mais de oitocentos mil pessoas (NETO, 2008, p. 185 -192).

A opção de submeter tais julgamentos a órgãos internacionais e não a tribunais nacionais se justifica no fato de que a magnitude de tais crimes transcendia as fronteiras dos países atingidos, constituindo verdadeira ameaça a humanidade, representando violações não apenas às normas internas dos Estados, mas também às normas de Direito Internacional.

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Frente a isso, apenas um tribunal internacional – internacional em relação a sua base jurídica e também no que se refere a sua composição – pode estar acima de qualquer suspeição de parcialidade. E ainda, como bem menciona Kelsen (2011, p. 104), a internacionalização do processo judicial traz a grande vantagem de, de certa forma, uniformizar as penas, evitando decisões conflitantes e penas variadas.

Ademais, aumentou-se por parte da sociedade internacional a pressão para que se criasse um sistema judiciário em matéria penal mais efetivo e permanente. Esse anseio veio a culminar, apenas já no século vinte e um, na aprovação do Estatuto de Roma, instituidor do primeiro tribunal internacional independente e permanente, o Tribunal Penal Internacional – TPI, marcando a 3ª Geração de tribunais penais internacionais. (NETO, 2008, p. 200).

Os objetivos e princípios que nortearam os acordos políticos para a criação do TPI encontram-se, de forma solene, no preâmbulo do Estatuto de Roma, do qual se destacam os seguintes trechos:

[...]

Afirmando que os crimes de maior gravidade, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto, não devem ficar impunes e que a sua repressão deve ser efetivamente assegurada através da adoção de medidas em nível nacional e do reforço da cooperação internacional,

Decididos a por fim à impunidade dos autores desses crimes e a contribuir assim para a prevenção de tais crimes,

[...]

Determinados em perseguir este objetivo e no interesse das gerações presentes e vindouras, a criar um Tribunal Penal Internacional com caráter permanente e independente, no âmbito do sistema das Nações Unidas, e com jurisdição sobre os crimes de maior gravidade que afetem a comunidade internacional no seu conjunto,

Sublinhando que o Tribunal Penal Internacional, criado pelo presente Estatuto, será complementar às jurisdições penais nacionais,

[...].

Observa-se que o TPI foi idealizado como um tribunal internacional de caráter permanente e independente, não sendo vinculado a qualquer órgão governamental, capaz de julgar não apenas pessoas que agem como representantes de Estado, mas todos aqueles que cometem ou ordenam que sejam cometidos os crimes internacionais tipificados no Estatuto.

Suas competências, no entanto, são limitadas em razão da matéria, restringindo-se aos crimes considerados mais graves, que afetam a comunidade internacional em sua totalidade, quais sejam: o crime de genocídio; crimes contra a humanidade; crimes de guerra e o crime de agressão, definidos nos artigos 6º a 8º do Estatuto, sendo que com relação ao crime de agressão (não definido) deverá ser aprovada uma disposição acerca de sua definição, delimitando a competência do Tribunal de forma compatível com a Carta da ONU.

Outro limitativo à jurisdição do TPI está no fato de que só poderá agir de forma complementar à jurisdição nacional dos Estados, ou seja, é competente apenas nos casos em que o Estado competente tenha, de alguma forma, negligenciado ou interrompido o processo, afastando sua jurisdição.

De acordo com Neto (2008, p. 220) essa limitação pode trazer consequências negativas, pois imagine-se, nesse sentido, que é possível que o TPI necessite, para julgar um Estado em que membros do governo são acusados de cometer os crimes previstos no Estatuto contra sua própria população, de autorização do mesmo Estado, que por sua vez terá o direito de negá-la tomando para si a jurisdição.

   De qualquer modo, pode-se afirmar que a característica mais importante do TPI e que marca um verdadeiro avanço no desenvolvimento de tribunais internacionais, é a independência, traduzindo imparcialidade e garantindo (ao menos em tese) que os poderes concedidos a tal órgão serão usados somente para a manutenção do direito.

Afinal, como afirma Kelsen (2011, p. 45), mesmo se a decisão de um tribunal internacional não constitua a aplicação estrita de uma norma jurídica preexistente, presume-se que pelo menos seja fundamentada na “ideia do Direito”, ou seja, em uma norma que, embora ainda não positivada no Direito, deve, de acordo com a convicção de juízes independentes, transformar-se em Direito e se tornar Direito positivo para o caso solucionado pela decisão judicial específica.


CONSIDERAÇÕES FINAIS                       

As análises até aqui feitas permitem verificar o avanço obtido em âmbito internacional na repressão aos crimes, com medidas jurídicas que não apenas visam combater a impunidade, mas resolver tais problemas de forma pacífica. Nesse caminho, a instituição de tribunais competentes para resolver casos em que os ordenamentos nacionais são incapazes ou insuficientes abriu espaço para o progressivo desenvolvimento da competência jurisdicional do Direito Internacional.

Outrossim, as limitações sempre existentes a essa competência demonstram o quanto ainda é deficiente a cooperação internacional, que de uma forma ou outra sempre continua apegada exageradamente à soberania estatal, dificultando a atuação e progresso de órgãos supranacionais.

Observa-se assim que, embora importante, não basta que a opinião pública seja favorável à criação de órgãos internacionais para a manutenção da paz. É preciso que haja a aquiescência de todos os governos que anseiam esse propósito.

Talvez, por suas atividades imparciais, o TPI possa contribuir nesse sentido, ganhando a confiança dos governos, encorajando-os não apenas a aderir ao Tratado de Roma, mas ampliar suas competências e, quem sabe, avançar decisivamente para a consolidação de um verdadeiro judiciário internacional.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KELSEN, Hans. A paz pelo direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

KELSEN, Hans. Princípios do direito internacional. Ijuí: Editora Unijuí, 2010.

NETO, José Cretella. Curso de direito internacional penal. Ijuí: Editora Unijuí, 2008.


Nota

[1] José Cretella Neto classifica o desenvolvimento dos tribunais penais internacionais em “gerações” distintas, com a finalidade de delimitar o espaço-tempo em que foram estabelecidos e o avanço que representaram, de forma a contribuir para a sistematização da compreensão.

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Sobre a autora
Tamires de Lima de Oliveira

Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do RS - UNIJUI; bolsista de Iniciação Científica - PIBIC/CNPQ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Tamires Lima. Tribunais penais internacionais e a responsabilização individual por crimes internacionais na doutrina de Hans Kelsen e José Crettella Neto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4048, 1 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30518. Acesso em: 22 dez. 2024.

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