Fundamentos de exigência da repercussão geral no recurso extraordinário

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11/08/2014 às 14:33
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Como meio de solucionar a "crise do Supremo Tribunal Federal", a Emenda Constitucional nº45 de 2004 introduziu através do §3º, inciso III, do artigo 102 da Constituição Federal, o instituto da repercussão geral.

1.1 FUNÇÃO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Num primeiro momento, cabe esclarecer o propósito para qual foram criados os tribunais superiores, para assim compreendermos melhor sua competência e as hipóteses de cabimento recursal em vigência no Estado Democrático de Direitos, concebido pela Constituição Federal de 1988.

Os tribunais superiores se originaram através do modelo dos tribunais de cassação, criados em decorrência da Revolução Francesa, tendo como embasamento a separação dos poderes, com fundamento nos princípios da supremacia da lei e do Poder Legislativo.[1] O preceito fundamental dos tribunais de cassação, era garantir a "verdadeira vontade de lei", mantendo o sentido real da lei, de forma que pudesse desenvolver a estabilização do Direito.[2]

Porém, compreendeu-se que a atividade judicial não se limitava somente a essa função, desta forma, aos tribunais superiores foram empregadas outras atribuições, como à uniformização da jurisprudência, para fins de promover a defesa e dar unidade ao Direito aos demais órgãos jurisdicionais.[3]

Buscou-se com a previsão de um tribunal superior, a isonomia do Direito - o tratamento igualitário nas decisões independente de território - proveniente do Poder Judiciário, de modo à aumentar a segurança jurídica dos cidadãos, tendo em vista as diferentes soluções que eram proferidas pelos tribunais e juízes.[4]

Aos tribunais superiores vincula-se a função nomofilácica, ou seja, os tribunais tem o dever de zelar pela interpretação e aplicação do direito de maneira uniforme.[5] Dessa forma, corrobora Daniel Mitidiero:

A função da Corte Suprema, portanto, está em promover a unidade do Direito mediante a sua adequada interpretação. Como, de  um lado, a interpretação jurídica pode dar lugar a uma multiplicidade de significados, e como, de outro, o Direito encontra-se sujeito à cultura,a unidade do Direito que a Corte Suprema visa a promover tem duas direções distintas: essa é tanto retrospectiva como prospectiva. Vale dizer: a Corte Suprema visa à promoção da unidade do Direito tanto para resolver uma questão jurídica de interpretação controvertida nos tribunais como para desenvolver o Direito diante das novas necessidades sociais, outorgando adequada solução para questões jurídicas novas.[6]

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal foi instituído através dos Decretos 510 e 848 de 1890[7] - sucedendo o Supremo Tribunal de Justiça, que por consequência veio a substituir pela Casa de Suplicação do Brasil[8] -  onde foram estabelecidas suas responsabilidades e competência.

A Constituição de 1891 recepcionou o Decreto 848 de 1890, inserindo ao texto constitucional  o Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário. A Constituição de 1934, alterou a nomenclatura do tribunal para "Corte Suprema", e através da Carta Magna de 1937 foi restaurada a nomenclatura original. Após o período ditatorial, com a restauração da democracia no país, entrou em vigor a Constituição de 1988, onde ressaltou explicitamente as funções e competência do STF e veio a criar o Superior Tribunal de Justiça.

Aos tribunais superiores compete a análise e interpretação da questão federal e constitucional do Direito, a fim de promover a unidade do direito. Para o exercício tais funções, o Supremo Tribunal Federal conta com a presença de onze Ministros, e o Superior Tribunal de Justiça com, no mínimo, trinta e três Ministros, que devem apresentar notável saber jurídico e reputação ilibada. Os Ministros são nomeados pelo Presidente da República, e aprovados pela maioria absoluta do Senado Federal.[9]

No âmbito da competência, desde o primeiro momento, através do Decreto 848 de 1890, foi atribuída ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição Federal, que atualmente é regida pelo artigo caput do artigo 102 da Carta Magna. Tamanha destreza de tal função,  vislumbra-se que compete à Constituição Federal o papel unificador do Direito, ou seja, é função do Supremo Tribunal Federal como órgão "guardião" o exercício da unificação do Direito, de maneira a estabilizá-lo no dia-a-dia.[10]

Nesse sentindo, acrescentam Sérgio Gilberto Porto e Daniel Ustárroz:

Enfim, o Supremo Tribunal Federal, órgão fundamental para a adequação do sistema de freios e contrapesos entre os Poderes da República, acompanhou de perto o amadurecimento brasileiro, refletindo em muitos de seus julgados o contexto histórico do país.[11]

Desta forma, para melhor desempenho das suas funções, aos tribunais superiores devem ser encaminhadas questões relevantes, que sejam proeminentes para a sociedade brasileira como um todo. Assim, elucida Guilherme Beux Nassif Azem:

Realmente, desponta natural e lógica a impossibilidade de os tribunais superiores se encarregarem da resolução de questões pontuais, impertinentes, ou que interessem tão-somente às partes do processo. Sua atuação há que se circunscrever  aos temas de verdadeira importância, que afetem o tecido social, assim como aos princípios e valores que sirvam de suporte econômico, cultural, ético e institucional do povo.[12]

           

Anteriormente era questionado se o Supremo Tribunal Federal deveria analisar todas as demandas que lhe fossem apresentadas ou somente aquelas que tivessem maior relevância para ordenamento jurídico. Atualmente tem-se um maior entendimento que o tribunal superior deve julgar causas que tenham interesse geral para a sociedade, e o que fundamenta essas causas, é o interesse na unidade do Direito.[13]

Ademais, revela-se também uma função política aos tribunais superiores. Essa atribuição conecta-se ao fato de que os tribunais são órgãos judiciais que exercem o poder do Estado, e o poder do Estado não deixa de ser o poder político, de forma que os tribunais superiores intervêm em questões estatais essenciais,  visando ao bem estar social, fazendo observância às garantias e normas constitucionais.[14]

O Supremo Tribunal Federal, ao longo dos anos vem desenvolvendo tais funções, em atendimento a sua função maior, "guardião" da Constituição. Todavia no decorrer desta trajetória, deparou-se com uma dificuldade que, ainda hoje, toma grandes proporções no poder judiciário, a sobrecarga do sistema recursal.

Passa-se ao estudo do recurso extraordinário, que é o meio pelo qual o Supremo Tribunal Federal primordialmente assegura a interpretação e a correta aplicação da Constituição Federal.

1.2 RECURSO EXTRAORDINÁRIO

1.2.1 Origem do recurso extraordinário

Os legisladores, em meados à Proclamação da República, introduziram ao ordenamento jurídico brasileiro - seguindo o modelo norte-americano writ of error - o recurso extraordinário.

O modelo writ of error vigia nos Estados Unidos desde 1787, garantindo seu segmento através da organização da Federação, quando seu objetivo central era promover a unidade do Direito e à defesa Constituição.[15]

Nesse sentido, explana Araken de Assis:

O recurso extraordinário despontou no cenário brasileiro no prelúdio da República. A criação desse meio de impugnação se baseou em dois modelos bem discerníveis. Em primeiro lugar, o writ of error norte

americano, posteriormente designado de writ of appeal e, desde 1928, praticamente abandonado, remédio instituído pelo Judiciary Act de 1789. Essa lei alargou a competência recursal da Suprema Corte, permitindo a revisão dos pronunciamentos finais dos tribunais dos Estados-membros para garantir a supremacia da Constituição e das leis federais. O acesso à Suprema Corte hoje, realiza-se por intermédio do writ of certiorari. E, ademais, fitou-se atentamente o modelo consagrado no polo de atração da política externa do Império brasileiro, a permanente rival República Argentina, e a ‘apelação’ – posteriormente também designada de recurso extraordinário – para a respectiva Corte Suprema, cabível contra sentenças definitivas dos tribunais superiores das províncias [...]. A Constituição do Império, de 1824, desconhecia remédio similar ao recurso extraordinário. O art. 164, III, daquela Carta recepcionou das Ordenações Filipinas (Livro 3, Título 95) o venerando recurso de revista, cujo julgamento tocava ao Supremo Tribunal de Justiça [...]. [16]

A República tinha como objetivo, garantir a supremacia da Constituição e a positivação do direito, desta forma, através do Decreto 848 de 1890, atribuiu ao Supremo Tribunal Federal a organização da justiça federal, inspirado no modelo norte-americano.[17]

O modelo norte-americano, tinha como fundamento o controle difuso, onde todos os membros do Poder Judiciário exerciam a análise da constitucionalidade das normas aplicadas. Ainda assim, o sistema adotado constitucionalmente, também tem como base a doutrina provinda da Áustria, que vem "com a ideia da criação de uma Corte com a precípua competência de apreciar a legitimidade constitucional dos provimentos estatais."[18]

Demonstra-se que, no Brasil, há influência de diferentes doutrinas consagrando no nosso sistema um modelo misto, no qual admite-se a ideia de controle difuso, exercido por todos os membros do Poder Judiciário, e ainda o controle concentrado, exercido pelo Supremo Tribunal Federal e pelos Tribunais Estaduais.

Inspirada nesses modelos, a partir da redação do Decreto 848 de 1890, a Constituição Federal de 1891 adotou o recurso extraordinário em seu texto, atribuindo sua competência ao Supremo Tribunal Federal. O recurso extraordinário foi nomeado através do artigo 33, §4º do Regimento Interno do STF de 1891, posteriormente a nomenclatura  do recurso apareceu também no Decreto 3084 de 1898.       

Assim, criou-se o recurso para a Corte Suprema, que tem por base os objetivos iniciais de sua criação, a garantia da supremacia da Constituição e a uniformização do Direito. [19]     

Com o decorrer do tempo e a vinda das novas Constituições, foram sendo alteradas as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, e moldadas conforme as necessidades sociais, dando maior abrangência ao recurso.

1.2.2 Evolução histórica e as hipóteses de cabimento

A partir da obras de Araken de Assis e Osmar Mendes Paixão Côrtes, vislumbra-se a evolução histórica do recurso extraordinário, suas modificações desde sua instituição até os dias atuais. Primeiramente, a Constituição de 1891 por meio do artigo 59, estabeleceu como hipótese de cabimento do recurso extraordinário, decisões contra sentenças das Justiças dos Estados:

a) quando se questionar sobre a validade ou a aplicação de tratados e leis federais, e  a decisão do Tribunal do Estado for contra ela; b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.[20]

           

Todavia, a Lei 221 de 1894 através do artigo 24, trouxe ao ordenamento novamente a redação do Decreto 848 de 1890:

O Supremo Tribunal Federal julgará os recursos extraordinarios das sentenças dos tribunaes dos Estados ou do Districto Federal nos casos expressos nos arts. 59 § 1º e 61 da Constituição e no art. 9º paragrapho unico, lettra (c) do decreto nº 848 de 1890, pelo modo estabelecido nos arts. 99 a 102 do seu regimento interno, mas em todo caso a sentença do tribunal, quer confirme, quer reforme a decisão recorrida, será restricta á questão federal controvertida no recurso sem estender-se a qualquer outra, por ventura, comprehendida no julgado.[21]

           

Com o advento da Emenda Constitucional de 03 de setembro de 1926, houve uma ampliação nas hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, alterando o artigo 59 da Constituição de 1891, na seguinte forma:

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a) quando se questionar sobre a vigencia ou a validade das leis federaes em face da Constituição e a decisão do Tribunal do Estado lhes negar applicação; b) quando se contestar a validade de leis ou actos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federaes, e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos esses actos, ou essas leis impugnadas; c) quando dous ou mais tribunaes locaes interpretarem de modo differente a mesma lei federal, podendo o recurso ser tambem interposto por qualquer dos tribunaes referidos ou pelo procurador geral da Republica;          d) quando se tratar de questões de direito criminal ou civil internacional. [22]

           

Posteriormente, com a Constituição de 1934, veio na redação do artigo 76, a nomeação constitucional do recurso, embora já reconhecida na legislação:

Art. 76. III - em recurso extraordinário, as causas decididas pelas Justiças locais em única ou última instância:

a) quando a decisão for contra literal disposição de tratado ou lei federal, sobre cuja aplicação se haja questionado; b) quando se questionar sobre a vigência ou validade de lei federal em face da Constituição, e a decisão do Tribunal local negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato dos Governos locais em face da Constituição, ou de lei federal, e a decisão do Tribunal local julgar válido o ato ou a lei impugnada; d) quando ocorrer diversidade de interpretação definitiva da lei federal entre Cortes de Apelação de Estados diferentes, inclusive do Distrito Federal ou dos Territórios, ou entre um deste Tribunais e a Corte Suprema, ou outro Tribunal federal.[23]

A Constituição de 1937, não trouxe inovações nas hipóteses de cabimento, alterou o texto da alínea "a" de  "quando a decisão for contra literal disposição de tratado ou lei federal" para "quando a decisão for contra a letra de tratado ou lei federal".[24]

Entretanto, com a vinda da Constituição de 1946, houve uma significativa alteração na alínea "a" do artigo 101, inciso III. Foi suprimida a exigência de que se haja "questionado" sobre a lei ou tratado federal, constando apenas na alínea "quando a decisão for contrária a dispositivo desta Constituição ou à letra de tratado ou lei federal".[25] O que ascendeu  ao alvo de críticas e algumas divergências jurisprudenciais, que foram sanadas pela súmula 282 do STF, segundo a qual "é inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada."

Quatro hipóteses de cabimento foram consideradas pelo artigo 114, inciso III, da Constituição de 1967, alterando as previamente estabelecidas:

Art. 114. III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas, em única ou última instância, por outros Tribunais ou Juízes, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição ou negar vigência a tratado ou lei federal; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato do Governo local, contestado em face da Constituição ou de lei federal; d) dar à lei interpretação divergente da que lhe haja dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal Federal.[26]

Cabe salientar que, o Ato Institucional nº6 de 1969, alterou a redação do artigo supracitado, e substituiu a expressão "tribunais e juízes" por somente "tribunais", o que suscitou a súmula 527 do STF "após a vigência do ato institucional 6, que deu nova redação ao art. 114, iii, da constituição federal de 1967, não cabe recurso extraordinário das decisões do juiz singular."

Pode-se dizer que umas das maiores inovações do recurso extraordinário, surgiram com a Constituição de 1988, limitando a competência do Supremo Tribunal Federal, como esclarece Araken de Assis:

A evolução do recurso extraordinário culminou na CF/1988. Ficou o recurso limitado às questões constitucionais. É o remédio que se situa no ápice do controle difuso de constitucionalidade. Para julgar questões federais, desafogando o assoberbado STF, a CF/1988 criou o STJ, e o recurso especial.

Atualmente, o artigo 102 da Constituição vigente - com redação já alterada pela Emenda Constitucional 45 de 2004 - prevê quatro hipóteses de cabimento ao recurso extraordinário, a serem julgadas pelo STF:

Art. 102. III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.

d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.[27]

Demonstra-se que para interposição do recurso extraordinário, numa das hipóteses previstas no artigo mencionado, devem estar presentes, além dos requisitos de forma, os requisitos de admissibilidade que necessariamente devem ser preenchidos.

Em análise as atuais hipóteses de cabimento, lecionam Luis Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart:

Vale dizer que a finalidades desses recursos é assegurar que a lei federal e a Constituição Federal - por serem normas que devem ter o mesmo teor e a mesma aplicabilidade em todo o território nacional e para todas as causas -, sejam corretamente aplicadas e interpretadas por todos os tribunais e juízes do país.[28]

Dessa forma, entende-se que incumbe ao recurso extraordinário assegurar que não haja contrariedade à Constituição, e que as leis inferiores sejam fiéis ao texto constitucional.[29]

O recurso extraordinário é meio pelo qual a controvérsia da questão constitucional pode ser debatida. Ao longo dos anos, este recurso foi historicamente evoluindo, e com isso, as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário sofreram diversas modificações, fazendo com que o recurso ganhasse um novo perfil com a atual redação constitucional.

Em decorrência à inúmeras transições no ordenamento jurídico e, nas diversas funções atribuídas aos tribunais superiores, houve uma sobrecarga no sistema recursal, e um grande acúmulo no julgamento do recursos.

Passa-se a compreensão do significativo crescimento no volume de recursos que, ensejaram a chamada "crise do Supremo Tribunal Federal", fazendo com que a Corte recorresse a institutos que vislumbrassem a solução para este déficit recursal.

1.3 SOBRECARGA DE RECURSOS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A amplitude do rol de atribuições competidas ao Supremo Tribunal Federal, reflete no vasto número de processos que a ele são conduzidos, o que acabou apresentando dados um tanto quanto preocupantes.

Em observância ao relatório estatístico de movimentação processual do STF, verifica-se um crescimento exacerbado no número de processos distribuídos e processos julgados pelo tribunal. Comparando as datas do ano de 1940 - foram distribuídos 2.211 processos para 1.807 processos julgados - ao ano de 2006 - foram distribuídos 116.216 para 110.284 processo julgados.[30]

Desta forma destaca Ovídio Baptista:

A revisão de nosso sistema recursal que, a nosso ver, tornou-se um imperativo inadiável no atual processo civil brasileiro, tanto para as instâncias ordinárias quanto para os tribunais de direito estrito, exige que se tenha presente que as Cortes Supremas não são infalíveis e cometem igualmente injustiças, como os homens e suas organizações políticas e sociais haverão de cometê-las sempre. E não é apenas bom, mas indispensável, que as Cortes Supremas cometam, vezes por outras, injustiças, ou que, aos olhos do sucumbente, sejam suas decisões eventualmente injustas. [31]

Em decorrência ao excessivo número de processos, o Supremo Tribunal Federal vem desenvolvendo ao longo dos anos uma crise, devido a discrepância entre o número de processos que chegam e o número de processo que esperam julgamento. Merece atenção que um dos fatores que contribuíram para o acúmulo de processos, foram as numerosas causas sem relevância social que chegaram  ao Pretório Excelso.

Nesse sentido, destaca José Carlos Barbosa Moreira:

Em mais de um país tem-se feito sentir o problema do acúmulo de trabalho nas Cortes Supremas. O grande número de litígios que lhes chegam, sobretudo por via recursal, é fator importante de retardamento do desfecho dos pleitos. Ademais, a considerável variedade dos temas suscitados pode desviar a atenção dos juízes para assuntos menores, com prejuízo da respectiva concentração nas questões de mais relevância.[32]

Com a Constituição Federal de 1988, um amplo acesso a justiça foi garantido aos cidadãos do país e facilitou a procura ao poder judiciário, o que de certa forma, aumentou o índice de demandas, também levando a morosidade das ações em curso.[33]

Através de diversas medidas de contenção que foram implementadas ao longo desses anos, houve redução na carga processual, no entanto não foi o bastante.

Sendo assim, foram necessárias algumas mudanças no ordenamento com o intuito de "desafogar" o Supremo Tribunal Federal. Com o advento da Constituição Federal de 1988, foi retirada do Supremo Tribunal Federal a função de pacificação do ordenamento infraconstitucional federal e atribuída ao Superior Tribunal de Justiça - também criado pela Constituição de 1988 - o que deveria reduzir sua obrigação jurisdicional. [34]

Nesse sentido, elucida Leonardo Lambertucci:

Mesmo com a criação do STJ, o volume de trabalho continuou revelando seus sinais, não se limitando ao STF e, sim abarcando os diversos órgãos do Poder Judiciário, que estão assoberbados de processos, dificultando uma prestação jurisdicional que seja efetiva e em tempo razoável. E a tendência é que o número de processos continue crescendo de acordo com o crescimento populacional. Além disso, os direitos de terceira dimensão, como o direito à paz, ao meio - ambiente, ao patrimônio comum da humanidade, à comunicação; e os direitos de quarta dimensão defendido por alguns doutrinadores como o direito à informação, pluralismo político, democracia, direitos genéticos e de biotecnologias, desdobram-se em novos litígios. [35]

           

Entretanto, com tal medida apenas, não houve a estabilidade necessária na movimentação processual do Supremo Tribunal Federal. Após inúmeras discussões parlamentares a respeito do tema, houve a tão esperada reforma do judiciário, advinda com Emenda Constitucional 45 de 2004.

A Emenda Constitucional fez alterações na competência do Supremo Tribunal Federal, v.g., o artigo 102 da Constituição Federal, revogou a alínea "h" do inciso I, onde tratava da a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias, passando sua atribuição ao Superior Tribunal de Justiça; acrescentou a alínea "d" no inciso III, onde prevê a possibilidade de julgar válida lei local contestada em face de lei federal; modificou a redação o §2º onde atualmente diz que as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal; e incluiu o §3º no artigo 102, onde diz  que no recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros, alterando o exame de admissibilidade do recurso extraordinário.[36]

Talvez, numa das maiores tentativas de redução no sistema recursal, foi introduzida a exigência da repercussão geral como  mecanismo de admissão do recurso extraordinário. Assim, elucida Humberto Theodoro Júnior:

Ainda em relação ao Recurso Extraordinário, uma grande inovação foi introduzida, pelo §3º do art. 102, acrescido pela Emenda nº 45. Trata-se da possibilidade de o STF, no juízo preliminar de admissibilidade, não conhecer do recurso por não ter a parte demonstrado "a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei". Sob nova roupagem linguística ressuscitou-se a antiga questão de relevância, como argumento de bloqueio do acesso ao recurso extraordinário. [...][37]

           

Cabe analisar se entre tantas possibilidades de reforma nas demandas judiciais, a introdução da repercussão geral no artigo no §3º no artigo 102 da Constituição Federal, e nos artigos 543-A e 543-B do Código de Processo Civil, foi a melhor solução para esse dilema.

1.4 REPERCUSSÃO GERAL COMO SOLUÇÃO

           

A repercussão geral surgiu através da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, onde alterou o artigo 102 da Constituição Federal, e trouxe o instituto como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário em seu §3º, posteriormente teve sua regulamentação através da Lei nº 11.418/2006 e pela Emenda Regimental nº 21/2007 do STF:

No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.

Demonstra-se vago o conceito de repercussão geral, a lei que regulamenta o instituto cita apenas que "para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa". [38]

Dessa forma, complementam José Miguel Garcia  Medina e Teresa Arruda Alvim Wambier:

As questões relevantes, por ultrapassarem "os interesses subjetivos da causa", podem, a nosso ver, ser assim exemplificadas: a) relevância econômica, como aquelas que se vê em ações que discutem, por exemplo, o sistema financeiro da habitação ou a privatização de serviços públicos essenciais, como a telefonia, o saneamento básico, a infra-estrutura etc.; b) relvância política, quando, por exemplo, de uma causa possa emergir decisão capaz de influenciar relações com Estados estrangeiros ou organismos internacionais; c) relevância social há numa ação em que se discutem problemas relativos à escola, à moradia, à saúde ou mesmo à legitimidade do MP para a propositura de certas ações; d) relevância jurídica no sentido estrito existe, por exemplo, quando esteja em jogo o conceito ou a noção de um instituto básico do nosso direito, de molde a que aquela decisão, se subsistir, possa significar perigoso e relevante precedente, como, por exemplo, a de direito adquirido.[39]

Apesar de termos essa noção de repercussão geral, não há um conceito ao certo do que trata o instituto, incumbe ao Supremo Tribunal Federal tracejar suas linhas através da jurisprudência.

A repercussão geral veio como instrumento de controle, haja vista o grandioso número de recursos remetidos ao Supremo Tribunal Federal, se mostrou necessário o reconhecimento de um instituto que devolvesse ao órgão o caráter extraordinário, que já havia sido banalizado como novo tribunal de recursos.[40]

O intuito da demonstração da repercussão geral da questão constitucional, prende-se ao fato de que questões de menor relevância, que não obtinham maior interesse social, além das partes interessadas, eram submetidas ao crivo da Corte Suprema.

O instituto da repercussão geral, vem com a noção de interesse público, ou seja, transcende o campo do interesse individual, desta forma o Supremo Tribunal Federal tem a parcimônia de analisar caso a caso qual o recurso - que tenha preenchido os requistos de admissibilidade - merece apreciação do mérito.

Ao Pretório Excelso incumbe não somente a defesa da Constituição, mas também a defesa da sociedade e a garantia do exercício da democracia. Vislumbra-se assim, o motivo pelo qual adveio ao legislador a iniciativa de implementar um mecanismo que fosse utilizado como instrumento de  controle: o impedimento de causas cotidianas transcenderem juízes e tribunais e chegarem ao STF.

Também deve ser ressaltado, como dito anteriormente, que um dos fundamentos que embasou a introdução da repercussão geral no ordenamento jurídico, foi devolver ao Supremo Tribunal Federal o perfil constitucional para o qual foi criado: corte extraordinária. Reforçando a ideia que o Pretório Excelso se destina ao julgamento de casos excepcionais e não a conflitos cotidianos, sem maior relevância prática.[41]

De fato, incumbe ao Supremo o julgamento de questões de ordem constitucional, e a repercussão geral surge como meio de conter o caos do sistema recursal, como elucidam Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero:

Resguardam-se, dessarte, a um só tempo, dois interesses: o interesse das partes na realização de processos jurisdicionais em tempo justo e o interesse da Justiça no exame de casos pelo Supremo Tribunal Federal apenas quando essa apreciação mostrar-se imprescindível para realização dos fins a que se dedica a alcançar a sociedade brasileira.[42]

Evidencia-se que, a partir do momento em que o instituto da repercussão geral entrou efetivamente no ordenamento jurídico - através da Emenda Regimental nº 21/2007 do STF - houve redução no número de processos que eram submetidos a Corte. Comparando as datas do ano de 2007 - foram distribuídos 112.938 processos para 159.522 processos julgados - ao ano de 2012 - foram distribuídos 46.392 para 87.784 processo julgados.

A questão que se contrapõe é que havia anteriormente no ordenamento um instituto semelhante ao da repercussão geral, a chamada arguição de relevância, sendo essa suprimida com a redação da Constituição Federal de 1988. Cabe analisar o motivo pelo qual foi introduzida a repercussão geral e extinta a arguição de relevância, suas diferenças e se com essa modificação os óbices recursais foram supridos.

1.4.1 Repercussão geral e arguição de relevância

Anteriormente ao advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, já existia no ordenamento jurídico brasileiro o requisito da arguição de relevância. A arguição de relevância surgiu através do artigo 119 da Constituição de 1967 - com redação alterada pela Emenda Constitucional nº 1 de 1969 - e a matéria também foi disciplinada pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

Nesse contexto, em 1977 surgiu a Emenda Constitucional nº7, que inseriu ao texto constitucional expressamente o instituto como "relevância da questão federal".

O Supremo Tribunal Federal através do artigo 325 do Regimento Interno, taxou hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, e aparece no inciso XI a expressão "em todos os demais feitos, quando reconhecida a relevância da questão federal."

Portanto, vislumbra-se que o Supremo Tribunal Federal possuía competência para limitar a admissibilidade dos recursos extraordinários nas hipóteses elencadas no artigo 119 da Constituição de 1967.

O conceito de arguição relevância ainda era vago, mesmo com o texto do artigo 327 do Regimento Interno do STF, que esboçou algumas linhas sobre qual era o entendimento a respeito do instituto:

Art. 327 - Ao Supremo Tribunal Federal, em sessão de Conselho, compete privativamente o exame da argüição de relevância da questão federal.

§ 1º Entende-se relevante a questão federal que, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal.

Apesar de que os institutos, num primeiro momento, se assemelham, parte da doutrina considera a repercussão geral como um retorno da arguição de relevância, todavia alguns doutrinadores entendem que são institutos bem diferenciados.

Vislumbra-se algumas das diferenças de funcionalidade dos institutos, como a própria nomenclatura prevê, um dos institutos está precisamente ligado a questão da relevância constitucional, já o outro  assume um caráter além da questão constitucional, se tornando um requisito obrigatório no recurso extraordinário como forma de exclusão do mesmo.[43]

Na lição de Guilherme Beux Nassif Azem:

No que toca seu procedimento, a arguição de relevância da questão processava-se por instrumento e possuía registro autônomo. Seu exame competia privativamente ao STF, em sessão de Conselho. O tribunal de origem não detinha o juízo de admissibilidade da arguição. Do despacho que indeferisse o processamento da arguição de relevância, caberia agravo de instrumento. A arguição seria acolhida quando, nesse sentido, se manifestassem quatro ou mais ministros. A decisão do Conselho era, em qualquer caso, irrecorrível. Tratava-se de ato essencial, prévio à possibilidade de admissão jurisdicional do recurso extraordinário. Acolhida, era comunicado o Presidente do Tribunal de origem, para que fizesse processar o recurso extraordinário, embora não implicasse o seu ulterior conhecimento, pela Turma ou pelo Plenário.[44]

Ambos institutos surgiram como medida de contenção processual, e o que assemelha tais institutos, é a falta de clareza na sua definição, apesar dos esforços doutrinários para elucidá-los.

A arguição de relevância, assim como a repercussão geral, era considerada uma espécie de filtro recursal, que impedia causas de menor relevância social  chegarem ao Pretório Excelso.[45]

Uma das diferenças que apresenta a repercussão geral - que há muito vinha sendo criticada na arguição de relevância - é a necessidade de motivação na sua apreciação, peculiaridade trazida pelo artigo 93, inciso IX da Constituição Federal de 1988, onde explana que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões.[46]

Analisando os institutos, conclui-se que por mais superficialmente se pareçam, seus fundamentos são distintos, sendo assim merecem alguns apontamentos: a repercussão geral visa a relevância da questão constitucional, já a arguição de relevância incidia sobre a questão federal; a repercussão geral é um requisito de admissibilidade exigido a todo recurso extraordinário, diferente do que ocorria com a arguição de relevância; para a aprovação da relevância era necessário o voto de quatro ministro, já na repercussão geral exigisse voto de dois terços dos ministros do STF; a apreciação da arguição de relevância se dava em sessão secreta, o que se diferencia na repercussão geral, como visto anteriormente.[47]

Em breves linhas, demonstra-se o quão distintos são os institutos, de forma que um justifica a inexistência do outro, com a introdução de uma Constituição democrática, se fez necessário a inserção de um instituto que atendesse melhor as necessidades sociais, modificando assim o perfil do recurso extraordinário.

O instituto da arguição de relevância foi utilizado no ordenamento até o advento da Constituição Federal de 1988, que a princípio o excluíra sem previsão de outra medida - posteriormente acrescida a alteração do texto constitucional pela Emenda Constitucional nº45 de 2004.

Dessa forma, complementa José Levi Mello do Amaral Júnior:

Tem-se, aqui, inovação constitucional importante e que deve ser compreendida juridicamente, sem paixões. Já existiu no Direito brasileiro. Foi abandonada quando da concepção da Constituição de 1988. Foi considerada, equivocadamente, um "entulho autoritário". Trata-se, isso sim, de norma comum e necessária ao bom desempenho da jurisdição constitucional.[48]

Cabe analisar quais consequências foram decorrentes dessa reforma ao caráter constitucional, não somente do recurso extraordinário, mas também do próprio Supremo Tribunal Federal.

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Sobre a autora
Mayara Peres Pereira

Advogada no escritório Peres Pereira Advogados (www.perespereiraadvogados.com.br) | Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Ritter dos Reis| Especialista em Direito Tributário pelo Centro Universitário Ritter dos Reis

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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