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A autoridade policial e a atipicidade material da conduta face ao princípio da insignificância

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3. A TIPICIDADE MATERIAL COMO CRITÉRIO SUSTENTADOR DA TIPICIDADE PENAL

Conforme a própria denominação pressupõe, “Tipo Penal” surge da necessidade de o Estado, através da lei, impedir que sejam praticadas determinadas condutas, as quais possam ferir bens considerados mais importantes. “Tipo”, portanto, é o modelo de comportamento fixado pela norma, que não deve ser praticado pela população, sob ameaça de futura punição. [61]

Partindo dessas considerações, segundo Zaffaroni[62] “o tipo penal é um instrumento legal, logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes”.

O “tipo”, portanto, pertence à lei, sendo que a “tipicidade” ou “juízo de tipicidade” são, respectivamente, o que lhe caracterizam e atribuem valores jurídicos, a fim de definir a tipicidade de conduta. [63]

O Estado utiliza-se de determinada norma para proteger os bens jurídicos considerados relevantes. Para efeitos de explanação do tema, pode se dar como exemplo o art. 121 “caput” do Código Penal, o qual dispõe: “Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de 06 (seis) a 20 (vinte) anos.”

Assim, percebe-se que o modelo de conduta proibida pelo Estado, que no caso em tela é “Matar alguém”, deve estar descrito pela lei, sendo que quem praticá-la estará sujeito a punição conforme os preceitos legais. [64] Portanto, se determinado indivíduo praticar a conduta de matar outra pessoa, estará se adequando ao padrão criado pela norma penal, surgindo então a “tipicidade”.

A fim de reforçar esse entendimento, convém destacar a definição de tipicidade, a qual está elencada na Teoria do Delito como um dos elementos do conceito analítico de crime, ou seja, do fato típico.

 De acordo com os ensinamentos de Greco[65], entende-se que tipicidade é “[...] a subsunção perfeita da conduta praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei penal, isto é, a um tipo penal incriminador [...]”.[66] Essa tipicidade aqui mencionada assume contornos no âmbito formal e no âmbito material. [67]

Em um primeiro momento, é importante salientar que o elemento caracterizador da tipicidade formal reflete-se na adequação da conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei penal. Em suma, tal adequação deve ser perfeita, pois, caso contrário, tornará o fato formalmente atípico. [68] Para efeitos de ilustração do que foi mencionado, veja-se a lição de Greco[69]:

[...] a exemplo do art. 155 do Código Penal, aquele que simplesmente subtrai coisa alheia móvel não com o fim de tê-la para si ou para outrem, mas sim com a intenção de usá-la, não comete crime de furto, uma vez que no tipo penal em tela não existe a previsão dessa conduta, não sendo punível, portanto, o “furto de uso”.

Contudo, para que determinado fato seja considerado crime, concluindo-se através da tipicidade penal, faz-se necessário não apenas os elementos atribuídos à tipicidade formal, mas a conjugação desta com a tipicidade material[70], que nada mais é do que do que a ofensa aos bens de relevo para o Direito Penal[71].

Pelo critério da tipicidade material, é conferida a importância dos bens jurídicos no caso concreto, caso em que se pode apontar se tal bem deve ser ou não protegido pelo Direito Penal[72].

Outrossim, importa salientar que ao se verificar que determinado comportamento não atingiu o bem tutelado pela lei Penal, dispensável se faz a invocação do Estado a fim de punir o agente que o cometeu, já que não foi alcançada a tipicidade material. Neste sentido, vide o exemplo enfatizado por Greco[73]:

Alguém, de forma extremamente imprudente, ao fazer uma manobra em seu automóvel acaba por encostá-lo na perna de um pedestre que por ali passava, causando-lhe um arranhão de meio centímetro [...] há tipicidade formal, pois existe um tipo penal prevendo esse modelo abstrato de conduta. [...] Contudo, embora a nossa integridade física seja importante a ponto de ser protegida pelo Direito Penal [...] somente as lesões corporais que tenham algum significado, é que nele estarão previstas. Em virtude do conceito de tipicidade material, excluem-se dos tipos penais aqueles fatos reconhecidos como de bagatela, nos quais tem aplicação o princípio da insignificância.

Destarte, a fim de comprovar a tipicidade material, vem a pergunta proferida por Rogério Greco[74]: “quando o legislador criou o delito de furto, [...] foi pensando em qualquer tipo de patrimônio, ou somente naquele que, no enfoque minimalista, tivesse alguma importância para o Direito Penal?”

Segundo os ensinamentos trazidos até aqui, a resposta para este questionamento só pode ser negativa, já que a legislação não deve se ocupar com as bagatelas[75] – que na visão de Greco[76] é uma expressão equivocada em virtude de não observar a natureza jurídica do princípio da insignificância e sim, do princípio da irrelevância penal do fato - mas apenas com as agressões que afetem os bens jurídicos de maior relevo. Desta feita, conclui-se que ao se afastar a chamada tipicidade material, o fato torna-se atípico, que por sua vez, através do princípio da insignificância, exclui a tipicidade de fato.


4. AUTORIDADE POLICIAL, DISCRICIONARIEDADE E PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Maria Sylvia Zanella Di Pietro define o poder de polícia como: “a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público” [77].

Para uma melhor compreensão do tema, faz-se, inicialmente, a divisão entre as diferentes espécies de poder de polícia elencados pelo Direito Administrativo, tais como: a) polícia administrativa lato senso; e polícia de segurança, subdividida em polícia administrativa preventiva e polícia judiciária.

Esta última será objeto de análise do presente estudo, mais precisamente no tocante ao chefe da polícia judiciária, que nada mais é do que o Delegado de Polícia ou Autoridade Policial[78], ambos citados nos textos do Código de Processo Penal[79] e na Constituição Federal[80].

O Delegado de Polícia representa o Estado. Dessa forma, é importante destacar que a ele compete à atuação após a ocorrência do ilícito penal, ou seja, a Autoridade Policial atua repressivamente em favor da sociedade.

A função precípua da Polícia Judiciária é realizada por meio de investigações[81], principalmente verificadas através do inquérito policial ou auto de prisão em flagrante e ainda, de outros procedimentos policiais, bem como de origem investigativa, os quais dão suporte à pretensão punitiva que o Estado possui, representada pelo Ministério Público.

Portanto, verifica-se que o Delegado de Polícia também comporta o conhecimento jurídico necessário para avaliação das situações que lhe são colocadas, isso, pela própria natureza de ingresso e desenvolvimento da atividade profissional.

Apesar disso, a questão trazia à tona é a seguinte: poderia a autoridade policial deixar de lavrar procedimentos (Termo Circunstanciado ou Auto de Prisão em Flagrante) ou instaurar Inquérito Policial reconhecendo, de pronto, a atipicidade material da conduta em razão da ínfima lesão ao bem jurídico?

O tema não é de pacífico entendimento. José Henrique Guaracy Rebelo[82], fazendo referência ao procedimento adotado pela Polícia Civil do Estado de São Paulo, registra que “[...] apesar de o artigo 17 do CPP determinar que a autoridade policial não possa mandar arquivar os autos do inquérito policial, os delegados de polícia paulista há muito vêm aplicando o Princípio da Insignificância.” Para o autor,

[...] a aplicação do princípio não invalida e nem compromete o comportamento da autoridade policial, uma vez que a insignificância é detalhe que se mede pelo conhecimento direto e imediato da realidade social do plantonista ou do titular da unidade policial, por dispor de condições jurídicas amplas de dimensionamento e de verificação do mal do processo em face do mal da pena.

Nestas condições, a autoridade policial, ao aplicar o princípio da insignificância, não estaria violando o ordenamento jurídico vigente, mas sim, evitando uma prisão ou mesmo, o nascimento de um procedimento sem a mínima razão de ser.

No entanto, Luiz Flávio Gomes[83] sustenta a impossibilidade do reconhecimento de referido princípio pela autoridade policial. Para ele, o delegado de polícia não pode proferir “decisão definitiva” sobre a insignificância da conduta ou do resultado. Sua atribuição primordial consiste em registrar o fato desde logo.

Se a infração for de menor potencial ofensivo, a solução seria a lavratura de um Termo Circunstanciado. A autoridade policial não pode arquivar o procedimento investigatório (TC, Inquérito Policial etc.). Cabe-lhe registrar tudo e enviar ao juízo competente, sendo certo que o Ministério Público pedirá o arquivamento em razão da atipicidade (material). Ao juiz (não à autoridade policial) cabe determinar o arquivamento (CPP, arts. 28 e 17), pois nenhuma sanção pode recair sobre quem pratica uma conduta absolutamente insignificante.

Se o Ministério Público, em lugar de pedir o arquivamento fizer proposta de transação penal ou denunciar o “investigado”, impõe-se que a defesa solicite ao juiz o reconhecimento da insignificância. O caso é de arquivamento, reconhecendo-se a atipicidade material do fato. Mas, e se o juiz insistir na transação penal ou então, receber a inicial acusatória? Neste caso, só restaria o caminho do habeas corpus contra a medida de constrangimento ilegal proferida pelo juiz.

Para o referido autor[84] é preciso registrar o fato de alguma maneira para que, posteriormente, possa haver arquivamento. Por outro lado, destaque que jamais esse agente deverá ficar preso, ou seja, jamais deve ser recolhido ao cárcere (porque estamos diante de um fato atípico). Por isso, não se deve lavrar o auto de prisão em flagrante. Assim, se na infração penal de menor potencial ofensivo não se lavra flagrante, mas, Termo Circunstanciado, aplicar-se-ia a mesma regra para a infração considerada insignificante.  

Em que pese o entendimento supra descrito, é de se registrar que, em determinadas situações, deve sim autoridade policial, utilizando-se de sua discricionariedade, reconhecer a atipicidade material da conduta para deixar de lavrar o procedimento acerca do fato que lhe é colocado. Neste caso, desde que devidamente motivado, crê-se que não há ilegitimidade na aplicação desse procedimento por parte da autoridade policial.

Note-se que ao Delegado de Polícia é compelido resolver tais conflitos com cautela, a fim de não ferir o direito fundamental de liberdade do cidadão. Dessa maneira, suas atribuições devem ser conferidas de discricionariedade[85], a fim de não ocorrerem abusos de poder. Acerca do poder discricionário ora explanado, importa colacionar a lição de Meirelles[86]. Para o autor,

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[...] tanto nos atos vinculados como nos que resultam da faculdade discricionária do Poder Público, o administrador terá de decidir sobre a conveniência de sua prática, escolhendo a melhor oportunidade e atendendo a todas as circunstâncias que conduzam a atividade administrativa ao seu verdadeiro e único objetivo - o bem comum.

Veja-se que o ordenamento jurídico brasileiro é norteado pelo princípio da proporcionalidade, princípio este lastreado pelo bom senso e pela necessidade. Se, de plano, verifica-se, sem sombra de dúvidas, que não há violação ao bem jurídico penalmente tutelado, é de se deixar de lavrar qualquer procedimento de investigação, documentando os motivos e, neste caso, arquivando a notícia.

Exemplo clássico disso seria a condução de uma pessoa até a delegacia de polícia pela tentativa de subtração de uma “caneta marca bic” de uma papelaria. Apesar de formalmente típica (Art. 155, c/c art. 14, II, ambos do Código Penal), não há tipicidade material. Seria lógico, coerente e proporcional, neste caso, que a autoridade policial lavrasse prisão em flagrante ou instaurasse inquérito policial pra apurar tal comportamento? Acredita-se que não.

Assim, a faculdade do Delegado de Polícia em hipóteses como essas deve ser tomada conforme o seu juízo de valor, a melhor decisão que lhe surgir a consciência, vertendo para a lavratura do auto ou não, consoante sua apreciação daquilo que for mais conveniente e oportuno diante do caso em concreto. Neste caso, a decisão de valoração a ser levado a efeito pela autoridade policial bastará que contenha fundamentação razoável, fulcro no princípio da persuasão racional, como, de resto, é a atribuição de todos aqueles que levam a efeito atos administrativos em geral.[87]


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa buscou realizar uma exposição acerca do princípio da insignificância e sua possível aplicação pela Autoridade Policial antes mesmo da lavratura de qualquer procedimento.

O objetivo norteou-se em saber se a atipicidade material da conduta é atividade exclusiva do órgão jurisdicional ou, então, se diante da discricionariedade que comporta o Delegado de Polícia, poderia ele pode proferir “decisão definitiva” sobre a insignificância da conduta ou do resultado.

Para tanto, iniciou-se a pesquisa com o estudo do crime nos aspectos formal, analítico e material. Quando do estudo do crime no campo material, analisou-se o Direito Penal como instrumento protetor de bens jurídicos, concepção ofertada inicialmente por Claus Roxin e de forma prevalente, aceita no ramo jurídico penal mundial.

Investigou-se que esta proteção é subsidiária na medida em que não é qualquer bem jurídico objeto de proteção penal. De igual parte, não é qualquer lesão ao bem jurídico penalmente protegido que será alvo de repressão penal, mas somente as lesões igualmente importantes, denotando aí o princípio da fragmentariedade. E é neste contexto que se verifica que o princípio da insignificância, pois, conforme ele, as lesões sem importância não qualificam o comportamento como típico, vez que não lesou o bem jurídico penalmente tutelado.

Na sequência, analisou-se o poder de polícia e as funções do delegado de polícia diante daquilo que lhe é posto para análise e instauração ou lavratura procedimental administrativo. A partir daí, verificou-se que alguns autores não admitem que a Autoridade Policial reconheça a insignificância da conduta. Sua atribuição primordial consistiria em registrar o fato desde logo, de forma que não poderia ela deixar de lavrar o procedimento investigatório (TC, Inquérito Policial etc.). Caber-lhe-ia registrar tudo e enviar ao juízo competente.

Outros, no entanto, sustentam que, diante do conhecimento jurídico que a autoridade policial comporta, faz necessário para avaliação das situações que lhe são colocadas, isso, pela própria natureza de ingresso e desenvolvimento da atividade profissional do Delegado de Polícia, vez que não seria proporcional lavrar procedimento do qual, inevitavelmente, mais a frente, seria reconhecido sua atipicidade material.

O tema não é pacífico. No entanto, foi possível verificar mais coerente a posição que considera o delegado de policia também um “operador do direito”, de forma que ele também estaria na condição de avaliar esse juízo de tipicidade material em decorrência do caso concreto. Se assim não for, estar-se-á retirando toda e qualquer discricionariedade da autoridade policial na avaliação do caso, sujeitando-o ao um mero instrumento de tipificação formal de comportamentos, atribuição que reduziria em muito a sua própria atividade de conhecimento.

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Sobre os autores
Airto Chaves Junior

Mestrando do Curso de Mestrado em Ciência Jurídica-CMCJ, do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI -Área de Concentração em Fundamentos do Direito Positivo- O Mestrando está vinculado à Linha de Pesquisa Produção e Aplicação do Direito; Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

Priscila Portella Coutinho

Advogada do escritório David&Benzion Advogados; Pós-graduanda de direito penal e processo penal no Complexo Educacional Damásio de Jesus. <br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES JUNIOR, Airto ; COUTINHO, Priscila Portella. A autoridade policial e a atipicidade material da conduta face ao princípio da insignificância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4165, 26 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30537. Acesso em: 2 mai. 2024.

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