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União estável como determinante de estado civil

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24/11/2014 às 15:28
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IV – CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO

A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 226, §3º, reconheceu a união estável como entidade familiar a merecer proteção do estado, prevendo que a lei deve facilitar sua conversão em casamento.

Na contramão do exposto, o Código Civil de 2002 previu que a conversão da união estável em casamento demandaria pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil, conforme consta no artigo 1.726.

Não obstante, as corregedorias gerais de justiça dos estados têm previsto procedimento simplificado, dispensando a intervenção do juiz, porquanto essa intervenção burocratiza e retarda a conversão, o que não se coaduna com a determinação constitucional.

Na prática, os companheiros assinam requerimento perante o Oficial de Registro Civil, desencadeando o procedimento de habilitação, que será autuado com os documentos do artigo 1.525 do Código Civil, quais sejam, memorial, atestado de duas testemunhas, Certidões de Nascimento dos companheiros e documentos de identificação, o qual, após publicação de edital de proclamas, será remitido ao Ministério Público. Estando tudo em ordem, será procedida à conversão da união estável em casamento, independentemente de celebração do casamento, da presença do juiz de paz e das testemunhas.

Exigir-se-á a intervenção do juiz de direito apenas no caso de haver impugnação de terceiros ou do Ministério Público, embora em São Paulo as Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça determine “que deve haver pronunciamento judicial, salvo se existir portaria do juiz corregedor permanente em contrário” (LOUREIRO, 2012, p. 106).

Dessa forma, atende-se à determinação constitucional de facilitar a conversão da união estável em casamento, bem como desafoga o poder judiciário, que fica dispensado de intervir em procedimento em que não há lide a ser dirimida.

Isso não torna o procedimento de conversão da união estável em casamento em instituto de somenos importância ou vulnerável a procedimentos ardilosos, pelo contrário, reforça a fé pública e a seriedade do Registrador, que se atém a mais estrita legalidade na qualificação dos atos que lhe são apresentados, afastando, assim, eventuais vícios, o que, aliás, seria a atribuição do juiz, caso interviesse.

Imperioso salientar que a configuração da união estável depende do afastamento dos impedimentos do artigo 1.521 do Código Civil, exceto o do inciso VI, que se trata de pessoa casada, quando esta se achar separada de fato ou judicialmente.

Ademais, o registro não pode conter a data de início da união estável, por ser relação de fato que independe de tempo para se concretizar.

No que diz respeito ao livro de registro da conversão da união estável em casamento, os estados-membros ainda divergem, a título de exemplo, no estado de Minas Gerais, é no livro “B-auxiliar”, no estado de São Paulo, é no livro “B”.


V – POR QUE A UNIÃO ESTÁVEL DEVE DETERMINAR ESTADO CIVIL

Na ordem jurídica brasileira, são considerados estados civis apenas o de solteiro, casado, viúvo, divorciado e separado judicialmente; qualquer outro, inclusive união estável, são meros fatos, que não encontram respaldo legal.

Ocorre que não são os fatos sociais que devem adaptar à norma, pelo contrário, a norma deve ser ampla o bastante para abarcar o máximo de situações possíveis ou ser alterada para absorver as mutações sociais, sob pena de se tornar obsoleta e, consequentemente, ineficaz.

Desse modo, negar à união estável a aptidão para determinar estado civil é ignorar a realidade social e até mesmo o espírito da Constituição Federal, que considera a união estável entidade familiar que goza de proteção estatal.

O direito patrimonial é um dos direitos de maior relevância para a sociedade, pois é na busca pela formação de patrimônio que o ser humano encontra o motor que impulsiona a vida, e o seu alcance é a sua realização.

Assim, não obstante as concessões significativas que o ordenamento jurídico fez à união estável, não considerá-la como determinante de estado civil mitiga sobremaneira sua efetividade, uma vez que, atualmente, o ponto nevrálgico das relações afetivas reside no patrimônio, que se tornou fonte de desentendimentos entre os casais.

Não se olvida que o Código Civil, no seu artigo 1.725, prevê a faculdade dos companheiros de elegerem o regime de bens que lhes aprouver. Contudo, tal norma somente é útil, na prática, se resguardar o companheiro de eventuais intentos ardilosos do outro.

Isso porque, de nada adianta se eleger regime de bens, se o companheiro possui autorização legal para omitir a união estável em eventual negócio jurídico, por exemplo, companheiro pode vender imóvel adquirido onerosamente na constância da união estável sem autorização do outro companheiro, ainda que o regime não seja da separação absoluta.

O prejuízo é tão evidente, que, conforme aduz Hélder Silveira:

“os notários, para se resguardarem, de forma geral, têm exigido a anuência do companheiro(a), por analogia à obrigatoriedade determinada aos casados civilmente. [...] sem anuência, o(a) companheiro(a) poderia dilapidar todo o patrimônio, à revelia do outro, causando prejuízo incalculável à família” (SILVEIRA, 2011, p. 203/204).

E não há de se cogitar que a via indenizatória é sempre opção no caso do companheiro ser enganado, porque a imprescindível segurança jurídica para o progresso estatal restaria abalada, gerando retrocesso social e econômico.

Assim, é fácil perceber a lacuna deixada pelo ordenamento jurídico, a qual permite e incentiva a perpetração de fraudes. Ainda que haja a possibilidade de anular eventual transação viciada, em um Estado de Direito, as normas devem ser confeccionadas, antes de tudo, para obstar o litígio, e não para traçar ditames de como solvê-lo.

Logo, as escusas de que há remédio para evitar fraudes ou de que os homens são naturalmente bons, e, assim, pode-se fiar na sua boa-fé, são inadmissíveis, senão utópicas.

Portanto, a melhor forma de se tornar efetiva a tão propalada segurança jurídica, é fazer com que a união estável tenha aptidão para determinar o estado civil, de modo que a própria união estável assuma a importância que lhe é devida, tornando-se plenamente eficaz e efetiva.


VI – INCLUSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL ENTRE OS ESTADOS CIVIS

O argumento utilizado para abstrair a união estável de um dos estados civis previstos pelo Código Civil reside na sua condição de estado de fato, de relação informal, isto é, não se trata de fenômeno jurídico.

Isso se deve, sobretudo, pelo fato de que não há norma federal determinando que o instrumento da união estável, seja público, seja particular, deva ser levado a registro. O que há é a possibilidade de se registrar o instrumento de união estável no Registro de Títulos e Documentos, na forma do inciso VII e do parágrafo único do artigo 127 da Lei 6015/73, ou seja, por não haver previsão de registro em outra serventia (subsidiário) e para fins de conservação.

Dessa forma, fica claro que a Lei Federal supracitada nem qualquer outra tenham se preocupado em abstrair a união estável de mera relação informal, deixando de dispensar a ela a mesma importância que a Constituição Federal lhe atribui.

Todavia, alguns estados, sobretudo São Paulo e Santa Catarina, já começam a compreender a importância de se dar forma jurídica à união estável, seja determinando o registro obrigatório do instrumento de união estável no livro do Registro Civil das Pessoas Naturais, mais especificamente no Livro “E” (item 6.2.1 do Capítulo XVII, do Tomo II, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, redação dada pelo Provimento da Corregedoria Geral n.° 06/2013), seja prevendo a averbação da escritura de união estável na matrícula do imóvel (art. 817 do Código de Normas da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Santa Catarina).

Assim, não se deve mais ignorar a relevância que a união estável tem para a sociedade, principalmente, porque através dela é possível que um dos companheiros seja dependente do outro, seja para fins de pensão por morte, seja em plano de saúde, além disso, durante a união estável pode haver incremento patrimonial e, consequentemente, sua dissolução pode gerar partilha de bens.

Além disso, pela relativa simplicidade do procedimento e o baixo custo do instrumento, podendo, até mesmo, ser feito pelo próprio casal (instrumento particular), desde que na presença de duas testemunhas, é notável o crescimento das relações tidas como união estável.

Nesse diapasão, já é mais que hora de outorgar forma jurídica à união estável, como São Paulo e Santa Catarina já o fizeram. Para tanto, é preciso atribuir-lhe Livro para registro, que deve ser o Livro “E” do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, pois é aí que se encontram todos os assentos da pessoa natural, não podendo ser diferente com a união estável. Além do mais, o registro irá ensejar anotações nos atos anteriores, o que obsta eventual manobra ardilosa.

Deve-se, ainda, determinar a averbação da escritura de união estável na matrícula do imóvel, já que, diferentemente do registro, a averbação é “numerus apertus” e ela mantém o registro de determinado imóvel sempre atual, contribuindo na correta qualificação do título.

Assim o fazendo, a união estável deixa de se um mero negócio informal, para gozar de reconhecimento jurídico, o que, sem dúvida, traduz-se em segurança para as relações, especialmente, as negociais.


CONCLUSÃO

A relevância da união estável é reconhecida juridicamente desde 1988, ocasião em que a Constituição Federal, no seu artigo 226, parágrafo 3°, atribuiu à união estável a condição de entidade familiar.

Contudo, a Constituição Federal não aprofundou nesse instituto, o que, de fato, nem era de sua alçada, relegando a regulamentação da matéria ao legislador infraconstitucional. E isso foi feito, primeiro através da lei 8.971/94, e, mais tarde, pela lei 9.278/96.

Não obstante, essas leis não trataram do registro da união estável na serventia competente, tornando a união estável mera relação informal.

Isso se deve a lapso do legislador, pois, conforme demonstrado, estabelecer regime de bens, partilha, mas olvidar de seu registro, é algo que beira à contradição, pois, sem registro, ou ao menos sem registro no Cartório competente para registros dessa alçada, não há publicidade, consequentemente, dá-se azo a transações fraudulentas.

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Além do mais, negar-lhe o registro e, com isso, forma jurídica, é diminuir a importância que a própria Constituição Federal lhe outorgou, ao considerá-la entidade familiar.

Portanto, deve-se alterar a legislação em vigor, de modo que a união estável passe a modificar o estado civil, tornando-a, assim, jurídica.

Por isso, o legislativo deve dispensar muita atenção ao projeto de lei proposto pelo deputado Fernando Lucio Giacobo, do Partido Liberal do estado do Paraná, que visa, exatamente, a fazer com que a união estável seja modificadora do estado civil dos companheiros.

Afinal, as relações sociais são dinâmicas, enquanto as leis são estáticas, portanto, ao se deparar com movimento social sensível que a lei não prevê ou não prevê a contento, não pode o legislativo ignorá-lo, sob pena de privilegiar a rigidez da lei em detrimento dos anseios sociais, o que desvirtuaria toda a essência de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Pelo contrário, deve a norma abarcar esse fato, como fez com tantos outros, por exemplo, o usucapião.


BIBLIOGRAFIA

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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família, 6ª Edição, São Paulo: Atlas, 2006.

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Sobre o autor
Renato Mendonça Cardoso

Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas - Formado pela Universidade de Patos de Minas/MG - Pós-Graduado em Direito Notarial e Registral, e Pós-Graduando em Direito Administrativo e Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes-LFG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Renato Mendonça. União estável como determinante de estado civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4163, 24 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30552. Acesso em: 30 abr. 2024.

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