Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las. (Voltaire)
Sumário: INTRODUÇÃO.1. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DA FIANÇA.2. DOS SUJEITOS.3. DO OBJETO.4. DAS MODALIDADES.5. DOS EFEITOS.5.1 Dos efeitos decorrentes das relações entre credor e fiador.5.2 Dos efeitos decorrentes das relações entre afiançado e fiador. 6. TRANSMISSIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO DO FIADOR.. 7. A FIANÇA E OUTROS INSTITUTOS DE GARANTIA.. 8. A IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR DE OBRIGAÇÃO DECORRENTE DE CONTRATO DE LOCAÇÃO.9. EXTINÇÃO DA FIANÇA. CONCLUSÃO.REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Os contratos desempenham papel de fundamental importância, na medida em que viabilizam interação dirigida a um interesse comum, regulando a atuação de cada agente, de modo a estabelecer, entre os envolvidos, um vínculo passível de gerar em um a pretensão de exigir do outro o cumprimento do que pactuado.
O presente trabalho cuida, exatamente, de uma modalidade de contrato típico, qual seja, a fiança, regulada pelos artigos 818 a 839 do Código Civil Brasileiro. Trata-se de pesquisa dogmática pautada no tripé legislação-doutrina-jurisprudência a respeito do referido instituto jurídico.
Assim, são apresentados, inicialmente, o conceito e a natureza jurídica do contrato de fiança, bem como as características dessa avença que a distingue de outras modalidades de contratos.
Após, são analisados os aspectos subjetivos e objetivos do contrato da fiança, e expostas as suas modalidades, conforme prevê o ordenamento jurídico e admite a doutrina.
Em relação ao aspecto subjetivo da fiança, são definidos os sujeitos, ou seja, as pessoas que podem prestar fiança ou serem afiançadas. Quanto à perspectiva objetiva, são delimitadas as obrigações passíveis de ser objeto do contrato de fiança. Por sua vez, no que se refere às modalidades, analisa-se a classificação da fiança, segundo seu objeto e sua forma.
Na sequência, aborda-se sobre os efeitos que decorrem de um contrato de fiança, os quais podem ser verificados a partir de duas perspectivas: os efeitos decorrentes da relação entre credor e fiador; e os efeitos oriundos da relação entre afiançado e fiador.
Por sua vez, trata-se da possibilidade de o fiador transmitir sua obrigação, considerada a natureza personalíssima que lhe é inerente, bem como sobre os reflexos dessa transmissão.
A seguir, a fim de tornar clara a identificação da fiança, são traçadas as distinções entre esse instituto e outros contratos de garantia que com ela se assemelham.
D’outra banda, como tópico de elevada importância, objeto de intenso debate e divergência doutrinária e jurisprudencial, e que, por isso, não deve ficar de fora de um estudo sobre a fiança, tem-se a impenhorabilidade do bem de família do fiador de obrigação decorrente de contrato de locação.
E, finalmente, trata-se do modo pelo qual a fiança é extinta, tanto diretamente, como por via de consequência.
1. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DA FIANÇA
A fiança, regulada pelos artigos 818 a 839 do Código Civil, consubstancia espécie de garantia de cumprimento de obrigação, em que uma pessoa se obriga (fiador) a adimplir perante outra (credor) um débito a esta devido por uma terceira pessoa (devedor/afiançado).
É espécie do gênero caução, que comporta as garantias reais ou pignoratícias e as garantias fidejussórias ou pessoais[1]. As garantias reais pressupõem a vinculação de um bem que deverá assegurar o adimplemento do contrato. Já as garantias fidejussórias fundam-se na confiança, na palavra dada ao credor.
São garantias reais o penhor, a hipoteca e a anticrese. São garantias fidejussórias, entre outras, o aval, o endosso, o abono e a fiança.
Situada a quadra contextual ocupada pelo instituto, facilita a sua compreensão perquirir a origem do termo. Fiança provém do latim fidere, sugerindo confiar, garantir[2]. Segundo o mestre Orlando Gomes, “há contrato de fiança quando uma pessoa assume, para com o credor, a obrigação de pagar dívida, se o devedor não o fizer”[3].
Interessante trazer à baila a citação de Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, em que se verifica a incidência da fiança nas Escrituras Sagradas, mais especificamente, no Livro de Provérbios:
“Filho meu, se ficaste por fiador do teu companheiro, se deste a tua mão ao estranho, e te deixaste enredar pelas próprias palavras; e te prendeste nas palavras da tua boca; Faze pois isto agora filho meu, e livra-te, já que caíste nas mãos do teu companheiro: vai, humilha-te, e importuna o teu companheiro (Provérbios, 6, 1-3).
Quem fica por fiador certamente sofrerá, mas o que aborrece a fiança estará seguro (Provérbios, 11, 15).
Ficando alguém por fiador de um estranho, tome-se-lhe a roupa: e por penhor àquele que se obriga pela mulher estranha (Provérbio, 20, 16)”[4].
Trata-se, pois, de instituto que há muito integra a cultura comercial e jurídica, viabilizando a materialização de operações mercantis na sociedade de modo mais seguro ao credor.
Quanto à natureza jurídica, é consenso na doutrina que a fiança consiste em contrato acessório, unilateral e gratuito ou benéfico, intuitu personae, consensual e solene.
A acessoriedade do contrato de fiança se justifica pelo fato de que, enquanto garantia da obrigação de outrem, pressupõe sempre a existência desta, denominada obrigação principal. Na lição de Maria Helena Diniz:
“Há dois contratos: o contrato principal, entre o credor e o devedor, e o acessório, entre fiador e credor. Como acessório, segue o principal, a fiança seguirá o destino do principal; se este for nulo, nula ela será (CC, art. 824). Porém, a recíproca não será verdadeira, isto é, a nulidade da fiança não atingirá o contrato principal (RT, 480:110). Se a obrigação principal extinguir-se, extinta estará a fiança”[5].
Vigora, pois, o princípio da gravitação jurídica, pelo qual todo acessório segue o principal (accessorium sequitur principale)[6].
Na lição de Orlando Gomes, do caráter acessório da fiança têm-se as seguintes consequências: “a) a obrigação fidejussória não sobrevive à obrigação principal; b) a obrigação fidejussória tem a mesma natureza e extensão da obrigação principal”[7].
Na fiança, tem-se a responsabilidade, mas não o débito, adotando-se a díade Schuld und Haftung[8] ou, ainda, obligatio sem debitum[9]. Vale dizer, recai sobre o fiador a responsabilidade pelo cumprimento da obrigação, mas não o débito, o qual é atribuído, obviamente, ao devedor, pelo menos a priori.
Cabe destacar, no entanto, posição divergente sustentada por Arnaldo Rizzardo, para quem o fiador detém também obrigação, na medida em que a “responsabilidade do fiador deriva de uma prévia obrigação ou dívida por ele assumida frente ao credor”[10].
A professora Helena Diniz afirma, ainda, a subsidiariedade como, também, característica da fiança, pois, “devido ao seu caráter acessório, o fiador só se obrigará se o devedor principal ou afiançado não cumprir a prestação devida, a menos que tenha estipulado a solidariedade”[11].
É unilateral por implicar obrigações somente para o fiador, vale dizer, não repercute na esfera de liberdade do afiançado. Ressalte-se que há quem sustente ser contrato bilateral imperfeito, ao argumento de que, cumprida a obrigação pelo fiador, este sub-roga-se nos direitos do credor, pelo que poderá agir regressivamente contra o devedor.
Ocorre que, como ensina Orlando Gomes, esse posicionamento – de que a fiança é contrato bilateral imperfeito – parte da falsa premissa “de que o contrato se realiza entre o fiador e o devedor”. Observa, ainda, o autor que “cumprida a obrigação do fiador, se extingue o contrato de fiança”[12]. Insustentável, portanto, a natureza bilateral da fiança.
É, ainda, gratuito, pois o fiador, via de regra, não receberá qualquer remuneração pela assunção da responsabilidade, limitando-se a depositar sua confiança no adimplemento do débito pelo devedor. Como decorrência dessa gratuidade, tem-se a incidência da regra prevista no art. 114 do Código Civil, pela qual os contratos gratuitos devem ser interpretados estritamente o que, no caso da fiança, significará que o fiador não pode, por qualquer que seja a técnica interpretativa, ter suas obrigações ampliadas. Assim, o fiador somente arcará com o que expressamente anuiu no contrato e nos termos e condições assinalados.
No âmbito do inquilinato, como expressão desse atributo da fiança, enquanto contrato gratuito, eis o que dispõe a Súmula nº 214 do Superior Tribunal de Justiça:
“O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu”.
Cabe chamar a atenção, contudo, para as fianças bancárias e as fianças mercantis em geral[13], nas quais se estipula remuneração em favor do fiador, ante o risco por ele assumido. Em circunstâncias que tais, concebe-se a fiança como contrato oneroso.
Por se basear, fundamentalmente, na confiança entre os contratantes, decorre a natureza intuitu personae ou personalíssima do contrato de fiança, sendo que o credor não é obrigado a aceitar fiador em que não confie, podendo recusá-lo quando não preenchidos os requisitos previstos no art. 825 do Código Civil. Prevê o art. 826 do CC, inclusive, a possibilidade de o credor exigir a substituição do fiador que se tornar insolvente ou incapaz. Percebe-se, pois, que o personalismo da fiança exige que o fiador mantenha suas características de solvabilidade e capacidade verificadas quando da contratação.
Sendo personalíssimo, não se está afirmando a intransmissibilidade da fiança. Como bem observam Gagliano e Pamplona Filho, uma vez “constituído o dever de pagar (pela inadimplência do devedor da obrigação principal), antes do advento da morte do fiador, esta responsabilidade se transmite a seus herdeiros”[14].
A fiança é contrato consensual, pois sua perfectibilidade está condicionada unicamente ao consentimento dos estipulantes[15], vale dizer, não pressupõe conduta positiva das partes no sentido de entregar coisa, característica esta dos contratos reais. Insta observar, no entanto, que a obrigação principal, á qual se reporta a fiança, pode apresentar feição de contrato real, como é o caso do mútuo e do comodato, entre outros.
Excepcionando o princípio geral da liberdade da forma, preconizado no art. 107 do Código Civil, o contrato de fiança, em razão de incidência de regra específica, deve ser escrito, como determina o art. 819 do diploma. Na verdade, essa previsão é corolário da própria vedação de interpretação extensiva, constante deste mesmo dispositivo, na medida em que, ausente a anuência escrita do fiador, este não está vinculado à estipulação, não sendo admitido se recorrer a fontes interpretativas ou integrativas a fim de se obter esse efeito.
Daí, ser contrato solene, segundo Arnaldo Rizzardo[16], “dada a necessidade imperiosa de se revestir de uma forma escrita, devendo obedecer as formalidades para a celebração de um ato jurídico”. Para Tartuce, adotando o mesmo fundamento, a fiança é contrato formal, e “não solene, pois não se exige escritura pública”[17]. Nesse sentido, também é a lição de Venosa, segundo a qual fiança não se presume: é contrato escrito[18].
2. DOS SUJEITOS
São partes no contrato de fiança o fiador e o credor. O devedor, enquanto afiançado, não integra o contrato de fiança, sendo que esta pode ser formalizada ainda que sem seu consentimento, nos termos do art. 820 do Código Civil.
Embora geralmente participe do ato, indicando a pessoa a figurar como fiadora, o afiançado o faz na condição de interessado, e não de parte, propriamente dita, já que, como dito alhures, a decisão pela admissão ou não do fiador é sempre do credor[19]. Cabe ao credor aceitar, recusar, ou mesmo, em aceitando, exigir posteriormente a substituição do fiador.
No ponto, é expresso o art. 825 do Código Civil ao estabelecer as condições mínimas a serem preenchidas pelo fiador, a saber, ser pessoa idônea, domiciliada no município onde tenha de prestar a fiança e possuir bens suficientes para cumprir a obrigação. Sob a mesma orientação, dispõe o art. 826 do diploma que o credor poderá exigir a substituição do fiador que se tornar insolvente ou incapaz. Tais disposições são decorrência do conteúdo dos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, também presentes na fiança.
Exige-se, por óbvio, a capacidade civil das partes para a prática de negócios jurídicos, pois eventual incapacidade pode dar ensejo à exigência de substituição do fiador, como dito acima.
Leciona Arnaldo Rizzardo que os relativamente incapazes, com idade entre dezesseis e dezoito anos, não podem prestar fiança, ainda que assistidos pelos representantes legais, embora se admita a ratificação posterior do ato, com o advento da maioridade.
Quanto aos analfabetos, doutrina o autor:
“O analfabeto, por não saber ler e nem escrever, não pode contrair obrigação por instrumento particular, sendo obrigatória a escritura pública. Mesmo que terceira pessoa assine a rogo do analfabeto, estando este presente e apondo sua impressão digital, a fiança não adquire validade em razão da forma especial ordenada pelo art. 819 (art. 1483 do Código anterior), e do conteúdo constante no art. 166, incisos IV e V (art. 145, incisos III e IV, do Código pretérito[20]”.
Também podem prestar fiança a pessoa jurídica, desde que autorizada por seus atos constitutivos ou regulamentos.
Do mesmo modo, conforme dispõe o art. 661, § 1º, do Código Civil, os mandatários também podem ser fiadores, contanto que tal poder esteja expresso na procuração.
De outro lado, tendo em vista a limitação quanto à prática de certos atos que não seja de mera administração, tem-se que os pródigos, a despeito de não serem absolutamente incapazes, não podem, sem a intervenção de curador, figurar em contrato como fiador[21].
A pessoa casada, exceto se no regime da separação de bens, necessita da anuência do cônjuge para prestar fiança, o que não faz deste também fiador. Assim, o cônjuge anuente não deve figurar em eventual execução do contrato de fiança.
Prestada a fiança sem a autorização do cônjuge, pode este, bem como os herdeiros, pleitear a anulação do contrato no prazo decadencial de dois anos, contados da dissolução da sociedade conjugal, consoante preveem os arts. 1649 e 1650 do Código Civil.
No ponto, importante destacar a Súmula nº 332 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual a “fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia”. Flávio Tartuce critica o texto do enunciado, pois segundo o autor “o certo seria falar em invalidade e não em ineficácia[22]”, já que a ausência da anuência torna a fiança anulável.
O art. 1648 do Código Civil admite, no entanto, o suprimento judicial da outorga conjugal, de modo a viabilizar a constituição da fiança ainda que sem a anuência de um dos cônjuges.
Arnold Wald destaca a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em relação à fiança prestada pelo marido, sem a anuência da mulher, a empresas das quais é diretor. Nesses casos, a Corte tem assentado entendimento no sentido de que se deve presumir a existência de vantagem para o casal, o que faz da fiança (contrato) válido, salvo se a mulher provar que não auferiu benefício decorrente do contrato. Trata-se, pois, de presunção juris tantum, que implica a inversão do ônus da prova[23].
3. DO OBJETO
Podem ser objeto de fiança qualquer tipo de obrigação, seja ela de fazer, de não fazer ou de dar, atuais ou futuras.
Em se tratando de obrigação de fazer ou não fazer, o fiador – assim como o devedor – não pode ser coagido a cumprir o estipulado, ante o conteúdo do princípio da dignidade humana, bem como da legalidade, pelo qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Nesses casos, a garantia prestada é de natureza pecuniária, vale dizer, o fiador responderá pelas perdas e danos experimentados pelo credor.
No caso de obrigação futura, o fiador só poderá ser demandado quando se verificar certa e líquida a obrigação principal do devedor, sendo que caso esta não venha a surgir, resolve-se a fiança[24].
Ainda em relação à fiança de obrigação futura, importante a lição de Arnaldo Rizzardo, no sentido de o fiador não pode se retratar ou revogar a fiança enquanto não surgir a obrigação principal ou vencer o seu prazo. Explica o autor que isso se deve à afinidade presente entre esse tipo de fiança e a obrigação condicional, sendo que aquela só passa a ter existência jurídica quando implementada a condição estipulada para esta[25].
Como decorrência de sua natureza acessória, o contrato de fiança não pode prever responsabilidade superior à obrigação garantida, pois neste caso, ela não valerá “senão até o limite da obrigação afiançada”, nos termos do art. 823 do Código Civil. Observa o mestre Orlando Gomes que o excesso da fiança não implica a sua nulidade, mas apenas dá ensejo ao reajuste[26].
Ensinam Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona que esse reajuste ou redução da fiança não só pode como deve ser feito pelo juiz, independentemente da manifestação do interessado, “em respeito aos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, sob pena de coroar flagrante injustiça[27]”.
Nada impede, por outro lado, que a fiança seja inferior ao valor da obrigação principal ou que estatuí condições menos onerosas. Pode dispor também sobre créditos secundários, como juros, despesas judiciais e multas.
Silvio de Salvo Venosa classifica a fiança, quanto à compreensão, em limitada e ilimitada. Discorre:
“A fiança limitada circunscreve-se qualitativa e quantitativamente, podendo não abranger todos os acessórios da obrigação. Fiança ilimitada é a que não apresenta restrição, quando, por exemplo, o fiador de contrato de locação se responsabiliza por todos os encargos presentes e futuros”[28].
As obrigações nulas não podem ser objeto de fiança, salvo se a nulidade decorrer da incapacidade pessoal do devedor, hipótese em que o Código Civil, em observância ao princípio da boa-fé objetiva, tutelando o interesse do credor, concebe como válido o contrato. Porém, tratando-se de mútuo feito a incapaz em razão da idade, essa exceção é afastada, pelo que prevalecerá a regra, ou seja, nula será a fiança. Visa-se, com isso, desestimular a realização de negócios jurídicos com menores que não estejam devidamente representados ou assistidos pelos seus representantes ou tutores.
As obrigações naturais, enquanto deveres decorrentes da moral, da honra, da equidade ou da consciência, também não são afiançáveis. É que lhes falta uma característica essencial à eficácia da fiança, a saber, a exigibilidade, consectária da responsabilidade, como vínculo jurídico que torna o patrimônio do devedor sujeito à satisfação do débito, adotando-se, aqui, a teoria da decomposição da obrigação em dois elementos, quais sejam, o débito (schuld) e a responsabilidade (haftung)[29], referidos na obra de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.
Infere-se, pois, que o obstáculo à admissão da fiança nas obrigações naturais é um aspecto ligado não à fiança, mas à própria obrigação principal, que não dá ensejo à responsabilidade no ordenamento jurídico brasileiro. Existe o débito, mas não a responsabilidade; e se esta não existe para o devedor, também para o fiador é inexistente. É o que se extrai do art. 814, §1º, do Código Civil, que estende à fiança a inexigibilidade característica das dívidas de jogo ou de aposta, referidas no caput, e que consubstanciam típicos exemplos de obrigações naturais, ao lado das dívidas prescritas.
Vale ressaltar, contudo, que essa interpretação não é unânime na doutrina. Serpa Lopes, fazendo a distinção entre as obrigações naturais com causa lícita e as obrigações naturais com causa ilícita, sustenta que o descabimento da fiança está presente nestas, mas não naquelas[30]. Assim, defende ser possível o credor exigir do fiador, por exemplo, o cumprimento de uma obrigação prescrita, a despeito de não poder fazê-lo com relação ao devedor.
Importante trazer à baila o instituto da subfiança, que, embora não previsto no atual Código Civil, é sempre lembrado pela doutrina. Com previsão no art. 1842 do Código Civil de 1916, a subfiança “era o contrato pelo qual alguém afiançava a obrigação do fiador[31]”, ocupando, portanto, a posição de fiador do fiador. Essa pessoa era designada abonador.
O mestre Orlando Gomes faz referência, ainda, à denominada retrofiança, existente quando “o fiador exige do devedor outro fiador para o caso em que venha a exercer seu direito regressivo[32]”.